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Comunidade de São Mateus recebe certificação quilombola

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Divulgação

A comunidade quilombola do Córrego do Jacarandá, em São Mateus, norte do Espírito Santo, recebeu nesta sexta-feira (5), o reconhecimento oficial da Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, por meio da Portaria nº 357/2025, publicada Diário Oficial da União. Para os representantes da Associação Quilombola do Córrego do Jacarandá, a medida “muda o rumo de uma luta de mais de um século” e abre caminho para os próximos passos do processo de regularização fundiária, que dependem agora do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), como explica Geraldo Mota, presidente da organização.

A portaria, assinada pelo presidente da Fundação Palmares, João Jorge Santos Rodrigues, confirma que a comunidade “se autodefiniu como remanescente de quilombo”, conforme previsto na legislação federal que regulamenta os direitos territoriais desses povos. O documento registra formalmente o Quilombo Córrego do Jacarandá no Livro de Cadastro Geral nº 22, sob nº 3323.

A conquista chega após décadas de deslocamento forçado, apagamento territorial e enfrentamento com grandes empresas do setor de monocultura de eucalipto, principalmente a Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria e ex-Aracruz). Em dossiê entregue à União, as famílias descrevem uma verdadeira “diáspora”, associada à expansão da indústria de celulose e à expulsão violenta de moradores do território tradicional ao longo do século XX.

“O progresso representado pelos pastos e monoculturas desalojou milhares de famílias quilombolas”, relata. O documento aponta que apenas 10% dos quilombolas sobreviveram territorialmente ao processo na região do Sapê do Norte, que abrange os municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
Para a secretária da Associação Quilombola, Cida Mota, o reconhecimento abre um novo capítulo na luta pelo território.

“Agora vai mudar bastante, porque vamos ter o território do Jacarandá, e nossa luta é para ir para cima da terra. O Incra já foi notificado e estamos muito felizes, mesmo sabendo que não foi fácil chegar aqui. Tivemos muitas batalhas e lutas, mas graças a Deus, a gente conseguiu”, completa, sem esconder a emoção ao confirmar o recebimento da portaria.

O grupo reivindica que o Incra cumpra imediatamente a etapa seguinte do processo, que consiste no cadastramento das famílias, a identificação da ocupação histórica e a restituição das terras tradicionais. O pedido já constava no documento remetido ao Ministério Público Federal (MPF) à Fundação Palmares, no início do ano, no qual a Associação solicitou, entre outros pontos, “a imediata instalação da sede da comunidade no território tradicional”, com apoio de infraestrutura. Segundo Cida, essa é hoje uma das prioridades.

“Foram mais de cem reuniões, muito protocolo, muita manifestação no Ministério Público. Nada de promessa de político, porque promessa passa. Nosso procedimento foi protocolar e encaminhar cada documento que levantávamos e foi assim que chegamos até aqui”, relata Geraldo. “Nossa conquista é o reconhecimento de um território que é nosso, documentado, com história, antepassados e origem”.

Ele explica que o território do Jacarandá “foi apagado do mapa” durante a expansão da monocultura de eucalipto. “É como uma lagoa que a empresa aterra e constrói por cima. As histórias vão morrendo. Mas os antigos ainda lembram. E nós resgatamos essa história”, relatou. O presidente da associação comunitária cita o caso do patriarca Hilário Thomaz dos Santos, nascido no Jacarandá em 1908, documento que embasou parte do pedido enviado ao governo federal. A certidão de nascimento do ancestral, anexada ao dossiê da comunidade, foi usada como prova material do vínculo histórico com as terras.

Segundo ele, cerca de 90% das famílias quilombolas do Sapê do Norte foram deslocadas nas últimas décadas. “As empresas ofereciam uma melhora, e o povo acreditou. Mas perderam a terra e a identidade. As gerações antigas foram se partindo, e as novas já não tinham força para lutar”, recorda.

Geraldo também denuncia que o processo de expulsão foi marcado por violência e grilagem, citando práticas documentadas desde a década de 1960, quando a Aracruz Celulose se instalou no norte do Estado. A comunidade descreve que agentes ligados à empresa Celulose (absorvida pela Fibria e depois pela Suzano) utilizaram “testas de ferro” para legitimar terras devolutas e transferi-las ilegalmente para a empresa. “Foi um deslocamento forçado. Usaram métodos enganosos e violentos para tirar nossos antepassados das terras, sem se preocupar com os problemas sociais que criaram”, ressalta.

Com a publicação da Portaria Palmares, a comunidade solicita que o Incra identifique formalmente a ocupação histórica do Córrego do Jacarandá, apresente os mapas originais da região, e realize, em caráter de urgência, o cadastramento de todos os remanescentes quilombolas, etapa indispensável para a titulação. O grupo reivindica ainda que o órgão federal autorize a reinstalação imediata da sede da Associação dentro do território tradicional, garantindo condições básicas de infraestrutura (energia, água e transporte) para permitir a reorganização comunitária e a retomada da vida coletiva no local.

Além disso, exige que os governos municipal, estadual e federal sejam acionados para cumprir suas obrigações constitucionais na garantia da “reposição” das famílias em condições dignas e a a reconstrução econômica e cultural da comunidade. Outro pedido é pela realização de uma audiência pública, que reúna remanescentes, vizinhos do território e autoridades dos três níveis de governo, para discutir a restituição territorial e dar transparência ao processo.

Para o presidente da associação quilombola, a urgência tem rosto e nome. “Precisamos voltar urgentemente para nossas terras. Tem pessoas idosas, doentes, que não querem morrer sem pisar de novo no chão que é delas”, afirmou. Ele explica que o próximo passo será discutido em um colóquio convocado para o próximo dia 13 no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Quilombola, onde o grupo espera a presença do Incra. “Esse vai ser o próximo passo. É ali que vamos construir o cronograma para a retomada”, explica a secretária da associação.

O objetivo, a partir da certificação, é reconstituir a produção agrícola tradicional, retomar antigas farinheiras, reconstruir modos de vida ancestrais e restabelecer os vínculos culturais e territoriais rompidos ao longo das décadas de desterro impostas pela expansão da monocultura de eucalipto, apontam Cida e Geraldo. Eles reforçam que a alegria pela conquista se mistura com a urgência de seguir adiante em direção a uma reparação histórica atrasada. “Mais de 50 anos de opressão não calaram o nosso grito. Agora o Estado reconheceu. Falta devolver o que é nosso”, reitera o presidente da associação.

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