Alcântaro Filho convocou reunião no local nessa quinta-feira com pais de alunos
O deputado estadual Alcântaro Filho (Republicanos) acusou o professor Wallace Linhares Júlio, da Escola Municipal Dr. Mário Vello Silvares, em Conceição da Barra, de “doutrinação religiosa” e associou suas atividades pedagógicas a um suposto movimento chamado “Exu nas Escolas”. A ofensiva do parlamentar, feita primeiro em vídeo nas redes sociais e reforçada em reunião com pais, direção e professores nessa quinta-feira (2), levou o docente a pedir afastamento remunerado e transferência para outra unidade escolar no próximo ano.

Durante a reunião, o parlamentar questionou a presença de quadros com representações de orixás pintados por estudantes, além de jogos que remetem aos deuses africanos. Para o professor, que está no centro de um inquérito policial aberto na última semana gerado por denúncia que fez anteriormente ao Ministério Público Estadual (MPES) para investigação de crime de perseguição e racismo, a resistência às atividades revela preconceito racial e intolerância religiosa.
No pedido de afastamento encaminhado ao secretário municipal de Educação, Fabrycio Crizostomo Kock, o docente, com atuação há 15 anos na escola, detalha os episódios que, segundo ele, configuram perseguição religiosa, assédio moral e danos psicológicos. “Sou iniciado na Nação Jeje Mahin, religião de matriz africana, e desde março de 2025, venho sendo alvo de ataques”.
O primeiro caso relatado é de março. Segundo Wallace, publicações em redes sociais o acusaram de práticas religiosas pejorativas. “Disseram que eu havia colocado um ‘Tranca Rua’ atrás do quadro do Dr. Mário Vello Silvares, na sala da direção. Essa mentira foi espalhada com o objetivo de incitar revolta entre pais e alunos, me expondo como se eu fosse uma ameaça dentro da escola”, relata.
Pouco tempo depois, a perseguição teria se intensificado com ataques diretos de estudantes. Um aluno do nono ano publicou em rede social: “Esse macumbeiro desgraçado, FDP, vagabundo…”. Wallace afirma que a agressão pública abalou profundamente sua honra e dignidade. “Fui insultado não apenas como pessoa, mas como educador. Minha fé foi usada como instrumento de ódio contra mim”, denuncia.
Outro ponto citado no pedido foi a extinção do laboratório cultural Casa de Tertolino Balbino, “Sala Temática em que ministrava aulas de História e Geografia com abordagens da cultura afro-brasileira” e a substituição do espaço por uma coordenação pedagógica. “Sem qualquer justificativa pedagógica, o espaço foi desmontado. Foi um golpe contra a promoção da diversidade e da representatividade da cultura negra dentro da escola”, escreveu.
Outro episódio mais recente ocorreu em 19 de setembro, quando o deputado Alcântaro Filho publicou em suas redes sociais um vídeo em que acusa o professor de “doutrinar” estudantes por participar do “Movimento Exu nas Escolas”. Wallace afirma que a fala colocou sua segurança em risco. “Ser acusado publicamente por um deputado de estar doutrinando os alunos não é apenas injusto, é uma violência que expõe minha integridade física e emocional. Tenho vivido sob ameaça constante”, pontuou.
Segundo ele, Alcântaro já o havia exposto nas redes sociais, associando suas práticas pedagógicas a rituais religiosos. Ele detalhou que, junto com os estudantes, desenvolveu a atividade “A Batalha dos Orixás e Olimpianos – O Jogo de Tabuleiro, como Ferramenta Pedagógica para Abordagem da Temática Afrorreligiosa”, com o objetivo de valorizar mitos africanos e afro-brasileiros em diálogo com a tradição greco-romana. “Então, meu questionamento é: por que os deuses gregos podem ser trabalhados na escola e os deuses africanos, não? Será que é porque um é branco e o outro é negro?”, criticou.
Por parte de familiares de alunos, também indicou situações de preconceito. Uma das ocasiões envolveu o comentário de uma mãe sobre bonecos confeccionados a partir do livro Pretinho, Meu Boneco Querido. Ele relembra a fala “esse boneco parece um vodu!”, complementada por gargalhadas. Sobre uma aula de campo em uma comunidade quilombola, outra mãe disse: “Aquilo lá é um terreiro.”

“São falas que demonstram uma leitura preconceituosa e desrespeitosa da proposta pedagógica. Esse projeto foi aprovado pela supervisora, pelo diretor da escola e pelo setor pedagógico da Secretaria Municipal de Educação”, reforçou. As atividades foram desenvolvidas com base na Lei nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas, aponta.
O professor também solicita que a secretaria elabore um relatório institucional, com parecer de diretoras, supervisoras e alunos sobre suas práticas pedagógicas, e requer a apresentação de um plano de acolhimento psicológico e reparação pelos danos morais. “Peço que esta demanda seja recebida com a devida atenção e urgência, para garantir minha segurança, dignidade e o pleno exercício da minha função como educador”, reforçou no ofício.
‘Satanização’
Na última semana, a deputada estadual Camila Valadão (Psol) se manifestou em plenário contra as investidas de Alcântaro Filho e classificou a ofensiva como racismo religioso. “Esse movimento [‘Exu nas Escolas’], como o senhor diz, na minha avaliação, nada mais é do que uma fantasia, resultado do racismo religioso, e tenta demonizar as religiões de matrizes africanas”.

Ela acrescenta que a satanização é crime previsto pela legislação brasileira ao falar de racismo religioso. “O deputado vem dizendo em vídeo nas redes sociais e também manifestando aqui no plenário a respeito de templos de satanás, sinagoga de satanás, ou seja, enquadrando essas religiões dentro da perspectiva dele, de pensar e de conceber o mundo”, prosseguiu, alertando para os efeitos dessa retórica.
“O problema de manifestações como essa é que instrumentalizam o ódio e os ataques às religiões de matrizes africanas. Isso fomenta intolerância religiosa. Não é por acaso que o Brasil teve um crescimento de 80% das denúncias de perseguição religiosa. E sabe quem são os perseguidos nesse número crescente? Exatamente o candomblé, a umbanda. São crianças de matrizes africanas que são apedrejadas, que são excluídas a partir dessa concepção racista”, enfatizou.
Espaço de memória
O caso também envolve a desativação da Casa de Seu Tertolino, espaço de memória criado em homenagem ao mestra da tradição do Ticumbi, e dedicado à valorização da cultura afrobrasileira. Depois de reações de repúdio e mobilizações, a Secretaria Municipal de Educação já havia determinado, em setembro, a reativação imediata do espaço e a realização de formações sobre cultura afro-brasileira. Também abriu procedimento administrativo para apurar a responsabilidade do diretor José Aarão Brito Magnan Neto, acusado de descumprir ordem anterior sobre a Casa de Memória.

O gestor se defendeu das acusações de racismo institucional e intolerância religiosa em ata de votação sobre o destino do espaço Casa do Mestre Terto, alegando “necessidade administrativa e falta de intenção”. Ele justificou a intervenção no espaço porque o local “passou a ser utilizado de maneira inadequada, abrigando materiais em desuso e encontrando-se em estado de desorganização”. Na reunião com o deputado, repetiu que sua intenção era técnica, “simplesmente organizar a escola”, afirmou que seu “conhecimento cultural é zero”, e citou sua formação e origem “eu vim do Rio de Janeiro, eu não conheço nada da cultura”.
A medida tomada pela direção da escola foi denunciada por coletivos culturais como a Associação de Folclore de Conceição da Barra (AFCB), que apontou negligência “ao valor histórico, cultural e afetivo de práticas culturais que representam décadas de resistência e celebração da cultura afrobrasileira, indígena e popular” e pela Comissão Permanente de Estudos Afro-Brasileiros (Ceafro), que criticou o “apagamento da presença negra” no ambiente escolar. Para a coordenadora da Ceafro, Náudima Xavier, a decisão da instituição revela “despreparo para lidar com políticas de memória e identidade cultural” e “ausência de letramento racial e desconhecimento das legislações”.