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‘Eu deveria ser uma entre os 30 mil desaparecidos’

Como Ana Caracoche sobreviveu e recuperou filhos sequestrados pela ditadura argentina

“Eu sou um pontinho na história da América Latina”, me diz Ana Maria Caracoche enquanto traz uma garrafa de café para a mesa em sua arejada casa no bairro Manoel Plaza, no município da Serra. “Eu deveria ser uma entre os 30 mil desaparecidos. Deus me deu a graça de poder viver até ver meu bisneto. Estou agradecida pela vida”, resume a argentina aos seus 78 anos, nos quais militou politicamente e teve que lutar por sua família em sua pátria de nascimento e no país que a acolheu, o Brasil.

Ela sobreviveu não só à prisão e à tortura, mas também viveu uma das crueldades muito emblemáticas da ditadura argentina: o sequestro massivo de filhos, ainda bebês, no período de exceção. Ana contou com ajuda do grupo das Abuelas de la Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio) para encontrar María Eugenia e Felipe, desaparecidos com 1 ano e com 4 meses de idade, respectivamente. Era uma “madre” junto com as “abuelas”, um caso raro, já que as avós tiveram que lutar pelos netos, pois seus filhos e filhas não sobreviveram para buscá-los. 

Ana Caracoche em sua casa com o lenço branco que marca a existências das “Abuelas de la Plaza de Mayo”. Foto: Leonardo Sá

Estima-se que mais de 500 crianças e bebês foram roubados de suas famílias durante a ditadura argentina. As crianças, no entendimento das Abuelas, eram usadas como “Botín de Guerra”. “Para os militares era uma guerra, em que eles estavam armados e matavam pessoas, que tinham que fugir para não serem mortas. Imagina uma família com um filho desaparecido e junto com ele sua criança. Na estrutura familiar, quem fica vivo fica esperando se essa criança um dia vai voltar e esse dia não chega. Isso era psicologicamente adoecedor”, relata.

Até hoje, a Asociación de Abuelas de Plaza de Mayo já ajudou a recuperar a identidade de 139 dessas pessoas, a última delas em janeiro de 2025, aos 48 anos, filha de dois militantes desaparecidos. 

Da luta ao sequestro

Nascida no povoado de Mercedes, no interior da província de Buenos Aires, Ana Caracoche era professora de Matemática e a partir da sua atuação na igreja, fez sua opção política à esquerda, militando na Juventude Peronista. Em 1975 se casou Oscar Gatica, que era integrante do sindicato dos metalúrgicos e do grupo guerrilheiro Montoneros. Juntos realizavam ações políticas e atividades com crianças em atividades educativas e culturais na região em que viviam.

Quando o golpe militar eclodiu em 24 de março de 1976, Maria Eugenia, a primogênita, era recém-nascida. Três meses depois, Oscar foi preso e ficou detido por 11 dias, sofrendo torturas. Com sua liberação, não sobrou outra alternativa ao casal do que cair na clandestinidade, já com o segundo filho, Felipe, em gestação no útero de Ana.

A vida se tornou insuportavelmente instável. “Nós começamos a ser perseguidos políticos e a tentar salvar nossas vidas. Nós íamos como podíamos, de lugar em lugar, de companheiro em companheiro que nos acolhia”.

Em 6 de fevereiro de 1976, enquanto Ana levava o bebê Felipe para cuidados de saúde, a outra filha, María Eugenia, estava na casa de um casal de amigos militantes, sob cuidados de Susana Falabella e José Abadala, quando estes foram sequestrados pela ditadura. O filho deste casal, Sabino, com dois anos, e María Eugenia Gatica Caracoche, que acabara de completar um ano, foram separados dos adultos e levados para seguir a vida com desconhecidos, em outras famílias. Susana e José nunca voltaram para a casa e seguem desaparecidos.

Um mês depois, Ana Caracoche foi localizada pela polícia, capturada e levada para cadeia  Estava com Felipe, que tinha quatro meses e foi deixado no pátio da vizinha, que depois o entregou para adoção.

Ao longo de um mês detida, ela foi torturada e passou por duas das terríveis prisões da ditadura, La Cacha e Pozo de Banfield. Foi liberada em uma estrada, conseguiu se localizar, mas não tinha notícias dos filhos nem do marido, com quem só conseguiria retomar o contato três meses depois. “Seguimos nós dois, sem nossos dois filhos, na clandestinidade, passando por muitos lugares para salvar a vida”, lembra.

Em 1980 nasce a terceira filha, María Paz. No mesmo ano, decidem sair do país levando a bebê. Não viam condições de fazer denúncias e procurar seus filhos ficando na Argentina e rumaram para o Brasil, contando com apoio da mãe e da irmã Oscar para ajudar no que fosse possível nessa busca em solo argentino.

Nova vida, luta antiga

Sem saber uma palavra de português, chegaram ao bairro de Laranjeiras, no município da Serra, onde foram acolhidos pela Comunidade Eclesial de Base (CEB), órgão de organização comunitária da Igreja Católica com muita força nesta época, especialmente no Espírito Santo.

“O povo brasileiro nos salvou da loucura”, relata Ana Caracoche. “Quando você é sequestrado e desaparecido, você não é ninguém. Sua identidade é zero, você não sente nada, deixa até de ser uma pessoa. A gente só se revitalizou porque tinha duas crianças para buscar. A gente pensava: nós vamos buscar, vamos encontrar, vamos restituir. Isso nos manteve vivo, tendo consciência que o que nós queríamos não era só para nós, mas para toda América Latina, a consciência de que a igualdade era um bem que todo mundo deveria desfrutar.”

A militante revisita a memória olhando postais argentinos sobre a luta pela memória histórica. Foto: Leonardo Sá

Os milhares de quilômetros de distância não abalaram a fé do casal argentino. “Nunca pensamos, nenhum dos dois, que nós não íamos encontrá-los ou que as crianças estivessem mortas. A espiritualidade me ajudou muito”, confessa. Diziam sempre aos amigos brasileiros que iam encontrar as crianças e recebiam apoio.  

No novo país, Oscar e Ana participaram da fundação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra (CDDH) e do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), que existem até hoje.

Não deixaram de atuar politicamente onde estavam nem esqueceram da luta de onde vinham. A busca pelos filhos ganhou novos contornos a partir do final de 1983, com a crise da ditadura e convocação de eleições, que tiveram vitória de Raúl Alfonsín, colocando fim ao regime militar e abrindo espaço para investigações sobre os tempos sombrios. Foi criada a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que serviram como forte apoio para a busca das “abuelas”.

Primeiro Oscar, e depois Ana, viajaram à Argentina para oficializar a denúncia sobre o desaparecimento dos filhos. Logo voltaram a morar em Mercedes com os filhos María Paz e Juan Manuel, este nascido no Brasil. Todos os dias percorriam cerca de 100 quilômetros para trabalhar na equipe das Avós da Praça de Maio, que recebiam inúmeras denúncias que poderiam ajudar a encontrar as crianças desaparecidas.

A busca se aproxima

Ana Caracoche sabia o local onde Felipe havia desaparecido – e ela sido sequestrada. Por lá conseguiu falar com uma enfermeira que tinha visto Felipe e a reconheceu como a mãe. “Não se preocupe que ele está bem”, disse a enfermeira. “Comecei a chorar que não terminava nunca”, relembra a mãe. A enfermeira deu então o endereço da família que o havia adotado. Aí entraram em cena as Abuelas de Plaza de Mayo e toda sua equipe multidisciplinar. “Teve toda uma negociação para restituir a criança a seus verdadeiros pais. Éramos os únicos pais vivos, das outras crianças restituídas os pais estavam desaparecidos”.

Ela lembra o processo como bastante tranquilo, dentro do possível para uma situação tão extraordinária. Não houve judicialização e levou um mês entre a localização e a restituição, segundo site oficial das Abuelas. Em setembro de 1984, Felipe Martín Gatica Caracoche se tornava o 24º caso de restituição de crianças desaparecidas no país.

A vizinha com quem o bebê havia ficado após o sequestro a entregou para a família de uma escrivã, que o registrou como filho próprio, dando-lhe outro nome. Ela não sabia a identidade dos pais de Felipe e supunha que haviam sido assassinados. “Ela cuidou muito bem dele por oito anos. Mas a criança era minha e não dela”, diz Ana Caracoche com certa gratidão. Felipe sabia que era adotado, então após os diálogos, a mulher recebeu a família original em sua casa e apresentou-a à criança: “Esta é sua mãe, esse é seu pai e esses são seus irmãos”. 

A coisa fluiu com naturalidade. Oscar começou a brincar de futebol com o filho, já com oito anos de idade, os pais o abraçaram e assim foram reatando uma relação rompida quando ainda era bebê. Ana define o reencontro como algo que não dá pra explicar mas que sempre ocorre após as restituições. “Ele me abraçava e passava a cabeça dele por meu peito. Olha que reconhecimento”, conta a mãe, como se houvesse uma religação direta entre o menino restituído e o bebê desaparecido pela violência.

Felipe se acostumou rapidamente à nova identidade e à nova família. Enquanto viveram na Argentina, a antiga família o visitava com frequência e tinha uma relação próxima com ele, que foi mantida mesmo posteriormente à distância.

Ana no jardim de sua casa. Foto: Leonardo Sá

Um difícil caminho

Mas a família Gatica Caracoche seguia incompleta. Meses depois da restituição de Felipe, chegou a Ana uma fotografia que ela suspeitou que pudesse ser de sua filha desaparecida, já com nove anos de idade. Dois detalhes na imagem da criança chamaram a atenção da mãe, que a perdera com um ano de idade: uma pequena entrada no cabelo e uma parte do rosto que a fazia lembrar de um irmão seu.

A partir daí seguiu-se uma delicada investigação, da qual Oscar fazia parte da equipe. Os supostos pais da criança haviam se separado e ela morava apenas com o pai, um policial. Oscar mantinha contato com uma professora de Maria Eugenia, que monitorava sua frequência escolar. Com uma denúncia oficializada, o juiz intimou o policial para depor, mas este não apareceu. Então, com permissão do juizado de menores, foi coletado sangue da criança na escola.

O ano era 1985 e o exame de DNA como conhecemos hoje ainda estava sendo desenvolvido por cientistas. Nos anos anteriores, porém, as Abuelas haviam feito peregrinações buscando cientistas de vários países que as pudessem ajudar a dar materialidade à sua busca por restituição das crianças desaparecidas a partir da genética.

Por meio de um exame de histocompatibilidade, foi verificado que a criança encontrada era mesmo María Eugenia. Mas aconteceu o que Oscar temia: quando foi dada a ordem de busca da criança, o policial fugiu com ela. Quando pareciam tão perto, os familiares se viram novamente distantes de conseguir. Depois de chorar e secar as lágrimas, com apoio das Abuelas, foram falar com o presidente Alfonsín, que, afinal, era o comandante-chefe das Forças Armadas, a quem o foragido devia lealdade. 

O líder do poder executivo nacional sugeriu que buscassem colocar o caso na TV. Surtiu efeito. O homem entregou a criança e foi preso. Nunca mais se viram. Uma psicóloga recebeu a pequena, a contou a história e disse que seu pai, mãe e três irmãos a esperavam do lado de fora, que poderia sair para encontrá-los quando se sentisse à vontade.

Quando ela saiu, abraçou a família. Oscar perguntou se a podia pegar no colo como quando era menor. A menina consentiu. “Ela ficou agarrada, não sei, como grudada nele. Um negócio…ahh…eu olhando ali”, suspira a mãe, ao lembrar do fato décadas depois. Ana recorda de ter mostrado a ela a certidão de nascimento, o teste do pezinho, as cartas e desenhos feitos por primos e irmãos dela. “Em um momento comecei a cantar uma música que eu cantava quando estava grávida. Ela olhou assim e fez um gesto, como de reconhecimento. São detalhes que eu conto que você não vai entender”, relata. É claro que eu tento e provável que não alcance entender.

Com a família completa, os Gatica Caracoche voltaram para visitar o Brasil para mostrar as crianças e agradecer aos amigos. “O triunfo também foi deles, que nos apoiaram”, considera Ana. “Mas depois, na surdina, eles confessaram que falavam que sim íamos encontrar as crianças, mas no fundo duvidavam que isso pudesse acontecer”. Felizmente, o ceticismo brasileiro foi derrotado. E a relação da família com o Brasil não terminava por aí.

Ana com foto da família reunida poucos meses após a recuperação dos filhos. Foto: Leonardo Sá

De volta para o futuro

A estadia da família de volta em Mercedes durou de 1984, ano em que Felipe foi encontrado, até 1989. Neste último ano, a política argentina andava bastante turbulenta. A crise econômica levou a uma onda de revolta com manifestações e saques a comércios. “María Eugenia disse chorando: não quero que nada aconteça com vocês. Oscar falou: vamos voltar para o Brasil, onde temos uma estrutura e amigos”. Assim voltaram, e começaram a vender as tradicionais empanadas argentinas na Praça dos Namorados, em Vitória, para sustentar o novo momento da vida.

Em 1996, Ana María e Oscar se separaram, mas a família continuou sempre próxima. E os dois militando ativamente. No Espírito Santo, ele atuou no enfrentamento do grupo de extermínio Scuderie Le Cocq, o que o levou a ter que fugir diante de ameaças de morte e se radicar na Paraíba, onde estabeleceu profundos laços afetivos e políticos. Seguiu atuando no MNDH em questões como combate à tortura e proteção de testemunhas.

Durante a pandemia de Covid-19, com diabetes e outros problemas de saúde, Oscar voltou a morar na Serra, dividindo a casa com Ana Caracoche e a filha María Paz. Morreu em janeiro de 2021 aos 71 anos. Suas cinzas foram divididas entre sua praia favorita na Paraíba e o campo de futebol em que jogou na juventude em Mercedes.

Em 1996, mesmo ano em que se separou, Ana Caracoche passou a coordenar o Núcleo de Direitos Humanos da Secretaria de Estado da Justiça do Espírito Santo. Comandou com sua equipe projetos que se tornaram referência no Estado e o país, como o Balcão da Cidadania, o Programa de Humanização da Gestão Penitenciária, o Prêmio Humaniza e o Grupo Interconfessional (Ginter). Atuou por 19 anos na área até se aposentar. 

Idosa contemporânea

Ana Fez parte do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Idosa e da Pastoral da Pessoa Idoso. “Agora não participo mais porque idoso não tem condições de cuidar de idoso”, brinca. Mas aos 78 anos parece ativa, serena e contemporânea. Se atualiza das notícias assistindo pela TV ao canal ICL Notícias, com linha editorial de esquerda, transmitido pelo YouTube.

Ana Caracoche segue atualizada sobre a política e as notícias. Foto: Leonardo Sá

Não sai tanto de casa como antes. “Meus filhos não querem que eu saia sozinha, têm esse cuidado. Eu acho que estão exagerando, mas eles acham que estão me cuidando. A palavra-chave pra mim agora é paciência”, reflete. Ainda assim, com o devido acompanhamento, participa da comunidade da igreja – uma vizinha lhe traz uma cartilha de reza enquanto a entrevistava -, uma vez por semana frequenta o grupo de idosos do bairro, e quinzenalmente é uma das facilitadoras de atividades da Universidade Aberta à Pessoa Idosa, que funciona na Ufes.

Está interessada em contar sua história. Já foi chamada para muitas palestras, mas deu poucas entrevistas para reportagens no Brasil. Seu maior orgulho, diz, é ter superado por meio da luta o sofrimento que viveu.

As paredes da sala de sua casa possuem vários quadros que lembram suas lutas e a estante guarda diversas homenagens recebidas por sua atuação. Tem muitas lembranças, mas também lugares ainda difíceis de habitar em sua memória.

“A tortura é uma cicatriz que vai ficar até eu morrer. Eu lembro da tortura. Quando nós restituímos nossos filhos foi uma alegria tão grande que eu não lembro desses oito ou nove anos em que eu chorava e chorava e chorava. Agora não choro mais. Agora me emociono com as coisas boas, com as coisas lindas”.

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