Movimentos cobram que Senado rejeite proposta que dificulta acesso a abortos legais
Um levantamento da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto (NPLA) mostra que, entre 2022 e 2025, mais de 47 mil partos de meninas com até 14 anos ocorreram no Brasil. O estudo, baseado em dados oficiais do Painel de Nascidos Vivos do Ministério da Saúde, aponta 689 partos no Espírito Santo nesse período. A entidade denuncia que, apesar de a gravidez infantil ser consequência direta de estupro de vulnerável, crime previsto no Código Penal, o País continua falhando em garantir o direito à interrupção legal da gestação para meninas vítimas de violência sexual.

Somente em 2025, dados preliminares do Painel de Monitoramento de Nascidos Vivos indicam 100 nascimentos de bebês com mães de até 14 anos no Espírito Santo. No Brasil, já são mais de 7,4 mil registros neste ano. Em 2024, foram 188 casos no Estado (de um total de 11,9 mil no país), e em 2023, 186 (de 13,9 mil nacionalmente).
De acordo com a Frente pela Descriminalização e Legalização do Aborto do Espírito Santo (Flaes), entre 2019 e 2025, mais de 4 mil casos de violência contra crianças e adolescentes foram notificados no Estado, sendo 1.082 meninas vítimas de violência sexual. A maioria das ocorrências ocorreu dentro de casa. Em três casos, as meninas tentaram tirar a própria vida após os abusos.
Diante desse cenário, organizações feministas e de direitos humanos convocam a sociedade a pressionar o Senado a rejeitar o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/2025, aprovado pela Câmara dos Deputados nesta semana. A proposta suspende os efeitos da Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), conhecida como “Criança não é Mãe”. A norma foi construída após ampla escuta de órgãos públicos e sociedade civil, com o objetivo de garantir atendimento humanizado e sigiloso a meninas e adolescentes vítimas de estupro.
A revogação foi articulada pelo deputado Luiz Gastão (PSD-CE), presidente da Frente Parlamentar Católica, que alegou que o texto “violava o direito à vida”. O projeto segue agora para o Senado e, se aprovado, não poderá ser vetado pelo governo federal.
Sete dos dez deputados federais capixabas votaram pela suspensão da resolução: Gilvan da Federal (PL), Dr. Victor Linhalis (Podemos), Gilson Daniel (Podemos), Da Vitória (PP), Evair Vieira de Melo (PP), Amaro Neto (Republicanos) e Messias Donato (Republicanos). Os contrários foram Helder Salomão e Jack Rocha, do PT, e Paulo Foletto (PSB).
O PL foi o partido com maior número de votos pela revogação em todo o País (64 parlamentares), seguido por Republicanos (39), PSD (38), PP (35), MDB (31), Podemos (13), PSDB (9), Avante (5), PDT e PSB (4 cada), PRD (3), Solidariedade (2), PV (1) e Cidadania (1).
Em nota, a Frente Nacional classificou a votação como “um ataque frontal à proteção da infância e aos direitos reprodutivos” e convocou mobilizações pelo país. “Se o deputado Hugo Mota e seus aliados não se importam com o alarmante número de meninas de até 14 anos obrigadas a parir no Brasil, reafirmamos que nos importamos e não compactuaremos com a tortura de crianças”, diz o comunicado, que classifica a decisão como “um retrocesso brutal que atenta contra a dignidade de meninas e adolescentes”.
A Frente Estadual apoia a convocação de um ato público em defesa da resolução, ainda sem data definida. O movimento lembra que o aborto inseguro é a quarta causa de morte materna no Brasil, e que 90% dessas mortes poderiam ser evitadas. Apenas três hospitais capixabas realizam aborto legal em gestações acima de 22 semanas: o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), em Vitória, e o Hospital Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (Himaba) em Vila Velha, na região metropolitana, e Maternidade São José, em Colatina, noroeste do Estado.

Em muitos casos, meninas precisam ser transferidas para outros estados, aponta a organização, que relembra o caso de uma criança de 10 anos, estuprada pelo tio desde os seis, que teve o aborto legal inicialmente negado em um hospital capixaba. A menina precisou viajar escondida até Recife para realizar o procedimento com segurança, o que, para a Flaes, expôe a falta de preparo das equipes médicas e de proteção institucional. O movimento reforça que meninas, mulheres negras, indígenas e periféricas são as mais afetadas pela negligência do Estado.
“O fortalecimento do SUS e o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito, são questões de justiça reprodutiva e de gênero. Homens trans, pessoas intersexo e não binárias também gestam e devem ter seus direitos garantidos”, afirma a nota.
Em posicionamento oficial, o Ministério das Mulheres destacou que o PDL 3/2025 “cria um vácuo que dificulta o acesso das vítimas ao atendimento” e representa “um retrocesso na proteção de meninas brasileiras”. O órgão ressaltou que, entre 2013 e 2023, o país registrou mais de 232 mil partos de meninas de até 14 anos, e que apenas 154 delas conseguiram acessar o direito ao aborto legal em 2023. “O Brasil fecha os olhos para a violência. Suspender a resolução é falhar com nossas meninas”, criticou.

