Multinacional teve licença ambiental suspensa por descumprir condicionante
A empresa Suzano S.A. tenta reverter o embargo ao seu empreendimento que causou a destruição parcial de um sítio arqueológico da Fazenda Cachoeira do Cravo, protegido por lei municipal em São Mateus, no norte do Estado. As atividades foram paralisadas no final de julho, após o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) constatar destruição ao antigo cemitério de pessoas escravizadas ligado à memória da líder negra Constância D’Angola. As operações estão suspensas até que estudos e medidas compensatórias sejam definidos.

Segundo vistorias do Iphan, a destruição foi causada por máquinas da empresa Macplan Urbanismo e Construção Ltda., contratada pela Suzano, que reviraram o solo e expuseram fragmentos ósseos humanos. Também foi constatado que a empresa descumpriu condicionantes da licença ambiental, além de apontadas falhas da prefeitura, que omitiu a informação sobre a proteção do local ao autorizar a intervenção. A Suzano ignorou a Instrução Normativa nº 01/2015, que exige avaliação prévia do impacto ao patrimônio arqueológico.
O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf) suspendeu a Licença de Operação (LO) da multinacional, ressaltando que a autorização estadual não dispensa o aval de outros órgãos. A suspensão impede qualquer plantio de eucalipto, abertura de vias ou movimentação de solo até que o Iphan decida sobre o desembargo.

Em manifestação protocolada no último dia 11, a Suzano pede a reclassificação de seu empreendimento do Nível III para o Nível II da Instrução Normativa nº 01/2015, o que reduziria as exigências relativas à proteção do patrimônio arqueológico. Alega que suas atividades não envolvem obras de grande porte, mas apenas limpeza de área, abertura de estradas e subsolagem, “sem remoção de sedimento, apenas descompactação das camadas superficiais”.
Como proposta metodológica, a empresa sugere uma vistoria do terreno com GPS para identificar vestígios arqueológicos em áreas já revolvidas e a delimitação da área do sítio e das senzalas associadas. Em manifestação anterior, assinada pelo analista de Licenciamento Ambiental Guilherme Moro Neto, a Suzano chegou a afirmar não haver “qualquer registro, cadastro e/ou informação oficial e pública que indicasse a existência de cemitério quilombola na localidade”.
Apesar do pedido de reenquadramento, o arqueólogo Igor da Silva Erler, responsável pela análise, concluiu que o empreendimento implica riscos de média a alta interferência no solo e no patrimônio arqueológico, classificando-o como Nível III — categoria que exige Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico (Paipa) e consulta às comunidades do entorno, especialmente quilombolas. A Divisão de Geoprocessamento do Iphan confirmou a sobreposição da área da Fazenda com o Sítio Arqueológico Fazenda Cachoeira do Cravo, agora registrado em sua base de dados.

O Iphan foi acionado pela vereadora Professora Valdirene (PT), após receber denúncias sobre a destruição do sítio. Por ter descumprido a Instrução Normativa nº 01/2015, a Suzano deverá assumir medidas compensatórias em toda a área do empreendimento, que soma 579,8 hectares – embora o cemitério represente menos de 1% do total. Entre as propostas em debate estão estudos arqueológicos aprofundados, investigação das áreas intactas no entorno e a escuta das comunidades locais para definir reparações simbólicas e materiais. Moradores sugeriram a construção de um memorial a Constância D’Angola, melhorias na ponte da fazenda e abertura de caminhos tradicionais.
Enquanto a multinacional pressiona pelo desembargo imediato, pareceres técnicos reforçam a necessidade de pesquisas detalhadas, transparência e participação das comunidades tradicionais. Caberá ao Iphan decidir sobre a garantia dos direitos culturais e territoriais de comunidades historicamente marginalizadas e ameaçadas pela expansão de monocultivos.
Denunciada há décadas por promover violações contra as comunidades quilombolas do antigo território do Sapê do Norte, que compreende os municípios de São Mateus e Conceição da Barra, a antiga Aracruz Celulose, hoje incorporada pela Suzano – uma das maiores multinacionais do setor de papel e celulose —, foi acusada de grilagem de terras desde quando se instalou na região, ainda na década de 1970, durante a ditadura militar.
As populações tradicionais apontam degradação, concentração fundiária e violência promovidos pela empresa, responsável por uma série de crimes, como “roubo de água, desvio e morte de rios, perda de diversidade, e uso de agrotóxicos associados ao câncer”. Atualmente, há seis áreas em conflito com a Suzano no Espírito Santo, sendo grande parte terras públicas, cedidas pelo governo ao mesmo grupo que permanece no comando da empresa. Comunidades relatam casos de violência e intimidação, incluindo sobrevoos de drones sobre quilombos e lançamento de veneno sobre plantações. A empresa também lidera a implementação de eucalipto transgênico na América Latina, permitindo o uso ampliado de agrotóxicos.

Memória e resistência
A área onde hoje se encontra o sítio funerário, chamado popularmente de “Cemitério dos Escravos”, ou “Cemitério Particular da Fazenda Cachoeira do Cravo”, está localizada em terreno pertencente à antiga estrutura fundiária de uma propriedade escravocrata, ativa até meados do século XIX. A fazenda foi fundada na segunda metade do século XIX pelo major Antônio Rodrigues da Cunha, também conhecido como Barão de Aymorés, e representou um centro de produção de açúcar, cafeicultura e atividade comercial fluvial, com uso da mão de obra escravizada. O sítio antigo cemitério é apontado pela tradição oral como o local de sepultamento de dezenas de pessoas escravizadas que viveram e morreram na área.
Entre essas histórias, ganha destaque a de Constância de Angola, mulher que teve seu filho morto de forma brutal, queimado vivo em uma fornalha por ordem da senhora Francelina Cardoso Cunha. Segundo os relatos, Constância escapou da fazenda após o assassinato e atuou em movimentos de resistência com lideranças quilombolas como Viriato Cancão-de-Fogo, ajudando outras pessoas a fugir da escravidão. Ela teria sido morta em confronto com o capitão-do-mato José de Oliveira, conhecido como “Zé Diabo”, e enterrada ao lado do filho, com autorização do major Antônio da Cunha. Sua memória é lembrada por iniciativas como a Casa de Constância D’Angola e reconhecida como um marco da resistência negra no Espírito Santo.
A Fazenda Cachoeira do Cravo é reconhecida pelo Iphan como um território de memória negra, ligado a trajetórias de resistência e à construção da identidade local. Segundo a análise arqueológica, os vestígios encontrados na área – materiais e imateriais – revelam camadas de memórias relacionadas à exploração econômica, à dor e à resistência.
A área é protegida por legislação municipal específica: a Lei nº 39/1989, de 24 de agosto de 1989, que institui o Conjunto Histórico “Fazenda Cachoeira do Cravo”, no distrito de Nestor Gomes, e define, como bens que compõem esse conjunto: “a Casa da Fazenda do Cel. Cunha Júnior, a Casa da Venda do Barão de Aymorés (antiga pila de café e usina de açúcar), o cemitério dos escravos e a ponte da Cachoeira do Cravo”.
O chefe da Divisão Técnica do Iphan, Yuri Batalha de Magalhães, também destacou a importância arqueológica e histórica da Fazenda Cachoeira do Cravo. Segundo ele, a área está inserida no contexto do rio Cricaré, onde há registros de ocupações indígenas muito antes da chegada dos portugueses. “É uma região extremamente rica em recursos naturais, o que favoreceu o assentamento de diversos grupos indígenas ao longo do tempo. Inclusive, é nas proximidades que se deu a Batalha do Cricaré, um dos principais confrontos entre indígenas e forças coloniais portuguesas no período colonial”, explicou.
A partir do período do Brasil Colônia, a região passou a concentrar fazendas voltadas à produção de açúcar, café e outras atividades econômicas, com o uso de mão de obra escravizada. “Agora, o que a gente precisa levantar são justamente as histórias que não foram registradas oficialmente, como as dos grupos quilombolas. Existem comunidades ali cuja trajetória ainda não foi completamente documentada, e isso é essencial para fortalecer a preservação dessa memória”, defendeu.