Quinta, 28 Março 2024

Café e eucalipto são as culturas em que o agronegócio se faz mais presente e cruel no Estado

O café e o eucalipto são as duas culturas em que a lógica capitalista do agronegócio se faz mais presente – e mais cruel – no Espírito Santo. O café, por meio da integração do pequeno agricultor ao grande mercado monopolista e concentrador. O eucalipto, expulsando o camponês de sua terra e levando-o a inchar o contingente de mão de obra barata nas periferias das cidades.



A avaliação é do Frei Sérgio Gorgen, frade franciscano da ordem dos Frades Menores do Rio Grande do Sul, militante dos movimentos sociais do campo há mais de três décadas, e autor do livro Trincheiras da Resistência Camponesa. Sob o pacto de poder do agronegócio, que será lançado pela Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Vitória no dia seis de outubro.



“O café ainda integra pequeno agricultor ao grande mercado, como o fumo no Rio Grande do Sul, que descrevo no livro. Se algum tipo de produção não pode ser feita em grande escala, fazem em pequena escala, mas controlando a comercialização”, diz Frei Sérgio, ressaltando que, se o café pudesse ser produzido como a soja é produzida no Centro-oeste brasileiro, em imensos campos e de forma mecanizada, o pequeno cafeicultor não existiria. Mas como tecnicamente isso não é possível, o pequeno é mantido como mais engrenagem do sistema, sendo cruelmente explorado.



Raul Krauser, da coordenação estadual do MPA, explica a crueldade desse sistema por meio de comparação. Até o final do século XX, e ainda hoje em algumas propriedades de resistência camponesa, o agricultor tem o café como poupança, armazenando na própria propriedade, muitas vezes, a produção de três, quatro colheitas. É com ela que ele consegue fazer investimentos maiores, como a reforma ou construção da casa, a compra de um veículo. E o consegue, mesmo com uma produção menor, porém, que não inviabiliza o desenvolvimento de outras culturas que garantem a manutenção básica da propriedade e a sobrevivência da família.



Mas ao aderir aos pacotes de alta produtividade vendidos pelo agronegócio, a produção e a movimentação financeira na propriedade aumentam, mas também aumentam o endividamento da família, o uso de agrotóxicos, de adubos sintéticos e de irrigação. E aumentam a degradação do solo, a dependência de água e os problemas de saúde do agricultor.



“Aumentou muito a produção e a receita bruta também. O bolo cresceu, mas a fatia que fica com o agricultor diminuiu”, metaforiza.



Raul conta que uma produtividade de 50 sacas por ano gera uma circulação financeira em torno de R$ 100 mil por ano. O pacote do agronegócio eleva a produtividade para 300, 400 sacas/ano e a movimentação financeira para R$ 200 mil. No entanto, ao se integrar ao sistema capitalista, o agricultor não tem mais a “poupança” no café, e sim dívidas. “São números de uma observação empírica nossa”, diz, enfatizando a necessidade de uma pesquisa mais aprofundada, com dados sistematizados, devido à dificuldade em obter esses dados nos órgãos de pesquisa.



Mas assegura: os pequenos cafeicultores que aderem ao pacote do agronegócio assumem a parte mais difícil da cadeia produtiva, que não é interesse do capital – contratação de mão de obra e produção manual – e ficam com os riscos e os prejuízos.



Com alta produtividade, ele não consegue mais secar o café no próprio terreiro, nem armazenar na propriedade. Precisa levar para um secador que cobra 10% da produção final só pra secar o café. E vende a produção para um atravessador, que muitas vezes não paga à vista, entregando apenas um comprovante. Mas se esse atravessador quebrar, quem fica com o prejuízo é o agricultor.



No pré-colheita o mercado também é quem dá as cartas. O agricultor precisa fazer financiamento no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) para investir no pacote de tecnologias do agronegócio. Começa pagando às empresas que elaboram o projeto de Pronaf que, por sua vez, elenca as tecnologias mais modernas e caras de engenharia genética das mudas, de adubação química, de agrotóxicos e de sistemas de irrigação.



“Só um sistema de irrigação custa em medida R$ 10 mil”, exemplifica o líder do MPA. E os vendedores de adubo e veneno ganham comissão, adverte. Vendem portanto, o que lhes garante maiores comissões e não o que é a necessidade real do agricultor.



Preço do café está abaixo do custo



Para o Estado, o custo também é maior, no tratamento das doenças, principalmente câncer e depressão. A crise hídrica se intensifica e a segurança e a soberania alimentar de toda a população são ameaçadas, inclusive na cidade. Todas, adverte Raul, externalidades que não são consideradas no custo real do agronegócio.



Não são consideradas pelo próprio Estado, que acaba não relacionando tais problemas e custos a essa forma cruel de produção rural, nem são consideradas pelo agricultor, que vem amargando prejuízo atrás de prejuízo, “consumindo a herança” acumulada pelas gerações anteriores.



A tese de Raul, que busca dados mais consistentes, é de que os camponeses estão comercializando café abaixo do custo de produção. “Ele conta o que tira do bolso, mas não conta o trabalho dele, o desgaste do solo e da lavoura, os gastos pra manutenção da represa, das estradas e, para os que têm esses equipamentos e máquinas, dos tratores e caminhões”, relata. Após dez doze colheitas, lembra Raul, a lavoura de café tem que ser renovada e é preciso esperar até três anos até a primeira colheita.



“Essa lógica em que o café foi capturado acontece também com o Programa Balde Cheio”, continua o camponês, referindo a um programa de elevação da produtividade da pecuária leiteira promovido pelo Instituto Capixaba de Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), bem como para os polos de fruticultura em alguns municípios do Estado, como o morango, na região serrana.



Neles, o agricultor chega a investir R$ 60 mil a cada lavoura, tendo de tomar financiamento bancário e comprar todo o pacote de tecnologias do agronegócio, que aumentam o consumo de água e o desgaste do solo com os adubos químicos e venenos para tentar controlar as pragas.



'Estado se faz presente na ausência'



Já na cadeia produtiva do eucalipto, o objetivo não é integrar o agricultor, mas expulsá-lo da terra, para abrir espaço aos grandes monocultivos e ao deserto verde. Mesmo em situações como o Fomento Florestal, o objetivo final é esse, pois os ganhos financeiros prometidos – a tal “poupança verde do eucalipto” – não acontecem e, desiludido, o camponês acaba vendendo a terra e indo para as cidades, tornando-se mão de obra barata nas periferias urbanas.



Desde que essa nova fase do agronegócio se estabeleceu no país – no Espírito Santo um marco foi a introdução dos modernos sistemas de irrigação para o café, por volta de 1998 – ,o MPA precisou intensificar sua atuação e a resistência camponesa frente aos golpes do capital contra o homem e a natureza.



Educação do campo, habitação rural, agroecologia e feiras livres são as principais frentes de atuação, cobrindo lacunas enormes deixadas pelo Estado. “A forma do Estado se fazer presente é na ausência”, critica Raul. “É uma deliberação não se envolver nessas questões”, protesta.



Além dessas ações, já empenhadas pelo campesinato, o Estado também precisa investir em infraestrutura e serviços de qualidade que beneficiem o pequeno agricultor, como telefonia, internet, estradas, saúde e energia.



E atuar também na outra ponta, impondo restrições ao agronegócio. No auge da atual crise hídrica, relata Raul, houve casos de um único grande produtor rural bombear água no rio que poderia abastecer até 70 pequenos agricultores. Ninguém denunciou, com medo, nem o Estado fiscalizou ou coibiu esse tipo de ação.



A aproximação da população urbana é fundamental para reverter a lógica cruel do agronegócio. “É um mundo só. A população da cidade precisa entrar no debate”, convoca o líder camponês. Do alimento que chega às mesas das famílias nas cidades, 70% é produzida pelos camponeses, mesmo com toda a ausência dos órgãos estatais. “Somos mais produtivos do que o agronegócio”, afirma.



Lançamento em Vitória



O livro Trincheiras da Resistência Camponesa. Sob o pacto de poder do agronegócio, do Frei Sérgio Gorgen, já pode ser adquirido na loja virtual do Instituto Cultural Padre Josimo. Em Vitória, o lançamento está previsto para o próximo dia seis de outubro, em local ainda a ser definido. 

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