Aposentado transformou residência em museu de brinquedos, música e cinema
No vaivém da Avenida Expedito Garcia, uma das mais agitadas ruas comerciais do Espírito Santo, abre-se um portal. Na verdade, primeiro se abre um portão de ferro, logo uma porta de vidro, e aí sim vem o portal… para uma viagem no tempo, infantil, cinematográfica, musical. Amilton Simmer, 66 anos, nos recebe na porta de casa, em Cariacica. O corredor de acesso da residência já é uma atração de se esquecer do que passa lá fora.
À direita, quadros dos irmãos Lummière e de clássicos do cinema já denunciam uma das paixões do anfitrião. À esquerda, grandes estantes reúnem brinquedos antigos, movidos a corda, vapor ou até mesmo areia.

Os poucos passos que conduziriam aos cômodos da casa podem durar horas se acompanhados de Amilton, que conhece bem os objetos e consegue mostrar seus usos – muitos de forma mecânica e analógica, pois a maioria das peças são anteriores à energia elétrica – e tirar histórias impressionantes de cada uma.
Ainda no corredor, depois dos brinquedos, entramos num verdadeiro museu musical, com incríveis aparelhos de som antigos. De um grande armário, abre-se as portas para observar por dentro um Orchestrion alemão de 1855, raríssimo de encontrar – segundo o dono seria único na América Latina. Funciona como uma orquestra automática, tendo quatro instrumentos internos (piano, xilofone, tarol, tambor e prato), acionados de forma mecânica por um rolo com marcações que acionam os instrumentos, gerando belas melodias. Estava em uma grande fazenda no interior de São Paulo quando foi levado a leilão, arrematado por R$ 60 mil e restaurado para funcionar perfeitamente por um amigo de Amilton.
“Num museu tem uma peça dessa dentro do vidro, ninguém fala, ninguém mostra. Aqui não, aqui eu ponho pra olhar”, diz, enquanto mexe num realejo de origem espanhola, acionado por manivela, e faz o som do equipamento ecoar, misturando-se com os ruídos de carros de som e ônibus que passam na Expedito Garcia. Praticamente tudo que ele tem ali funciona.
O rosto de nosso anfitrião se enche de alegria para mostrar e demonstrar cada invenção, que para uns podem parecer arcaicas mas que são definitivamente engenhosas, e contribuíram para a evolução tecnológica que hoje vivenciamos.
Na primeira sala, em anexo ao corredor, mas já isolada do barulho da rua, o sofá e o móvel de TV estão rodeados por grandes jukebox, máquinas automáticas de música, fabricadas décadas atrás, mas com um som que permanece impecável, conforme nos demonstra.

O número total de peças não foi contabilizado pelo proprietário. Um papiro trazido do Egito, um fonógrafo de 1877 da empresa de Thomas Edson, uma bomba de gasolina de 1929, uma bicicleta de 1888 com farol de carbureto, um telefone da década de 1930 que ainda recebe ligações, animais empalhados, miniaturas de carros antigos, chaveiros, máquinas de pinball temáticas, um relógio com “garantia” de 100 anos, uma câmara escura, precursora da fotografia, são algumas das coisas que é possível encontrar na casa do colecionador, ainda antes de chegar ao local de sua maior paixão.
Um sonho de cinema
Nascido em Paraju, distrito de Domingos Martins, Amilton Simmer lembra bem da sensação de sua versão menino quando um alemão fugido da guerra chegou na região trazendo em suas malas um lambe lambe, um gramafone e um projetor da época, idêntico a um que hoje ele guarda. “Aos domingos ele levava um projetor desses para passar uns curtas e documentários. As carteiras iam para o canto da sala, uma mesa era colocada no meio com o projetor e as crianças sentavam no chão”, lembra, carregando ainda algum nível de sotaque que lembra de sua origem no interior. Como as construções de origem alemã geralmente tinham paredes escuras, o projetista improvisava um lençol de cama para servir como tela de cinema.
Amilton liga o equipamento e nos mostra: “Quando ele ligou o projetor eu ouvi esse barulhinho aqui… eu ouvi esse barulho, vi a imagem cheia de riscos, os carreteis com o filme rodando. Naquela época eu tinha cinco anos e veio de dentro de mim que era isso que eu queria. E não larguei o cinema mais não”, conta.

Três anos depois, aos 8, a família se mudou para Cariacica. Seu pai, comerciante, passou pela região e resolver comprar um terreno ali – com um maço de dinheiro vivo que levava, segundo conta o filho. O que hoje é um polo comercial, era ainda um local pacato mas em crescimento. Amilton se lembra que próximo dali podiam caçar paca, tatu, macaco.
Em 24 de abril 1970, quando o menino tinha 11 anos, foi inaugurado próximo de sua casa, na própria avenida, o Cine Colorado, que funcionou por mais de uma década e marcou época no município. O colecionador mostra uma foto que registra uma multidão na entrada do cinema. “Eu estava lá no dia da inauguração”, recorda.
Curioso, o menino logo deu um jeito de fazer amizade com o projecionista. Ajudava a limpar o cinema, limpar banheiro, trocar o letreiro. “Queria saber qual era a magia que tinha dentro daquela cabine, não imaginava que era um projetor desses daqui”, diz ao lado de dois projetores movidos à carvão que guarda lado a lado na antessala do Cine Milton, espaço que criou em sua casa. Explica que eram necessários dois projetores, pois os rolos de filme tinham apenas 20 minutos de projeção, sendo preciso alternar entre eles para passar todos os rolos que compunham um filme de longa-metragem.
Mas isso ele só foi saber muito tempo depois. “Só o dono do cinema, o gerente e o projecionista podiam entrar na sala. Fiquei triste. Mas hoje tenho um cinema dentro de casa, que foi um sonho que passei a vida toda querendo”, celebra.
Ele é capaz de explicar o funcionamento do projetor à carvão, falar do arco voltaico, a forma de ligar, os cuidados necessários e muito mais. Também nessa mesma antessala, é possível passear pela história do cinema, que é a história das imagens em movimento. Um quadro registra foto de uma pintura rupestre de um animal que simula movimento. As primeiras projeções humanas, diz, vêm do fogo que projetava as sombras nas paredes das cavernas.

Amilton nos mostra um flipbook, em que as páginas passadas rapidamente e em sequência criam a sensação de uma história contada em movimento, um zootropo, máquina criada em 1834, que ao ser girada transmite ilusão de movimento. Um cinetoscópio, aparelho de exibição individual, também está presente no acervo, permite que o espectador olhe para dentro da caixa e visualize uma sequência de fotos formando movimento. No caso do Cine Milton, o espectador pode testar a máquina olhando um “filme” com Chaplin, uma luta de boxe ou um “pornô” de época, obviamente bastante recatado para os padrões atuais. O cinetoscópio precederia por pouquíssimo anos o cinematógrafo dos irmãos Lumière, que projetaria as imagens em movimento não dentro de um aparelho mas numa tela externa, sendo assim um marco da fundação da sétima arte, o cinema.
Na pequena antessala que serve de mini museu do cinema, o proprietário ainda simula uma bilheteria, reúne fotos de antigos cinema do Espírito Santo, incluindo o Cine Colorado, e antes de entrarmos faz soar o sinal sonoro que costumava tocar antes das sessões de antigamente, avisando ao público que podia adentrar a sala.
E assim entramos, finalmente, na pequena sala de cinema pessoal do Cine Milton. O local já foi o jardim da casa da família, mas num período de escassez de água, Amilton Simmer resolveu dar ao local outra função, construindo, com ajuda de um pedreiro, o espaço para projeção. Começou com duas poltronas confortáveis, para assistir filmes com a esposa. Logo resolveu ampliar e hoje a sala conta com 18 lugares, duas colunas gregas ao lado da tela, a reprodução de uma imagem do teto da Capela Sistina e arandelas (luminárias), que pertenceram ao Cine Juparanã, que funcionou no Centro de Vitória entre 1967 e 1980.
Na pequena sala, o projetor não é antigo, pelo contrário, é digital, com ótima resolução – que junto a um áudio excelente oferece uma experiência cinematográfica de qualidade para quem tiver o privilégio de sentar numa das poltronas reclináveis do Cine Milton. Ali eventualmente acontecem sessões privadas e já teve até lançamento de filme.

Mas correrias do cotidiano não nos permitem o luxo de passar mais duas horas por ali para assistir a um filme completo. Ainda assim, o proprietário nos oferece assistir ao menos o comecinho de uma obra. Devidamente instalados, abrem-se as cortinas vermelhas que tampavam a dela, mais uma experiência nostálgica de tempos que nem vivemos. “O massa do cinema, do teatro e do circo é a cortina”, celebra Amilton. Assistimos ao início sanguinolento de Gladiador, obra vencedora de cinco Oscars, na versão dublada.
Xô, depressão!
“Todas as coisas que eu queria ter no passado e não tinha condição, estou realizando”, diz nosso entrevistado. Não só coisas materiais, pois também falamos de um colecionador de viagens. Nos últimos anos, Amilton Simmer viajou por 25 países, “escolhidos a dedo” em Europa, África, Ásia. Ano passado viajou com o sobrinho à Chicagoland Show, uma feira de antiguidades nos Estados Unidos, com destaque para máquinas jukebox, pinball e outras. De quebra, realizou o sonho que carregava a 50 anos, desde a adolescência, de conhecer a Disney. “Aproveitei igual uma criancinha, fui em tudo que eu tinha direito”, afirma.
Seu menino interior, vindo do interior, porém, ainda carrega mágoas. Lembra de três surras que tomou do pai ainda criança: quando foi ao cinema, ao circo e ao parque. Quando cresceu e ganhou corpo, um dia quis se vingar e revidar esse passado mas seu pai não cedeu às provocações, o que o filho até hoje agradece. “Eu já teria morrido de arrependimento”, afirma.
Depois de adulto, formado em curso técnico, trabalhava muito. Especialista em motor elétrico, era bobinador. Lembra que bebia e fumava em excesso, o que o levou à depressão. Há cerca de 10 anos, depois que o pai faleceu e a mãe foi morar com a irmã em outra casa, começou a transformar o espaço de sua residência para se tornar o que é hoje, uma casa-museu cuidada com esmero. “Montei isso e você acredita que a depressão acabou? Os remédios foram todos para o lixo, nunca mais me deu. Assim como vocês estão conversando comigo, eu mostrando as coisas, é um santo remédio”, considera o colecionador.

Quando o espaço ficou pronto, o proprietário começou a postar suas antiguidades e a sala de cinema nas redes sociais, o que chamou a curiosidade de amigos, que pediam para visitar. Logo, a imprensa também passou a se interessar pela curiosa história. Mas o local não tem horário de funcionamento nem é aberto ao público. “Eu queria ter um espaço para receber todo mundo, o prazer do colecionador é mostrar sua coleção. Mas é dentro da minha casa”. Mesmo assim, por vezes, ele abre suas portas e dedica seu tempo a receber amigos e convidados. Uma forma de conhecer o espaço, é pelo Instagram, onde ele posta sobre o acervo, visitas recebidas e reportagens sobre o local.
“Às vezes perguntam no Instagram se podem visitar. Quando eu vejo que a pessoa está muito interessada, que gosta de cinema, é apaixonado, eu abro exceção e deixo vir”, afirma, já deixando a dica para o leitor interessado. O Instagram é @cinemilton. A visita não tem custo financeiro. “Nunca fiz isso pensando em lucro. Se compro uma coisa não penso em um dia vender, quero tê-las por toda a vida”, diz o colecionador. “Não tenho filhos, então não sei quem vai ficar com minhas coisas”, pontua.
Em outra ocasião, uma jovem visitante, ao ouvir a mesma frase, disparou de supetão: “Então me adota”. O passado continua presente nos olhos do futuro.