Debates cumpriram recomendação do MPF, que alertou para conflitos fundiários

A Fundação Cultural Palmares (FCP) realizou, nesta semana, uma série de rodas de diálogo e visitas técnicas a comunidades que buscam certificação como quilombolas na região do Sapê do Norte, que abrange os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Espírito Santo. A missão ocorreu em territórios indicados pelo Ministério Público Federal (MPF), que no mês passado, emitiu recomendação formal à entidade para adoção de medidas complementares relacionadas à análise dos processos de reconhecimento.
A equipe visitou as comunidades do Córrego do Jacarandá, em São Mateus, e Braço do Rio, em Itaúnas, Conceição da Barra, onde moradores relataram conflitos fundiários e pressões da Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) que exploram áreas quilombolas. Segundo a Fundação Palmares, as ações tiveram como objetivo prestar esclarecimentos sobre direitos, etapas da certificação e encaminhamentos de demandas antigas.
Um dos representantes da comunidade Jacarandá, Geraldo Motta relatou que a área pleiteada sofre pressões de empresas de eucalipto, mas o grupo busca resolver o conflito por meios legais. Ele acrescenta que o pedido da comunidade é por uma fração da área ancestral, suficiente para retomar a vida comunitária e produtiva. “Nós só estamos pedindo uma parte da nossa terra, para viver, plantar, produzir, fazer nossas casas e criações. Não é questão de dinheiro, de indenização. O que eu sonho é a nossa terra, se nós tivermos direito dentro da lei”, ressaltou.
A comunidade Jacarandá, formada por famílias descendentes de quilombolas do Sapê do Norte, iniciou o processo de certificação na Fundação Palmares há cerca de um ano. A segunda secretária da associação, Conceição Aparecida dos Santos Motta, conhecida como Cida, explicou que o reconhecimento resulta de um processo de pesquisa familiar e busca por registros históricos.
“A nossa história começou quando ouvimos nossos avós falarem do Sapê do Norte e do Córrego Jacarandá. Fomos buscar o registro dos nossos avós e descobrimos que eles nasceram nessa região. Fizemos o estatuto, a ata, e mandamos nossos documentos para a Palmares, para sermos reconhecidos como remanescentes de quilombolas”, contou.
Ela avalia que a visita técnica da Fundação e as rodas de diálogo serviram para tirar dúvidas de diversas comunidades, que também discutiram dificuldades no acesso à terra, impactos ambientais e a importância do reconhecimento oficial como forma de garantir a permanência em seus territórios. “As nascentes estão sendo destruídas, e durante a reunião, muitas pessoas falaram sobre drones que passam sobre as comunidades e lançam venenos que caem nas plantações. A gente ouviu muito isso nas rodas de conversa com a Palmares e o Ministério Público”, relatou Cida.
Para ela, a certificação representa um primeiro passo para assegurar proteção e segurança jurídica. “A Suzano tem terra em cima de muitas áreas de quilombo. Sabemos que pertencem aos redutos quilombolas, e muitas comunidades têm sofrido com isso. Mesmo quem está sobre a terra enfrenta dificuldade para permanecer, para viver a sua história e a sua cultura”, pontuou.
O Sapê do Norte concentra a maior parte do território quilombola do Estado. As comunidades enfrentam desafios históricos relacionados à degradação ambiental e esgotamento de recursos hídricos provocados pelos eucaliptais da Suzano, acusada de grilagem de terras desde quando se instalou na região, ainda na época da ditadura militar.
As populações tradicionais apontam degradação, concentração fundiária e violência promovidos pela empresa, responsável por uma série de crimes, como “roubo de água, desvio e morte de rios, perda de diversidade, e uso de agrotóxicos associados ao câncer”. Atualmente, há seis áreas em conflito com a Suzano no Espírito Santo, sendo grande parte terras públicas, cedidas pelo governo ao mesmo grupo que permanece no comando da empresa. Comunidades relatam casos de violência e intimidação, incluindo sobrevoos de drones sobre quilombos e lançamento de veneno sobre plantações. A empresa também lidera a implementação de eucalipto transgênico na América Latina, permitindo o uso ampliado de agrotóxicos.
‘Grave conflito fundiário’
A recomendação do Ministério Público Federal (MPF) à Fundação Cultural Palmares (FCP) orientou a adoção de medidas complementares relacionadas às analises de processos de certificação das comunidades, apontando um “grave conflito fundiário” e preocupações de lideranças antigas da região.
A procuradora solicitou ao presidente da Fundação, João Jorge Santos Rodrigues, que adotasse, no prazo de 30 dias, medidas administrativas como realização de visitas técnicas in loco e diálogos com comunidades vizinhas já certificadas e com organismos quilombolas da região, como a Comissão Quilombola do Sapê do Norte e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
O órgão ministerial afirmou que “tem recebido de lideranças quilombolas há muito tempo conhecidas na região, relatos demonstrando preocupação sobre o aumento de certificação de comunidades quilombolas no Estado do Espírito Santo, algumas sequer conhecidas por lideranças históricas”.
Também informou de denúncias “do surgimento de associações compostas por grileiros que se fazem passar por quilombolas, em razão da notícia de terras devolutas estaduais que seriam destinadas às comunidades quilombolas de São Mateus e Conceição da Barra, em decorrência de sentenças proferidas em ações civis públicas ajuizadas pelo MPF em face da Suzano Celulose e do Estado do Espírito Santo”.