Atraso da Reitoria ignora urgências da pauta, apontam movimentos
O movimento trans capixaba cobra da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que implemente, com urgência, políticas de inclusão voltadas a travestis, transexuais e pessoas não binárias. Estudantes, docentes e representantes de movimentos sociais apontam que a Reitoria prometeu, em dezembro de 2024, criar dois grupos de trabalho (GTs) para discutir o tema, o que até agora não aconteceu. Diante da urgência das pautas, as organizações reforçam a demanda para que a universidade se comprometa de forma concreta com a inclusão da população trans, não apenas no acesso, mas também na permanência acadêmica.
“Afirmar as cotas trans dentro da universidade federal é uma garantia de direito inegociável”, destaca a vice-presidente do Fórum LGBTQIA+ da Serra, Layza Lima, que também integra o Conselho Estadual LGBT. Para ela, tratar a política de cotas como uma possibilidade, e não como uma urgência, revela o distanciamento entre a universidade e a realidade social da população trans. “Estamos discutindo a possibilidade de um fator histórico ser implementado em um Estado extremamente conservador, que não possibilita muitos acessos no campo da educação para a população trans e travesti”, completa.
A implementação de um GT de cotas e outro de políticas de permanência voltados à população trans foi acordada em uma reunião com integrantes da Pró-Reitoria de Graduação (Prograd), da Secretaria de Assistência Estudantil, do Diretório Central dos Estudantes (DCE), do projeto de extensão Trans Encruzilhadas e docentes da universidade. A convocação dos trabalhos estava prevista para o mês passado. “Por mais que exista boa vontade, não está sendo aplicada. Foram meses de espera e é urgente”, completa Layza.

A professora Jeffa Santana, do Departamento de Línguas e Letras, atualmente a única pessoa trans a exercer a docência na Ufes, reforça que a luta em curso é pela equidade de gênero e superação da desigualdade estrutural. “Precisamos pensar que a questão envolve a expressão de gênero e a vulnerabilidade dessas pessoas a partir do momento em que se declaram trans e travestis”, explica. “Elas estão em uma linha de desigualdade social que precisa ser enfrentada com políticas de equidade”, defende.
Até o momento, ela destaca que houve avanços pontuais na participação da população transgênero no espaço acadêmico, como ações afirmativas no campo da extensão e reserva de vagas na pós-graduação, porém, é preciso ampliar esse compromisso para outras áreas, como iniciação científica e graduação.
Segundo dados do Censo Estudantil para Ações Afirmativas, realizado pela Ufes no segundo semestre de 2022, apenas 0,01% dos mais de 16,8 mil entrevistados se identificaram como pessoas trans, somando-se mulheres trans, homens trans, pessoas não binárias e travestis. Desses, mais de um terço são pessoas não bináries, enquanto os demais grupos – justamente os mais marginalizados – não chegavam a 100 estudantes. Para a secretária executiva da Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade (Daad/Proaeci), Viviana Corrêa, os números evidenciam a urgência da adoção de políticas específicas.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que cerca de 2% da população brasileira seja trans. A comparação com o percentual registrado na Ufes evidencia o abismo entre a presença real dessa população na sociedade e seu acesso ao ensino superior.
Apesar do apelo do movimento, a Reitoria afirma, em nota, que “aguarda a indicação de representantes de uma entidade para a instalação dos GTs, o que deve ocorrer nos próximos dias, considerando o reinício das atividades acadêmicas”. A Administração Central reafirma o “compromisso com a pauta” e aponta que as cotas trans já são implementadas nos processos seletivos de mestrado e doutorado, como parte da Política de Ações Afirmativas nos Cursos e Programas de Pós-Graduação aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) em abril de 2024, que também contempla pessoas negras (pretas e pardas); indígenas e quilombolas; pessoas com deficiência (PcD); e refugiados. A Resolução 80/2024 determina que pelo menos 50% das vagas nos cursos de pós-graduação sejam reservadas a esses grupos, assegurando ao menos uma vaga para cada segmento.
O pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação em exercício, Wagner dos Santos, destacou que as ações afirmativas são “fundamentais para promover a equidade no acesso à educação e ao trabalho, reparando a exclusão histórica e estrutural desses sujeitos e contribuindo para o fortalecimento da democracia, da justiça social e do respeito à diversidade”.

Para Layza, no entanto, não basta discutir cotas apenas na pós-graduação. “A gente está pressionando para que a Reitoria entenda que não é só na pós, mas na graduação como um todo. A universidade tem que ser uma porta de acesso universal”, afirma. Ela conta que, enquanto pessoa trans, ainda não concluiu o ensino superior. “Tive que concluir o fundamental por EJA [Educação de Jovens e Adultos], o médio por EJA pago. A escola sempre foi um espaço excludente”, relata.
De acordo com dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), apenas 0,1% dos estudantes matriculados nas universidades federais se declararam pessoas trans. Em 2019, somente 12 das 63 universidades federais brasileiras haviam adotado políticas de cotas específicas, o que corresponde a apenas 19% do total. Um levantamento do Centro de Estudo de Cultura Contemporânea (Cedec), realizado em 2021, também revelou que 51% das pessoas trans não concluem o ensino médio e apenas 27,1% completam o ensino superior. Além disso, a precarização do mercado de trabalho contribui para a vulnerabilidade social: 90% das travestis e mulheres trans entrevistadas afirmaram viver da prostituição, e 72% realizam trabalho informal.
Diante de um cenário nacional marcado pelo avanço do conservadorismo e pela negação de direitos à população trans, os movimentos sociais cobram posicionamento claro e ações concretas da universidade pública. “A Ufes não pode retroceder. A educação não pode retroceder. O nosso direito à escola e à universidade não pode mais ser negado”, enfatiza Layza.