Economista Ladislau Dowbor explica como o rentismo sequestra poderes e aumenta a desigualdade
“Na realidade as coisas não são complicadas. Eu queria passar para vocês o essencial do que a gente chama de ciclo econômico. As pessoas tendem a entender pedaços da economia e não entendem [o todo] porque o processo, ele gira, é um ciclo completo”, diz o economista e professor Ladislau Dowbor em um vídeo publicado na internet que em menos de um ano já alcança mais de 800 mil visualizações.
Foi com o mesmo didatismo e paciência que ele conversou conosco no saguão de um hotel na Praia de Camburi, em Vitória, horas antes de participar de um seminário organizado pela Escola de Fé e Política e o Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica, ambos ligados à Arquidiocese de Vitória.
Uma das mais célebres publicações entre seus 45 livros já escritos é A era do capital improdutivo, tema pelo qual começamos a conversa. A obra mostra, diz ele, como o andar de cima, os mais ricos, se apropriam da riqueza. “Que sistema é esse que não produz mas enriquece?”, pergunta o economista, que foi consultor da Organização das Nações Unidas (ONU) e hoje dá aulas na pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Temos um deslocamento da lógica econômica de uma elite que antes era formada por capitalistas produtivos e hoje é formada por rentistas improdutivos”, analisa.

“O tradicional que a gente possuía no capitalismo é que o empresário tem uma fábrica, produz algo, paga mal seus trabalhadores, que tem mais produtividade que o salário que recebem. Isso gera mais-valia, gera lucro. Assim o empresário vai abrir outra fábrica, gerando lucros mas também produtos e empregos”.
A venda dos produtos gera imposto, assim como a taxação das rendas, o que serve para o estado assegurar infraestrutura, para a economia funcionar, e políticas sociais, em áreas como educação, saúde, segurança, o que ajudaria a limitar ao menos um pouco o crescimento desenfreado das desigualdades. “Essa articulação do interesse da população em receber o salário tendo que trabalhar, dos produtores receberem seu lucro mas tendo que produzir, e do Estado receber imposto para ter que investir em políticas sociais e infraestrutura, é que faz a economia girar”, garante.
No mundo de hoje, diz o economista, 95% da liquidez do dinheiro é imaterial. Isso abre caminhos para outras formas de enriquecimento dos mais ricos, por meio do controle dos sistemas financeiros, a nível global e numa escala antes inimaginável. “O dinheiro é simplesmente uma informação, um sinal magnético. Na internet, isso circula na velocidade da luz”.
O que hoje se chama de investimento – e por isso muitos se autodenominam investidores – não é produção, mas enriquecimento improdutivo.
Agiotagem legalizada
O caso brasileiro é bastante emblemático, pois o país possui a segunda maior taxa de juros reais do mundo, o que permite imensos ganhos por meio do sistema financeiro. Segundo relatório anual do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB), Brasil é o país que mais paga juros de dívida no mundo, considerando sua proporção em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Juros que são pagos com recursos públicos, que poderiam ser investidos em outras áreas.
“O bilionário não precisa produzir nada. Se ele compra títulos do governo no valor da Taxa Selic, ele recebe 15% de juros. Então colocando R$ 1 bilhão em compra de títulos do governo, ele está ganhando R$ 400 mil por dia, aumentando sua fortuna com a mão no bolso”, exemplifica.
Ele lembra que, em 2003, no início do primeiro governo Lula, o Congresso Nacional aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que revogou o artigo 3º do artigo 192 da Constituição Federal, que limitava a taxa de juros reais a 12%, considerando valores acima disso como crime de usura, passível de punição por lei.

Se os juros nominais no Brasil chegam a 15%, na ampla maioria dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), eles giram em torno de 2% e 5%. Para o empresário, o juro chega próximo dos 25%, ou seja, ele terá de pagar além do valor do empréstimo, quase um quarto a mais de juros, e a partir daí obter seu lucro. Parece bem mais fácil para quem tem capital investir no mercado financeiro ao invés de no setor produtivo. Ou, como relata o professor, comprar terras e esperar que estas se valorizem, deixando ali algumas cabeças de gado para que não pareçam improdutivas.
Para as famílias, os juros praticados pelos bancos se multiplicam a valores que Dowbor classifica como “agiotagem” ou “usura”, para usar o nome técnico do empréstimo com juros abusivos. “O Brasil é o único país do mundo em que a taxa de juros é apresentada por mês”, lamenta. A média dos juros de empréstimos bancários a famílias ultrapassa 50% ao ano. O resultado são mais de 70 milhões de pessoas endividadas, o que equivale a mais de 40% da população adulta do país.
No mundo produtivo, a insatisfação com baixos salários ou perda de poder aquisitivo por conta da inflação gera mobilização dos trabalhadores que podem levá-los a ganhos ou ao menos reposições, analisa o economista. “No mundo financeiro, o que vai fazer a pessoa endividada? Protestar em frente ao Itaú?”.
O problema não é econômico
O Relatório Global da Riqueza de 2025, publicado pelo banco suíço UBS, coloca o Brasil como o mais desigual entre os 56 países analisados, que concentram 92% da riqueza mundial. Algumas particularidades brasileiras contribuem para isso. Em 1995, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, uma lei isentou de imposto de renda os lucros e dividendos, ou seja, a boa parte do dinheiro dos “de cima”. Em 1996, com a Lei Kandir, as exportações de produtos primários e semi-primários, como extração de minérios não-renováveis, passaram a receber isenção de impostos. Isso enriquece grupos internacionais, que pertencem a grandes grupos financeiros, gerando lucros para estrangeiros a partir da extração do patrimônio nacional, como a madeira da Amazônia ou os minerais não-renováveis.
“Isso aqui é um país rico, não é um país pobre. Nosso problema não é econômico, é de organização política e social”, avalia. “Aqui se autoriza agiotagem, se faz isenção fiscal de tanta gente, é pré-histórico. Se você colocar dinheiro na base da sociedade – e não em paraíso fiscal, como Campos Neto ou Paulo Guedes -, ela consome, consumindo o comércio de agiliza, encomendam mais produtos nas empresas, que geram mais emprego, isso é elementar na economia”, diz Dowbor, retomando o tema do início da conversa.
Ele levanta outra questão central na política, hoje movida em torno de um Congresso Nacional em que a maioria dos legisladores têm pouca ou nenhuma preocupação com políticas públicas ou melhorias sociais. “Se você olhar os deputados do Centrão, qual o complemento de dinheiro que eles têm? Aplicações financeiras”. Não teríamos então um Congresso Nacional hegemonizado exatamente por empresários, como se costuma analisar, mas sim por rentistas. “Assim você casa interesses improdutivos com interesses da política”.

Ladislau Dowbor acredita que o presidente Lula e o ministro da Fazenda Fernando Haddad entendem esse sistema. “Não é falta do governo saber o que deve ser feito, é falta de força política pelo enraizamento que o rentismo gerou dentro da sociedade. Para mim, o mais importante não é criticar o Lula, porque ele está fazendo bastante, fazendo o possível. Se trata de criticar um sistema de enriquecimento sem fazer absolutamente nada”, resume.
“Com o pouquinho que conseguiram repassar de dinheiro para a base, pelas frestas, apesar do arcabouço fiscal, esse pouquinho permitiu tirar o Brasil do Mapa da Fome, junto a um crescimento de 3% da economia”, diz o economista em defesa do governo federal.
O dinheiro que vai para base, considera, é muito mais útil. “Quinhentos reais a mais na base faz uma ‘baita’ diferença, mas lá em cima não é nada. É mais útil em termos sociais, pois melhora as condições de vida e gera demanda para a economia. Porque se compram coisas reais, quando não são obrigados a pagar juros. Isso dinamiza a demanda, dinamizando emprego e produção, ambos gerando imposto, tanto sobre o consumo como sobre o aparelho produtivo. Como resultado, a roda gira”.
Como disse ao início o professor: “Na realidade as coisas não são complicadas”. Complicado é o que fazem com elas.