Fazenda em São Mateus segue sob embargo até efetivação de estudos e compensações

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) emitiu, nesta semana, um parecer sobre o empreendimento da Suzano S.A (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) na Fazenda Cachoeira do Cravo, em São Mateus, no norte do Estado, onde houve a destruição parcial de um sítio arqueológico associado à memória da líder negra Constância D’Angola. Apesar do pedido da empresa para reclassificar o projeto como de menor impacto, a autarquia federal manteve áreas sensíveis sob enquadramento rigoroso, condicionando qualquer retomada de atividades a estudos aprofundados e medidas de preservação.
Apesar de o parecer assinado pelo superintendente do Iphan no Espírito Santo, Joubert Jantorno Filho, reconhecer parcialmente o pedido, ele alerta que a subsolagem é considerada atividade impactante, pois “compromete a estratigrafia arqueológica”. Assim, áreas já impactadas até 25 de julho foram enquadradas como Nível II, com a obrigação de caminhamento sistemático a cada 10 metros e registro das intervenções, mas outras regiões, sobretudo em um raio de 250 metros do sítio arqueológico e da antiga estrutura de senzala, foram mantidas em Nível III.
Nestes casos, só será possível avançar com a execução de um Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico com a inclusão de prospecções de sub-superfície, delimitação dos vestígios e definição de medidas de salvamento.
Em áreas de Nível II, a Suzano deverá apresentar uma Proposta de Acompanhamento Arqueológico contendo cronograma de obras, metodologia de campo, currículos da equipe técnica e poligonal em formato georreferenciado. O acompanhamento terá que ser feito em tempo real por arqueólogos durante cada frente de trabalho, com entrega de relatórios parciais e finais.
Nas áreas classificadas como Nível III, será obrigatório elaborar um Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (Paipa), com estudos contextuais, inventário de sítios, medidas mitigadoras e plano de conservação de eventuais achados
Em caso de descoberta de vestígios durante as intervenções, os arqueólogos terão autonomia para determinar a paralisação imediata da obra no trecho afetado até a manifestação do Iphan. “A não apresentação, sem justificativa técnica fundamentada, dos relatórios previstos, acarretará na paralisação da obra sem prejuízo das sanções aplicáveis ao arqueólogo coordenador”, registra o termo de referência que detalha as obrigações.
Outro ponto central é a obrigação de apresentar medidas compensatórias aos danos já causados. O Iphan determinou que o relatório final deverá indicar tanto a avaliação dos impactos como estratégias de conservação, educação patrimonial e extroversão científica para a comunidade. O superintendente Joubert Jantorno ressaltou que o órgão só concederá manifestação conclusiva favorável às licenças ambientais após a aprovação de todos os relatórios previstos.
No último mês de setembro, a empresa protocolou um pedido para rebaixar seu empreendimento do Nível III para o Nível II da normativa do Iphan, alegando que suas atividades não se tratam de “obras de grande porte”, mas apenas de limpeza, abertura de estradas e subsolagem, “sem remoção de sedimento, apenas descompactação das camadas superficiais”. Na prática, essa mudança reduziria as exigências quanto a estudos arqueológicos e medidas compensatórias.
O empreendimento foi paralisado em julho, após equipes do Iphan constatarem a destruição parcial de um antigo cemitério de pessoas escravizadas. Máquinas da empresa Macplan, contratada pela Suzano, reviraram o solo e expuseram fragmentos ósseos humanos, descumprindo a Instrução Normativa nº 01/2015, que exige avaliação prévia de impacto ao patrimônio arqueológico. O caso levou o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf) a suspender a Licença de Operação (LO), impedindo o plantio de eucalipto e a movimentação de solo no local.
Por ter descumprido a Instrução Normativa nº 01/2015, a Suzano deverá assumir medidas compensatórias em toda a área do empreendimento, que soma 579,8 hectares – embora o cemitério represente menos de 1% do total. O Iphan foi acionado pela vereadora Professora Valdirene (PT), após receber denúncias de moradores sobre a destruição do sítio. Enquanto a multinacional tenta flexibilizar as exigências alegando baixo impacto, os documentos oficiais reforçam que a simples movimentação de solo pode destruir vestígios arqueológicos irreversíveis. A decisão final sobre o desembargo dependerá agora da execução e aprovação dos estudos requeridos.

Histórico de violações
Denunciada há décadas por promover violações contra as comunidades quilombolas do antigo território do Sapê do Norte, que compreende os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, a antiga Aracruz Celulose, hoje incorporada pela Suzano – uma das maiores multinacionais do setor de papel e celulose —, foi acusada de grilagem de terras desde quando se instalou na região, ainda na década de 1970, durante a ditadura militar.
As populações tradicionais apontam degradação, concentração fundiária e violência promovidos pela empresa, responsável por uma série de crimes, como “roubo de água, desvio e morte de rios, perda de diversidade, e uso de agrotóxicos associados ao câncer”. Atualmente, há seis áreas em conflito com a Suzano no Espírito Santo, sendo grande parte terras públicas, cedidas pelo governo ao mesmo grupo que permanece no comando da empresa. Comunidades relatam casos de violência e intimidação, incluindo sobrevoos de drones sobre quilombos e lançamento de veneno sobre plantações. A empresa também lidera a implementação de eucalipto transgênico na América Latina, permitindo o uso ampliado de agrotóxicos.

Memória e resistência
A área onde hoje se encontra o sítio funerário, chamado popularmente de “Cemitério dos Escravos”, ou “Cemitério Particular da Fazenda Cachoeira do Cravo”, está localizada em terreno pertencente à antiga estrutura fundiária de uma propriedade escravocrata, ativa até meados do século XIX. A fazenda foi fundada na segunda metade do século XIX pelo major Antônio Rodrigues da Cunha, também conhecido como Barão de Aymorés, e representou um centro de produção de açúcar, cafeicultura e atividade comercial fluvial, com uso da mão de obra escravizada. O sítio antigo cemitério é apontado pela tradição oral como o local de sepultamento de dezenas de pessoas escravizadas que viveram e morreram na área.
Entre essas histórias, ganha destaque a de Constância de Angola, mulher que teve seu filho morto de forma brutal, queimado vivo em uma fornalha por ordem da senhora Francelina Cardoso Cunha. Segundo os relatos, Constância escapou da fazenda após o assassinato e atuou em movimentos de resistência com lideranças quilombolas como Viriato Cancão-de-Fogo, ajudando outras pessoas a fugir da escravidão. Ela teria sido morta em confronto com o capitão-do-mato José de Oliveira, conhecido como “Zé Diabo”, e enterrada ao lado do filho, com autorização do major Antônio da Cunha. Sua memória é lembrada por iniciativas como a Casa de Constância D’Angola e reconhecida como um marco da resistência negra no Espírito Santo.
A Fazenda Cachoeira do Cravo é reconhecida pelo Iphan como um território de memória negra, ligado a trajetórias de resistência e à construção da identidade local. Segundo a análise arqueológica, os vestígios encontrados na área – materiais e imateriais – revelam camadas de memórias relacionadas à exploração econômica, à dor e à resistência.
A área é protegida por legislação municipal específica: a Lei nº 39/1989, de 24 de agosto de 1989, que institui o Conjunto Histórico “Fazenda Cachoeira do Cravo”, no distrito de Nestor Gomes, e define, como bens que compõem esse conjunto: “a Casa da Fazenda do Cel. Cunha Júnior, a Casa da Venda do Barão de Aymorés (antiga pila de café e usina de açúcar), o cemitério dos escravos e a ponte da Cachoeira do Cravo”.
O chefe da Divisão Técnica do Iphan, Yuri Batalha de Magalhães, também destacou a importância arqueológica e histórica da Fazenda Cachoeira do Cravo. Segundo ele, a área está inserida no contexto do rio Cricaré, onde há registros de ocupações indígenas muito antes da chegada dos portugueses. “É uma região extremamente rica em recursos naturais, o que favoreceu o assentamento de diversos grupos indígenas ao longo do tempo. Inclusive, é nas proximidades que se deu a Batalha do Cricaré, um dos principais confrontos entre indígenas e forças coloniais portuguesas no período colonial”, explicou.
A partir do período do Brasil Colônia, a região passou a concentrar fazendas voltadas à produção de açúcar, café e outras atividades econômicas, com o uso de mão de obra escravizada. “Agora, o que a gente precisa levantar são justamente as histórias que não foram registradas oficialmente, como as dos grupos quilombolas. Existem comunidades ali cuja trajetória ainda não foi completamente documentada, e isso é essencial para fortalecer a preservação dessa memória”, defendeu.