Paulo Tupinikim alerta para aumento da insegurança nos territórios tradicionais
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria, pela segunda vez, para declarar que a exigência de um Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas é inconstitucional. O entendimento foi consolidado no julgamento conjunto da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7.582, 7.583 e 7.586, que questionam a Lei nº 14.701/2023, aprovada pelo Congresso Nacional em outubro de 2023.
Apesar disso, a maioria manteve em vigor diversos outros dispositivos da norma criticados por lideranças e organizações indígenas. Para o movimento indigenista, a decisão representa uma derrota parcial. Enquanto o núcleo da tese ruralista foi afastado, permanecem dispositivos que podem fragilizar direitos, aumentar conflitos e dificultar novas demarcações.
Todos os ministros concordaram que a tese do Marco Temporal, segundo a qual só teriam direito à demarcação os povos indígenas que estivessem fisicamente em seus territórios em 5 de outubro de 1988, viola a Constituição Federal. O texto reconhece os direitos territoriais indígenas como “originários”, ou seja, anteriores ao próprio Estado brasileiro, e não estabelece qualquer limitação temporal para esse reconhecimento. Cabe à União apenas demarcar e proteger os territórios.
O coordenador-geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Pyatã, conhecido como Paulo Tupinikim, também questiona o prazo de dez anos fixado pelo relator, Gilmar Mendes, para demarcação das terras indígenas. A liderança recorda que a própria Constituição de 1988 já previa a finalização desse processo em cinco anos, prazo que jamais foi cumprido pelo Estado brasileiro.
Diante desse histórico, considera irreal a expectativa de que centenas de terras indígenas sejam demarcadas em uma década, especialmente em um contexto de resistência política no Congresso Nacional e de fragilização dos órgãos indigenistas. Apenas as terras que não enfrentam nenhum tipo de contestação já somam mais de 400 processos parados, observa, o que demonstra a incapacidade estrutural do Estado de cumprir novos prazos legais.
Entre os pontos mantidos, estão regras que enfraquecem a consulta livre, prévia e informada, direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); que tornam o processo de demarcação mais complexo; que autorizam contratos e parcerias econômicas entre indígenas e não indígenas dentro dos territórios; e abrem a possibilidade de impedimento da atuação de antropólogos nos processos administrativos. Os dois últimos pontos foram alvo de divergência do ministro Edson Fachin e ressalvas dos ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin. A redação final sobre esses temas só será conhecida após a publicação do acórdão.
Organizações indígenas também manifestaram preocupação sobre a manutenção de regras que podem beneficiar ocupantes não indígenas em terras tradicionais. A lei prevê o pagamento de indenização por benfeitorias consideradas de “boa-fé” realizadas até a conclusão do processo demarcatório. O voto do relator limitou parcialmente esse alcance, fixando como marco a declaração dos limites da terra pelo Ministério da Justiça, mas manteve a lógica de indenização. O ministro Edson Fachin abriu divergência, afirmando que esse dispositivo colide “frontalmente” com a Constituição, entendimento acompanhado pela ministra Cármen Lúcia.
Outro ponto sensível é a possibilidade de indenização pelo valor da terra nua, e não apenas pelas benfeitorias, a ocupantes que comprovem posse anterior a 1988. O voto de Gilmar Mendes admite esse pagamento com base em “justo título”, sem exigir comprovação de boa-fé nem título concedido pelo Estado, além de permitir que o ocupante permaneça na área até o pagamento integral da indenização.
Essa lógica pode inviabilizar demarcações diante do orçamento limitado de órgãos como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas, além de prolongar conflitos nos territórios, apontam as organizações em defesa dos direitos dos povos indígenas.
Paulo Tupinikim ressalta que a manutenção desses dispositivos esvazia, na prática, o direito territorial. “Isso, para nós, é ruim. Demarca as terras, mas elas ficam escancaradas para os não indígenas, o agronegócio e os grandes empreendimentos, correndo o risco de fazerem o que quiserem delas”, avalia.
A Lei 14.701 é chamada pelo movimento indígena de “lei do genocídio”. “A partir do momento que retiram o usofruto exclusivo, qualquer um pode explorar o território. Isso traz insegurança, vai trazer conflito e vários problemas”, reforça.

Paulo lembra que, no Espírito Santo, ainda existem casos de posseiros que não receberam indenização mesmo após a homologação das terras, o que impede a retirada definitiva dessas ocupações. Para ele, a possibilidade de indenização pela chamada “terra nua”, prevista na lei e parcialmente admitida no voto do relator, cria um cenário de inviabilização das demarcações, já que o Estado não dispõe de recursos para indenizar centenas de ocupantes em diferentes territórios.
“Quanto mais tempo os não indígenas permanecem dentro da terra, mais o conflito se agrava”, ressalta, citando episódios anteriores em que decisões judiciais suspenderam portarias de demarcação e acabaram gerando confrontos diretos dentro das comunidades.
Outro ponto destacado por ele é o impacto ambiental e climático das decisões. Os territórios demarcados são os que mais concentram biodiversidade, floresta em pé e água. E, ao mesmo tempo, o Congresso fragiliza a Constituição. É uma contradição muito grande”, enfatiza.
Atualmente, os únicos povos com terras indígenas demarcadas no Espírito Santo pelo governo federal são os Tupinikim e os Guarani, em três áreas localizadas no município de Aracruz: Caieiras Velha 2, Tupinikim e Comboios, que somam pouco mais de 18 mil hectares. Os Tupinikim estão distribuídos em seis aldeias: Areal, Caieiras Velha, Irajá, Pau Brasil, Comboios e Córrego do Ouro. Os Guarani estão organizados em cinco: Boa Esperança, Três Palmeiras, Piraquê-Açu, Olho D’Água e Nova Esperança Ka’aguy Porã.
Essas demarcações foram resultado de quase quatro décadas de luta, marcadas por violência, ações policiais e confrontos com grandes empreendimentos. Para a liderança indígena, a manutenção de dispositivos da Lei nº 14.701 faz com que, mesmo após a demarcação, os povos corram o risco de não conseguir exercer plenamente o direito ao território conquistado. “Você luta anos para ter a terra reconhecida, mas depois não pode usufruir dela”, resume. Outras comunidades, como os Pataxó de Itaúnas e indígenas de Regência, ainda aguardam a conclusão de processos demarcatórios.
‘Solução negociada’
Em setembro de 2023, ao julgar o caso do povo Xokleng, em Santa Catarina, com repercussão geral para todas as demarcações no país, o STF já havia derrubado o Marco Temporal. Pouco depois, no entanto, o Congresso Nacional reagiu à decisão e aprovou a Lei 14.701, em uma articulação liderada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). A norma não apenas reincorporou a tese, como também alterou etapas do processo demarcatório e passou a permitir atividades econômicas em terras indígenas.
Essas mudanças deram origem às ações agora julgadas pelo Supremo. Após a aprovação da Lei 14.701, o ministro Gilmar Mendes criou uma Comissão Especial no STF com o objetivo de buscar uma “solução negociada” entre o governo federal, representantes indígenas e o agronegócio. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), no entanto, abandonou a mesa de conciliação ainda em 2024, denunciando falta de escuta, desequilíbrio na representação e ausência de transparência.
Para a Apib, não é possível “conciliar” direitos fundamentais assegurados pela Constituição. Mesmo com a saída da principal articulação indígena do país, os trabalhos da comissão seguiram. Após 23 audiências, encerradas neste ano, o grupo apresentou uma proposta de alteração da legislação indigenista, sem consenso sobre vários pontos. Em seu voto, Gilmar Mendes defendeu a aprovação dessa proposta e o envio do texto ao Congresso Nacional, posição que foi acompanhada pela maioria dos ministros.
Apesar da formação de maioria, os efeitos do julgamento só passam a valer com a conclusão do acórdão. Após a publicação, ainda cabem recursos. Além disso, o Congresso deve retomar, no próximo ano, a tramitação da Proposta de Emenda à Constituição que tenta inserir o Marco Temporal diretamente na Constituição. Para o ministro Flávio Dino, esse caminho também é inconstitucional. “O Poder Legislativo não pode, sob qualquer pretexto, suprimir ou reduzir direitos assegurados aos povos indígenas”, afirmou.
Caso a PEC avance, o tema deverá retornar ao STF. Enquanto isso, segundo Paulo Tupinikim, a mobilização continua. “Não baixar a cabeça e seguir com a luta. Vigilantes, mobilizados”, enfatiza.

