Quinta, 02 Mai 2024

Uma câmera na mão e mil ideias na cabeça

Uma câmera na mão e mil ideias na cabeça
Texto: Henrique Alves
Fotos: Rogério Medeiros (1 e 2) e Arquivo Pessoal (3 e 4)



A ascendência libanesa não tardou a se manifestar. Margô deixa o MacBook aberto sobre a mesa e se dirige toda serelepe à cozinha; em segundos, retorna com “uma receita de família”, como definirá instantes depois com orgulho: palmito ao molho de tahine e pão árabe. Estupendo. Mais alguns segundos, deixa a mesa novamente. Cozinha. E reaparece com um refrescante suco de abacaxi com hortelã.
 
A inquietude que a levou a mimosear à libanesa, ou seja, comida sempre à mesa, repórter e fotógrafo, é a mesma que orienta o itinerário profissional da jornalista-fotógrafa-cinegrafista Margô Dalla. Para quem não conhece Margô, seria legítima a surpresa ante a notícia de que ela foi a primeira operadora de câmera do Espírito Santo e, talvez, a primeira, ou uma das, do Brasil. 
 
Mas para quem a conhece, seria ingenuidade. A mulher é uma batalhadora. 
 


Apenas de quando em quando Margô dá o ar da graça em Vitória. Em 2006, casou-se com um cientista holandês que desenvolve projetos na área da nanotecnologia. Conheceram-se em Brasília - à época, ela assessorava o então deputado federal Frank Aguiar. Moram há cinco anos numa área central de Amsterdã que reúne velhos hippies e beatniks. Ela adora. É como se os celestiais anos 60 não tivessem terminado.
 
Precisamente, ela não sabe dizer se, sim, estamos diante da primeira “câmerawoman” capixaba, ou se não. Mas diz que sim. E seu argumento é eloquente: os artistas célebres não escondiam a surpresa ao bater o olho no estúdio e ver uma mulher de  pouco mais de 1,60 de altura amparando um trambolho de 18 quilos nos ombros.
 
Margô Dalla tinha 18 anos e fazia Artes Plásticas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) quando Hélio Dórea a convidou para se juntar à equipe do Semanário, um caderno de A Gazeta comandado pelo colunista social. Não houve motivo específico para o convite. Como Margô e Hélio já se conheciam, talvez tenha sido intuição, o que a memória dela reforça: “Ele apenas achou que eu tinha o perfil para o trabalho”.
 
No bom sentido, Margô caiu fulminada quando conheceu uma redação de jornal; via-se em cada canto daquele organismo inquieto e dinâmico, o caos fervilhante era canção melíflua. Margô começou fazendo essas entrevistas rápidas, estilo ping-pong, para o Semanário; depois seria realocada para a editoria de Cidades.
 


A Margô-repórter não anulou a Margô-estudantes-de-artes. Ambas se cruzaram quando ela fez a disciplina de Fotografia e, concomitante, se integrava a um grupo de fotógrafos que se reunia regularmente na Rua Barão de Monjardim, no Centro de Vitória. Comprar a primeira Nikon foi um processo natural. Não demorou e virou fotógrafa de A Tribuna e A Gazeta.   
 
Em Vitória, Margô deixou o carro na garagem, sintomática atitude de quem já assimilou o modo de vida da capital holandesa: uma das cidades mais simpáticas às magrelas do mundo, Amsterdã tem mais bicicletas que moradores. São cerca de 800 mil habitantes e 880 mil bikes. 
 
Uma delas é de Margô. Ela inclusive arregala os olhos de satisfação ao comentar a Bicicletada Calorosa, realizada no último dia 31, em Vitória, e da qual participou. Nus, ou quase, bicicleteiros da Grande Vitória se reuniram na Praça do Ciclista (a do Cauê, em Praia da Santa Helena) para dar um rolezinho veranil pela capital. Para ela e para todos, se deslocar de bike significa mais saúde.
 
Fora das duas rodas, a vida na Holanda vai bem, obrigado. Margô desenvolve prolíficos trabalhos jornalísticos em várias frentes. Primeiro, é uma das editoras do projeto People From Brazil, um blog que, grosso modo, cadastra artistas brasileiros espalhados pelo globo. 
 
Também participa da DoBrasil, empresa brasileira sediada em Amsterdã que presta serviços de publicidade, marketing e jornalismo. Na Holanda, é uma referência entre o público brasileiro. É possível vê-la, microfone em punho, entrevistando artistas brasileiros de passagem em solo holandês, como Gilberto Gil, Djavan e Gal Costa. 
 
Em 2013, realizou quatro exposições fotográficas: três em Amsterdã, com seu trabalho sobre as paneleiras de Goiabeiras, e uma em Viena, capital da Áustria.
 


Orlando Bonfim dirigia o Departamento Estadual de Cultura (DEC) e convidou Margô para ser fotógrafa do órgão. Aí começa a nascer nossa camerawoman.  Estamos em fins dos anos 70.
 
A TVE era uma autarquia ligada ao DEC, um mundo habitado por homens robustos operando o faraônico maquinário do telejornalismo de então. As câmeras eram de cinema, pesadíssimas. Que mulher se deslumbraria por semelhante ambiente? Só Margô mesmo: quando ela adentrou seus estúdios pela primeira vez, adentrou antes os umbrais de uma terra encantada.
 
Margô solicitou ao DEC licença para fazer estágio na área de produção de telejornalismo da TV Gazeta. Foram quatro meses corridos, acompanhando equipes, futucando equipamentos, sempre conciliando o trabalho no órgão cultural. Findo o estágio, brota-lhe a ideia fixa; ser câmera da TVE. Permissão concedida. 
 
Entre documentários, séries jornalísticas e programas infantis, foram tantas produções que ela hoje não lembra para qual empunhou pela primeira vez aquelas penosas lentes. Houve, claro, uma estranheza inicial entre os colegas do sexo oposto ao ver uma mulher cinegrafista. Mas logo assimilaram a novidade. 
 
Falando em estranheza, ela recorda uma solenidade no Palácio Anchieta com a presença do então presidente General João Baptista Figueiredo. A etiqueta recomendava saia às mulheres. Os problemas é que, um, os cinegrafistas iriam se posicionar sobre um tablado e, dois, tínhamos uma moça entre eles. 
 
Margô não hesitou: se enfiou numa calça jeans. Pronto. Começou a discussão: pode ou não pode? Seria de bom tom uma rapariga de saia acima das cabeças de respeitáveis varões? Após muitas indas e vindas, abriu-se a exceção. Fosse um Médici da vida, sei não... 
 


Em 84, após quatro anos de labuta, Margô se desliga da TVE. A grana ali era parca e sua primeira filha está para nascer. A solução foi distribuir currículos para o Brasil inteiro. 
 
Com vencimentos bem mais generosos que a capixaba TVE, a soteropolitana TV Aratu contrata a jovem cinegrafista. O plano de Margô era organizar a vida em Salvador para depois trazer e estabelecer marido e filha. Mal sabia ela que três meses depois a Ilha do Mel a chamaria de volta. 
 
A Rede Tribuna reorganizava sua TV e a convidou para ser diretora de imagem. Margô capitaneava o alvoroço de programas ao vivo, seus dois olhos governando cinco câmeras. Lembrem que não estamos em 2014.
 
Encontramos Margô no seu lar doce lar capixaba, um apartamento ao oitavo andar do Comodoro, um dos primeiros edifícios nascidos na Avenida Saturnino de Brito, na Praia do Canto, Vitória. O charme antiguinho de sua arquitetura, a plasticidade da fachada, um mural do Samu no hall de entrada, o destaca facilmente ante a cafonice espetaculosa dos espigões que o rodeiam.
 
O interesse pela cultura popular capixaba se expressa nos dois Wagner Veiga das paredes da sala, representações da Festa de São Benedito e do Ticumbi. Na cozinha, um lindíssimo Elpídio Malaquias sobressai entre vários outros pequenos quadros. 
 
Margô relembra os diversos projetos sobre a nossas manifestações populares de que participou, seja em foto ou vídeo, em especial o documentário sobre a xamã guarani Tatantin-Roa-Retée, que na passagem dos anos 60 para os 70 saiu de São Miguel, no Rio Grande do Sul, em busca da Terra Sem Males, vindo a encontrá-la em Aracruz.  
 
Hoje Margô incumba um livro de ensaios fotográficos. O nome, provisório: Passagens Pelo Mundo, reunindo suas impressões visuais de Dubai, Bali, Singapura, entre diversas outras onde andou. Há também outro projeto com fotografias de seringais, cafezais, alambiques e canaviais do Brasil.
 
Essa mulher que, mesmo em avançado estado de gestação, a barriga quase estourando, suportou uma câmera nos ombros e uma convulsão social na Cidade Alta apenas para registrar uma fúria popular contra o Reverendo Moon, o povo forçando uma invasão à casa em que o bisonho líder religioso se encontrava e Margô em meio àquela turbulência toda, saindo afinal ilesa, e com a matéria igualmente ilesa... Essa mulher não vai ficar parada mesmo.

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