Decisão voltou a autorizar uso de força policial contra indígenas do Estado

A Justiça Federal voltou a autorizar a reintegração de posse de um trecho da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM), em Aracruz, no norte do Espírito Santo, ocupado há quase dois meses por comunidades indígenas Tupinikim. A decisão mais recente foi proferida nessa sexta-feira (19) pelo desembargador federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), que determinou o desbloqueio da ferrovia no prazo de dez dias úteis, com autorização para uso de força policial, em ação movida pela empresa.
A medida representa uma nova reviravolta, depois da ordem de reintegração ter sido suspensa no início de dezembro e o caso encaminhado à Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2). A ocupação teve início em 22 de outubro, e é conduzida pelo coletivo Juventude Indígena Tupinikim, em denúncia à exclusão das comunidades indígenas e tradicionais do processo de repactuação do Acordo do Rio Doce, firmado após o crime da Samarco/Vale-BHP.
Na decisão do início de dezembro, o desembargador Guilherme Calmon havia negado o pedido da Vale para restabelecer a reintegração de posse, reconhecendo que o conflito ultrapassava a dimensão estritamente possessória. À época, o relator destacou que havia manifestação de órgãos como União, Fundação Nacional do Índio (Funai), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU) e Ministério dos Povos Indígenas (MPI) no sentido de buscar uma solução consensual.
Com base nisso, os autos da ação de reintegração de posse foram remetidos à Comissão de Soluções Fundiárias do TRF2, mecanismo criado para mediar conflitos coletivos complexos, especialmente aqueles envolvendo populações vulnerabilizadas. Na mesma linha, o juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro, da 1ª Vara Federal de Linhares, havia mantido a revogação da liminar de despejo, reconhecendo que a resolução do conflito dependia de “postura processual de abertura ao diálogo” por parte da empresa.
No entanto, segundo a recente decisão, o cenário mudou. O magistrado afirmou que, apesar das manifestações favoráveis à negociação, não houve medidas concretas capazes de viabilizar uma solução pacífica em prazo razoável. Ele também citou decisão da própria Comissão de Soluções Fundiárias, que indicou não admitir, em princípio, sua atuação em casos de bloqueio de ferrovia ligados a protestos, por não se tratar de disputa possessória coletiva tradicional. “A despeito dos esforços empreendidos pelos órgãos competentes, não se vislumbra, neste momento, a possibilidade efetiva e concreta de solução pacífica do conflito possessório”, apontou.
Ele ressaltou ainda que o bloqueio da ferrovia compromete “um serviço público essencial” e reiterou o entendimento de que o “direito de manifestação não é absoluto quando impede o funcionamento de atividades legalmente concedidas”. Com isso, exerceu o chamado juízo de retratação e deferiu a tutela antecipada recursal solicitada pela Vale, determinando a reintegração de posse do trecho da EFVM, na altura do km 39, em Aracruz. A decisão autoriza o acompanhamento de força policial e estabelece que todas as cautelas legais devem ser adotadas para evitar violações de direitos durante a operação.
Nas redes sociais, a Juventude Tupinikim reagiu à decisão reforçando a legitimidade da mobilização. Em vídeo, o coletivo destaca quase dois meses de resistência, mesmo diante da pressão econômica e judicial. “Estamos há 57 dias em mobilização, juntamente com nossas comunidades e lideranças. Por mais que a nossa mobilização tenha dado, segundo a imprensa e as empresas, um prejuízo de mais de R$ 200 milhões, o nosso prejuízo é de tradições milenares que foram interrompidas bruscamente por conta da contaminação dos rios, mangues e do nosso mar”, afirmou o grupo.
A juventude também rebate o que chama de desinformação sobre o protesto. “Apesar das desinformações sobre a nossa luta, ela é legítima”, diz o comunicado. Segundo os indígenas, representantes do Ministério dos Povos Indígenas e um assessor da Secretaria-Geral da Presidência da República estiveram no território recentemente e se comprometeram a indicar caminhos para negociação, sem exigir desmobilização imediata. “Apesar da presença do MPI, a história da Guajajara se mostrou ausente mais uma vez na nossa luta”, criticou o grupo, em referência à ausência da ministra Sônia Guajajara no território.
Para as comunidades Tupinikim e Guarani, a ocupação só será encerrada quando houver garantias concretas de respeito aos direitos indígenas no processo de reparação e na pauta fundiária. As lideranças argumentam que a repactuação do Acordo do Rio Doce foi feita sem consulta prévia, em violação à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e deixou milhares de indígenas fora dos programas de indenização e subsistência.

