Tribunal reconhece que empresa não apresentou propostas às comunidades

A Comissão de Soluções Fundiárias do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) vai definir uma agenda para mediar o conflito entre as comunidades Tupinikim e Guarani de Aracruz, no norte do Estado, e a Vale. Nessa quinta-feira (4), a Corte indeferiu o agravo de instrumento movido pela empresa para reverter a revogação da liminar de reintegração de posse em que pedia o desbloqueio dos trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM).
A ocupação, realizada há 45 dias pelo coletivo da Juventude Indígena Tupinikim, denuncia a exclusão das comunidades indígenas e tradicionais do processo de repactuação do Acordo do Rio Doce, firmado entre governos e mineradoras responsáveis pelo crime socioambiental da Samarco, controlada pela Vale e BHP Biliton.
O protesto representa mais de cem famílias e cobra avanços no processo de reparação dos impactos que atingem o território há mais de uma década, sem solução.
Na decisão, o desembargador-relator, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, suspendeu qualquer possibilidade de reintegração imediata e reconheceu que o conflito está inserido em um contexto de longa duração, marcado pela ausência de propostas concretas da mineradora. Ele destacou também que a própria empresa criou a “inviabilidade material e jurídica”, ao pedir a suspensão da reintegração acatada em novembro passado, antes mesmo de ocorrer.
Para ele, o fundamento apresentado pela Vale, de que “identificou-se uma janela de oportunidade para diálogos que visam à desocupação pacífica da área”, acabou por fragilizar o próprio argumento posterior da empresa em favor de uma reintegração urgente.
O relator também citou a manifestação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre a falta de iniciativa da empresa nas negociações. “Na reunião entre a Vale e os indígenas, a recorrente não apresentou contrapropostas e nem enviou representante com poderes de fazer acordo”, afirmou a fundação nos autos, o que contesta a alegação da Vale sobre ter se empenhando em tentativas de diálogo.
O desembargador também aponta que o processo geral de reparação está “em fase de realização de consulta aos povos indígenas atingidos, tal como previsto pelo anexo 3 do referido acordo [Novo Acordo do Rio Doce – NARD], o que demanda a escuta das comunidades, especialmente diante das reivindicações apresentadas pelo Conselho Territorial Tupinikim e Guarani, por meio da “atuação específica da Comissão de Soluções Fundiárias deste Tribunal”. O colegiado, especializado em mediação de conflitos coletivos, ainda vai definir se haverá inspeção no território, oitivas presenciais ou a designação de um juiz para conduzir as negociações.
A decisão foi tomada no mesmo dia em que o juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro, da 1ª Vara Federal de Linhares, manteve a revogação da liminar de reintegração, considerando as manifestações da União, Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU) e Funai, que reconheceram “a possibilidade de resolução amigável do conflito, condicionando para tanto que também a parte autora adote uma postura processual de abertura ao diálogo”.

‘Conflito ilegítimo’
Na última semana, o Conselho Territorial de Caciques (CTC) também comunicou aos órgãos federais, entre eles Funai, DPU, MPF e Advocacia Geral da União (AGU) e União, por meio de ofício, o histórico do conflito, que envolve a ausência de respostas efetivas das empresas e a exclusão massiva de indígenas dos programas de indenização e auxílio subsistência da repactuação da Samarco/Vale-BHP, assim como da Fundação Renova, criada pelas poluidoras para mediar as ações de reparação e extinta pelo Novo Acordo.
De forma cronológica, o conselho relembra como as comunidades indígenas sempre atuaram “de forma pacífica, transparente e dispostas ao diálogo”, enquanto a Vale teria adotado comportamento “contraditório, excludente e incompatível com a boa-fé que afirma possuir”. Destaca ainda que a empresa “pediu pressa para executar a reintegração”, “articulou força policial”, “moveu recurso para acelerar a ordem” e, quando a operação já estava preparada, “voltou atrás e pediu para suspender a reintegração, alegando ‘diálogo”. No entanto, a mudança brusca de postura, para os caciques, revelou que a Vale não buscava negociação real, mas sim evitar desgaste público.
“A empresa estava apenas temerosa e muito preocupada com a repercussão midiática”, avaliam os caciques, porque a reintegração coincidiria com o período da Conferência das Partes (COP30) e com o marco de dez anos do rompimento da barragem de Fundão. Para eles, a Vale “simula interesse em conversar, mas, na prática, empenha todos os esforços para viabilizar a reintegração”. O texto destaca que o conflito dura cerca de dez anos, e a própria empresa “acaba reconhecendo que jamais teve intenção real de solucionar o grave dano que causou” aos povos indígenas. Por isso, conclui o Conselho, “a revogação da liminar apenas reconhece o óbvio: não havia motivo real para usar força contra comunidades pacíficas”.
Além disso, os caciques reiteram as críticas à repactuação, feita “sem os indígenas”, “em sigilo” e em “violação ao procedimento de consulta prévia previsto na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Dizem que o resultado foi a exclusão de “um pouco mais de 1.600” indígenas, deixando milhares sem reparação e agravando a subsistência das comunidades. Eles argumentam que o próprio novo acordo estabelece que, se os povos indígenas não aceitarem a repactuação, “a responsabilidade permanece com as mineradoras”. Assim, afirmam que a Vale “alega que tudo está resolvido, mas os próprios termos mostram que não está”.
O conselho considera ainda que a mineradora age como se pudesse “ditar, tutelar ou limitar o modo de vida dos povos indígenas”, o que configura “visão colonial” e viola o artigo 231 da Constituição. O documento afirma que a Vale tenta “qualificar ou rebaixar o povo indígena à condição de subgrupo”, o que causa “dano ancestral” e viola convenções internacionais. Os caciques enfatizam que são “vítimas do maior desastre ambiental do nosso país”, enquanto a Vale tenta “passar a narrativa de que povos indígenas que se manifestam são criminosos” e age como se sua operação ferroviária valesse mais que “a vida, a cultura, a cosmovisão e a subsistência” das comunidades. Eles concluem que criminalizar a manifestação é “punir o sofrimento” e “punir quem foi deixado para trás”.
Os manifestantes pretendem desocupar a linha férrea somente quando forem respeitados os direitos indígenas relacionados à pauta fundiária e à reparação, reforça o presidente da Associação Indígena Tupinikim de Caieiras Velha (AITCV), Joel Monteiro. Ele explica que as comunidades aceitam discutir valores posteriormente, mas não abrem mão das garantias básicas. Enquanto isso, aguardam como o TRF2 organizará os próximos passos da Comissão de Soluções Fundiárias. “É a primeira vez em todos esses anos que esse mecanismo é acionado. Vamos aguardar para saber qual será o formato, a agenda, e quem virá ouvir as comunidades”, destaca.

