Decisão envolve a comunidade quilombola do Córrego do Felipe, em Conceição da Barra

O desembargador federal Sergio Schwaitzer, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), acatou o pedido de desconstituição da sentença proferida pela 1ª Vara Federal de São Mateus, no norte do Estado, que determinou reintegração de posse favorável à Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) da área do Córrego do Felipe, pertencente à comunidade quilombola de Angelim I, em Conceição da Barra, antigo Território do Sapê do Norte.
A desconstituição é uma resposta ao pedido de tutela provisória de urgência requerida pela Defensoria Pública da União (DPU). Em fevereiro deste ano, a reintegração havia sido suspensa e encaminhada para análise da Comissão de Soluções Fundiária do Tribunal Regional Federal 2ª Região (TRF2).
O defensor público federal Pablo Farias Souza Cruz explica que, apesar disso, como a reintegração já havia transitado em julgado, a Suzano poderia efetivá-la a qualquer momento. “Era um suspiro, mas não garantiria para sempre”, diz. Agora, isso já não é mais possível. Ele informa que a empresa ainda pode contestar a nova decisão, cabendo aos demais desembargadores decidirem em definitivo.
O desembargador federal aponta que, ao analisar os autos da reintegração de posse, “verifica-se que a sentença foi proferida sem a intimação da DPU para atuar como custos vulnerabilis. Nesse sentido, o STJ [Supremo Tribunal de Justiça] entende caber ação rescisória para a correção de vício de nulidade decorrente de ausência de intimação pessoal da Defensoria Pública de atos do processo, que acarreta prejuízo à parte”.
Aponta, ainda, que “no tocante ao fundado receio de dano irreparável, é evidente que a perda da posse da área em questão coloca em risco as famílias que lá residem e extraem seu sustento da terra. Assim, ante a probabilidade do direito e o perigo de dano, faz-se necessária a suspensão da aplicabilidade da sentença rescindenda”.
Na ação rescisória, a DPU recorda que a ação que culminou na decisão pela reintegração de posse foi ajuizada em face de Diogo Gomes dos Santos e outros 23 indivíduos, e destaca que, por se declararem remanescentes quilombolas, necessitam da atuação da Defensoria Pública. Assim, foi requerida ao Ministério Público Federal (MPF) e deferida a intimação da Defensoria Pública para atuação no feito. “Todavia, a intimação não ocorreu e, consequentemente, este órgão defensorial não atuou”, ressalta.
“E não é só. O dispositivo supramencionado também preceitua que devem ser citados por edital os ocupantes que não forem encontrados no local, e determina que se dê ampla divulgação sobre a ação”, acrescenta. A DPU afirma que a certidão expedida pelo oficial de justiça “informa que apenas alguns ocupantes foram intimados, mas ressalta que eles não foram identificados”.
“Ora, diante de referida informação, respeitando o que preceitua o Código de Processo Civil, deveria ter ocorrido a citação dos demais requeridos por meio de edital e ter sido dada ampla divulgação à ação”. Contudo, “tais diligências, não ocorreram, o que enseja a nulidade do processo que culminou na ação rescindenda”.
A DPU destaca que a empresa alega ser possuidora do imóvel. “Todavia, no curso da ação restou amplamente demonstrado que o território em litígio trata-se de terra quilombola, pertencente à Comunidade Quilombola Angelim, restando evidente a falta de tutela ao direito à propriedade dos remanescentes quilombolas”, diz. Além disso, continua a DPU, “não sendo o entendimento do magistrado de que as terras pertenciam aos remanescentes quilombolas, o processo deveria ter sido encaminhado à Justiça Estadual para julgamento, haja vista que a Justiça Federal perderia sua competência”.
Histórico
A decisão de reintegração de posse saiu em outubro do ano passado. Na ocasião, o agricultor e motorista Renato Guimarães relatou desespero dos moradores, que não tinham para onde ir e sequer teriam condições de levar seus pertences, como os móveis. Destacou, ainda, que com a concretização da reintegração de posse, perderiam várias plantações que utilizam para consumo próprio, como coco, banana e mandioca, e também para comercialização, como a pimenta-rosa ou aroeira. No caso desta última, os quilombolas do Córrego do Felipe são referência no plantio.
O juiz federal Ubiratan Cruz Rodrigues, na decisão que determinou a reintegração de posse, alegou que “a empresa adquiriu o imóvel há mais de 38 anos e sempre exerceu sua posse de forma mansa e pacífica, assim como o possuidor anterior”. Acrescentou que, em 15 de outubro de 2016, “foi constatada pela Vigilância Patrimonial da autora uma invasão efetivada pelos requeridos em parte do referido imóvel, inicialmente em número de 24, que se autointitulam como remanescentes de quilombolas. Desde então, passaram a ocupar indevidamente a área de propriedade da empresa, estando, portanto, caracterizado o esbulho possessório”.
Renato contestou a história narrada e apontou que as famílias que moram na comunidade estão ali há várias gerações. “Nós não podemos ocupar as terras dos nossos antepassados?”, questionou na ocasião. A situação, destacou, se assemelha à de quando a Suzano, quando ainda se chamava Aracruz Celulose, se instalou na região, “expulsando os quilombolas”. “Muitos tiveram que ir para a cidade, foram obrigados a mudar totalmente os hábitos de vida”, recordou.
Renato é bisneto de Pedro de Aurora, nascido e criado na região. Pedro, cuja memória permanece viva pelo seu trabalho de preservação da cultura africana por meio da música, em especial o Jongo, é o personagem principal do documentário Mestre Pedro de Aurora – para ficar menos custoso, do cineasta Orlando Bomfim Netto.

Pedro de Aurora, o documentário, e escritos do notável folclorista Hermógenes Lima Fonseca que destacam o mestre da cultura popular, foram mencionados em um relatório protocolado na Fundação Palmares em 2021, com pedido de reconhecimento e certificação, etapa inicial para o processo de demarcação e titulação do território tradicional quilombola. Contudo, o pedido não foi acatado, já que a comunidade de Angelim, a qual Córrego do Felipe pertence, já é reconhecida e certificada.
O documento descreveu o conflito agrário na região como iniciado na década de 1960, com “a chegada das empresas de plantio e extração de eucalipto trazendo o desmatamento, desertificação dos rios e córregos, envenenamento do solo e compra fraudulenta de terras na região do Angelim. A comunidade foi forçada a abandonar suas terras e migrar para as periferias das grandes cidades”. A partir de 2004, as primeiras iniciativas de retomada das terras aconteceram no Sapê do Norte, embasadas no Decreto 4.887/2003, que reconhece os territórios quilombolas e estabelece os procedimentos de titulação das áreas aos descendentes.
No caso da retomada do Córrego do Felipe, o protagonista foi o neto de Pedro de Aurora, Benedito Santos Guimarães, o Neguinho, cumprindo o desejo de seu avô, que “sempre manteve o desejo de voltar às suas origens”. Benedito continua agindo em prol da comunidade. Foi ele, por meio da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe, que acionou o MPF diante da liminar que concede para a Suzano a reintegração de posse.