Sexta, 03 Mai 2024

Ticumbi na expectativa de festejar seu mestre maior

Ticumbi na expectativa de festejar seu mestre maior
No dia primeiro de janeiro, como ocorre há mais um século, o Ticumbi de São Benedito de Conceição da Barra se apresenta em frente à igreja do santo para louvá-lo. O festejo acontece na sede do município, localizado no extremo norte do Estado. Uma apresentação que ao longo de todo esse tempo é votada para sua própria comunidade, saudada sempre pelos seus integrantes “como a nossa bela sociedade. ”
 
 
É quando os negros têm a oportunidade de mostrar a importância de sua sociedade. São homens e mulheres com as suas melhores roupas competindo com a sociedade branca. O fato dessa apresentação, ser pela manhã do dia primeiro de janeiro, tem o intuito de evitar que os brancos possam assisti-la. Nessa hora ainda dormem após uma noite de virada de ano.
 
E este ano, há razões de sobra para que os festejos sejam ainda mais esfuziantes. O mestre Terto (Tertulino Balbino) completa 60 anos conduzindo o grupo do Ticumbi de São Benedito, que é composto por 17 negros. Fazendo com que mais de uma geração de integrantes do Ticumbi tenha sido regido por ele.
 
A idade avançada e problemas na visão não garantem que Terto (foto) possa estar à frente do grupo além desse primeiro de janeiro. Essa duvida já o fez escolher seu sucessor. Só que o sucessor escolhido, como os demais integrantes do grupo, não concebe a ideia de Terto ser substituído. Aumentando em muito a sua responsabilidade numa clara alusão do desejo de continuar vê-lo regendo o Ticumbi.
 
A trajetória do mestre Terto à frente do grupo data dos anos 50. Que antecedeu o período em que as terras quilombolas foram destinadas à Aracruz Celulose (atualmente Fibria) pelo governo indireto de Arthur Carlos Gerhardt Santos, do período da ditadura militar, que instalou-se no País em 1964. 
 
Esse processo provocou uma verdadeira diáspora negra, detonando a cultura negra. Dos quatro Ticumbis negros, o único que sobreviveu foi o de Terto.
 
Reverenciado até os dias de hoje por ter escapado de um verdadeiro “genocídio” da cultura negra do norte capixaba. A sobrevivência do Ticumbi do Terto está ligada exatamente ao fato de ele sobreviver graças à sua própria luta, sem contar com ajuda do poder público e muito menos das elites da região. Ao contrário. Essas elites, durante anos e anos — muitos dos quais com a ajuda da Igreja Católica —, fizeram de tudo para exterminá-lo.
 
Dizia o folclorista Hermógenes Lima Fonseca (1916 - 1996), que foi agraciado por este Ticumbi com o título de vassalo do Rei de Bamba (uma honraria que existe há mais de um século com a incumbência de dialogar com o governo e as elites brancas), que o grupo de Terto salvou-se da destruição promovida pela Aracruz Celulose, porque só confiou na sua capacidade de resistência e na cobertura da sociedade negra que se manteve na região e organizou-se para enfrentar a situação criada.
 

Uma apresentação com esse viés de poder ser a última apresentação de um líder da cultura negra, com a mesma importância da ação revolucionária de lideranças negras do negro Rugério, Benedito Meia Légua, Silvestre Nagô, que se destacaram na época da escravatura, mas que são solenemente ignorados pelos setores culturais do governo do Estado.
 
Pela sua importância para a cultura capixaba, os festejos de primeiro de janeiro do Ticumbi de São Benedito deveriam ser reverenciadas pelas autoridades públicas, mas a expressão dessa arte não se “encaixa” na ação cultural do governo do Estado, mais voltado para atender os anseios das elites com exposição de pintores “alienígenas”, que servem ao enriquecimento do jornal A Gazeta, através de uma empresa de evento chamada Premium.
 
Aliás, a empresa levou este ano mais de 80% do orçamento da Secretaria de Cultura, fora o que recebeu do Sincades (Instituto de Ação Social e Cultural). É oportuno lembrar que o Sincades promove suas ações com dinheiro público. Aliás, o desembargador Flávio Klein decidiu impedir que a sociedade conhecesse a destinação de seus recursos.
 
A Comissão Espírito-santense de Folclore de Folclore, pós Guilherme Santos Neves e Hermógenes Lima Fonseca, ausentou-se dos trabalhos de pesquisas que sustentavam a credibilidade dos grupos de folclore, como caso específico do Ticumbi de São Benedito, de Conceição da Barra. Enveredou-se por fórmulas inadequadas como o desfile dos grupos na Capital sem sua devida relação com os santos padroeiros que movem suas apresentações. 
 
Ações dessa natureza fizeram com que a entidade perdesse sua credibilidade junto aos grupos, a ponto do mestre Terto ter decidido não comparecer mais a esse desfile.
 
 


Saiba mais
 
O Ticumbi é um grupo folclórico de Conceição da Barra, integrado somente pelos negros da região, tratando-se também de uma manifestação única no País, pois o Ticumbi só é encontrado no município de Conceição da Barra. São negros devotos de São Benedito, que louvam o santo na passagem de ano.
 
Na época da passagem de ano, eles se vestem com uma roupa branca, cobertos por uma bata. A cabeça é enfeitada com flores. Em longas evoluções durante duas horas se apresentam na porta da Igreja de São Benedito. Além do pandeiro, há apenas um violeiro que tira as canções de louvor a São Benedito. Há no entanto, uma disputa entre dois reis para saber qual deles dará o baile de São Benedito. Embaixadas são tiradas pelos secretários dos dois reis (de banda e de congo) e há uma luta entre eles, mas invariavelmente vence o rei cristão, que é o rei de congo. Na verdade eles reproduzem as velhas lutas entre mouros e cristãos, que por oito séculos tomaram conta da Europa.
 
No dia anterior à apresentação, o grupo desce o rio Cricaré, conduzindo a pequena imagem de São Benedito do Córrego das Piabas - que fica na localidade de pescadores, conhecida como Barreiras - para ser louvada pelos seus devotos em Conceição da Barra. Este é o único dia em que a imagem pode sair da localidade de Barreiras.
 


Essa imagem é considerada pelos negros o mais milagreiro da região. Era conduzida sempre pelo líder dos escravos da região, Benedito Meia-légua, que foi queimado pelos fazendeiros escravocratas dentro de uma árvore, onde havia se refugiado. Depois do incêndio a imagem foi encontrada intacta. 

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