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Suzano sofre embargo por destruir sítio arqueológico em São Mateus

Laudo constatou falhas da prefeitura e violação de condicionantes ambientais

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) embargou as atividades do empreendimento da Suzano S.A. que causou a destruição parcial de um sítio arqueológico da Fazenda Cachoeira do Cravo, protegido por lei municipal em São Mateus, no norte do Espírito Santo. A área impactada abriga um antigo cemitério de pessoas escravizadas, ligado à memória da líder negra Constância D’Angola, como divulgado por Século Diário no último dia 21. O Iphan constatou que a empresa descumpriu condicionantes da licença ambiental e também apontou falhas da prefeitura, que omitiu a informação sobre a proteção do local ao autorizar a intervenção.

As irregularidades foram confirmadas em mais uma vistoria técnica realizada na última quinta-feira (24), e o caso foi discutido em reunião entre o Iphan e o Instituto de Defesa Agropecurária e Florestal (Idaf) nessa quarta-feira (30). O órgão estadual afirmou que pode suspender a licença concedida à Suzano diante da violação das normas que obrigam a obtenção de anuência prévia de outros órgãos ambientais e patrimoniais. As atividades da empresa na propriedade estão suspensas até que estudos e medidas compensatórias sejam definidos.

Segundo o chefe da Divisão Técnica do Iphan, Yuri Batalha de Magalhães, a Suzano ignorou a Instrução Normativa nº 01/2015, que exige avaliação prévia do impacto ao patrimônio arqueológico. “Mesmo que o sítio não estivesse cadastrado no sistema público, sua existência era conhecida e respaldada por tradição oral, dados comunitários e legislação local”, afirmou.

Arquivo pessoal

A destruição foi provocada por máquinas da empresa Macplan Urbanismo e Construção Ltda., contratada pela Suzano, e resultou em solo revolvido e fragmentos ósseos humanos expostos. A área também apresentava construções recentes sobre o local do cemitério, sem qualquer sinalização ou delimitação.

Após vistorias no local, o Iphan oficializou o cadastro do Sítio Arqueológico Fazenda Cachoeira do Cravo e passou a discutir com a Suzano as medidas compensatórias. Segundo o representante do órgão, como a empresa não procurou o Iphan antes de iniciar qualquer atividade, será responsabilizada. “Se não houver acordo administrativo, o caso poderá ser judicializado com participação do Ministério Público Federal”.

Entre as possíveis medidas compensatórias estão a realização de estudos arqueológicos aprofundados para avaliar a magnitude dos danos, a investigação de áreas ainda intactas no entorno, e a escuta das comunidades locais para definir ações de reparação simbólica e material.

Na reunião realizada com o Idaf, o Iphan constatou que o órgão aguardava manifestação formal do instituto para reavaliar a licença concedida à Suzano. Um dos pontos principais da discussão foi o descumprimento da condicionante nº 7 da licença ambiental, que obriga a empresa a obter autorizações de outros órgãos competentes. Já a Prefeitura de São Mateus foi responsabilizada por não informar que o local era protegido por legislação municipal no momento da liberação da atividade. “A Lei Municipal nº 39/1989 já deveria garantir a preservação da área”, reforçou Yuri.

Também no dia 24 de julho, o Iphan realizou uma nova vistoria no local, acompanhados por quilombolas da comunidade Córrego Seco e da vereadora Professora Valdirene (PT), quem acionou o Iphan após receber denúncias sobre a destruição do sítio. De acordo com o laudo de fiscalização, os quilombolas afirmaram que a Suzano se reuniu com representantes da comunidade na sede do Ministério Público, para apresentar medidas compensatórias devido aos impactos, sobretudo a destruição do cemitério, mas não houve acompanhamento de nenhum representante do órgão, apenas de uma equipe de oito advogados da Suzano. Eles avaliam que o encontro foi desfavorável para a população, com imposição de assinaturas em atas pouco legíveis.

Entre as propostas de compensação feitas pelos moradores, estão a construção de um memorial a Constância D’Angola, melhorias na ponte da fazenda, abertura de caminhos tradicionais, e ações de reparação simbólica e material. A vereadora foi quem acionou o Iphan após receber denúncias sobre a destruição do sítio.

Yuri também ressalta que o Iphan solicitou ao Idaf dados sobre outras licenças concedidas à Suzano, para verificar se houve omissão de estudos arqueológicos em outros empreendimentos. A intenção é cruzar essas informações com a base de dados do Iphan e identificar possíveis novas violações. “Esse é o primeiro processo formal com a Suzano aqui no Espírito Santo, mas estamos levantando informações para saber se há outros casos similares em áreas que também possam conter patrimônio cultural sensível”, reforçou.

Além da suspensão das atividades em toda a propriedade, que abrange 579,8 hectares, o Iphan determinou que a Suzano apresente um relatório detalhado sobre o que já foi executado no local, para que sejam definidas medidas compensatórias em toda a extensão do empreendimento — o cemitério representa menos de 1% da área total. O instituto, acrescenta Yuri, aguarda essas informações para decidir os próximos passos e também deve realizar uma nova reunião com a comunidade de Córrego Seco, localizada no entorno da região, para ouvir as expectativas sobre reparações. Outra medida será solicitar ao Idaf que liste os órgãos que devem ser consultados pelo empreendimento, incluindo o próprio instituto, para evitar novos casos de omissão e violação de patrimônios protegidos.

Secom/ES

Memória e resistência

A área onde hoje se encontra o sítio funerário, chamado popularmente de “Cemitério dos Escravos”, ou “Cemitério Particular da Fazenda Cachoeira do Cravo”, está localizada em terreno pertencente à antiga estrutura fundiária de uma propriedade escravocrata, ativa até meados do século XIX. A fazenda foi fundada na segunda metade do século XIX pelo major Antônio Rodrigues da Cunha, também conhecido como Barão de Aymorés, e representou um centro de produção de açúcar, cafeicultura e atividade comercial fluvial, com uso da mão de obra escravizada. O sítio antigo cemitério é apontado pela tradição oral como o local de sepultamento de dezenas de pessoas escravizadas que viveram e morreram na área.

Entre essas histórias, ganha destaque a de Constância de Angola, mulher que teve seu filho morto de forma brutal, queimado vivo em uma fornalha por ordem da senhora Francelina Cardoso Cunha. Segundo os relatos, Constância escapou da fazenda após o assassinato e atuou em movimentos de resistência com lideranças quilombolas como Viriato Cancão-de-Fogo, ajudando outras pessoas a fugir da escravidão. Ela teria sido  morta em confronto com o capitão-do-mato José de Oliveira, conhecido como “Zé Diabo”, e enterrada ao lado do filho, com autorização do major Antônio da Cunha. Sua memória é lembrada por iniciativas como a Casa de Constância D’Angola e reconhecida como um marco da resistência negra no Espírito Santo.

A Fazenda Cachoeira do Cravo é reconhecida pelo Iphan como um território de memória negra, ligado a trajetórias de resistência e à construção da identidade local. Segundo a análise arqueológica, os vestígios encontrados na área – materiais e imateriais – revelam camadas de memórias relacionadas à exploração econômica, à dor e à resistência.

A área é protegida por legislação municipal específica: a Lei nº 39/1989, de 24 de agosto de 1989, que institui o Conjunto Histórico “Fazenda Cachoeira do Cravo”, no distrito de Nestor Gomes, e define, como bens que compõem esse conjunto: “a Casa da Fazenda do Cel. Cunha Júnior, a Casa da Venda do Barão de Aymorés (antiga pila de café e usina de açúcar), o cemitério dos escravos e a ponte da Cachoeira do Cravo”.

Yuri também destacou a importância arqueológica e histórica da Fazenda Cachoeira do Cravo. Segundo ele, a área está inserida no contexto do rio Cricaré, onde há registros de ocupações indígenas muito antes da chegada dos portugueses. “É uma região extremamente rica em recursos naturais, o que favoreceu o assentamento de diversos grupos indígenas ao longo do tempo. Inclusive, é nas proximidades que se deu a Batalha do Cricaré, um dos principais confrontos entre indígenas e forças coloniais portuguesas no período colonial”, explicou.

A partir do período do Brasil Colônia, a região passou a concentrar fazendas voltadas à produção de açúcar, café e outras atividades econômicas, com o uso de mão de obra escravizada. “Agora, o que a gente precisa levantar são justamente as histórias que não foram registradas oficialmente, como as dos grupos quilombolas. Existem comunidades ali cuja trajetória ainda não foi completamente documentada, e isso é essencial para fortalecer a preservação dessa memória”, defendeu.

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