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Comunidade rejeita privatização do Parque Cachoeira da Fumaça

Manifesto indígena e impactos a abelhas endossam críticas a programa idealizado por Rigoni

Moradores do Caparaó capixaba rejeitaram, em duas audiências públicas, o Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (Peduc), que prevê a privatização do Parque Estadual Cachoeira da Fumaça, uma das Unidades de Conservação (UCs) de Proteção Integral incluídas no pacote que o governo pretende conceder à iniciativa privada por 35 anos para exploração econômica.

Os encontros foram convocados pela Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa para discutir o projeto idealizado pelo secretário de Estado de Meio Ambiente, Felipe Rigoni (União), com apoio do governador Renato Casagrande (PSB). A gestão estadual não realizou, até agora, consultas públicas para debater o assunto, nem apresentou o programa às comunidades diretamente afetadas, cabendo apenas à Assembleia a abertura de debates, promovidos após denúncias de falta de participação social e riscos ambientais relacionados ao Peduc, que propõe implantar equipamentos turísticos em seis parques estaduais.

Lucas S.Costa/Ales

No Caparaó, o foco foi o da Cachoeira da Fumaça, a menor unidade entre as afetadas pelo Peduc e uma das áreas mais sensíveis do ponto de vista ecológico e cultural, localizada entre Alegre, Ibitirama e Guaçuí. Como encaminhamento, os participantes propuseram a criação de uma associação de proteção do Parque Estadual Cachoeira da Fumaça, com envolvimento de representantes das comunidades do entorno e dedicada a acompanhar, fiscalizar e defender o território diante dos impactos do programa.

“Tivemos uma presença bem significativa de comunidades indígenas, e eles realmente ficaram chocados com as propostas das estruturas dentro da área do parque”, afirmou Andressa Hartuiq, bióloga que atua em iniciativas comunitárias da região e integrante do movimento em defesa das Unidades de Conservação (UCs) estaduais. Ao contrário de regiões onde o debate já estava mais amadurecido, ela relata que grande parte da população local sequer sabia do programa ou de suas intenções. “Foi muita surpresa para todo mundo”, descreveu.

Os encontros reuniram moradores, pesquisadores, lideranças indígenas e representantes de movimentos socioambientais. A falta de informações, no entanto, não impediu que, ao longo das apresentações, o posicionamento majoritário emergisse de forma clara. “Não teve nenhuma manifestação a favor do programa”, enfatiza Andressa. “As pessoas estavam ouvindo e entendendo na hora, mas assim que sabiam do que se tratava, eram contrárias”. Para Andressa, o recado, portanto, foi claro.

A ampla representatividade de segmentos sociais também foi destacada pela bióloga, professora da Universidade Federal do Estado (Ufes) e pesquisadora das abelhas nativas da Cachoeira da Fumaça, Lucélia de Souza, que integrou a mesa do primeiro encontro ao lado da professora Juliana Lanna, que também faz parte do Departamento de Biologia da Ufes, junto ainda com a deputada estadual Iriny Lopes (PT), vice-presidente da Comissão de Meio Ambiente, representantes indígenas, ambientalistas do movimento em defesa das UCs e a vereadora de Alegre, Renata Alves (PT).

Lucélia ressaltou que o Peduc inclui previsão de abertura de trilhas, instalação de estruturas turísticas de grande porte e intensificação do fluxo de visitantes, o que pode afetar de maneira irreversível populações inteiras de abelhas nativas da região, que cumprem um papel essencial na polinização de orquídeas, árvores da mata atlântica e cultivos agrícolas como maracujá e tomate.

Para a pesquisadora, qualquer alteração estrutural na unidade de conservação pode gerar extinção local dessas espécies polonizadoras. “Muitas delas são solitárias e altamente dependentes de nichos ecológicos específicos, como solos, troncos de árvores antigas e áreas de mata fechada. Com maior impacto, movimentação de vegetação e outros eventos propostos dentro de ações de exploração das áreas de proteção, o impacto será a eliminação dos nichos necessários para que essas abelhas continuem com seu ciclo de vida biológico. Isso leva à extinção local. É fato”, alertou.

A especialista também destacou que áreas degradadas ou abertas, comuns em empreendimentos turísticos intensivos, não comportam essas abelhas. “Elas não existem ali, porque não é a condição necessária para que deem continuidade ao seu ciclo biológico”. Para Lucélia, preservar o parque significa manter a biodiversidade local e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade de serviços ecossistêmicos fundamentais para a agricultura regional.

Além do alerta sobre a importância ecológica das abelhas nativas, ela também destacou a urgência da ampliação da área protegida e criação de corredores ecológicos que conectem a Cachoeira da Fumaça a outros fragmentos de Mata Atlântica da região.

Segundo a pesquisadora, o entorno do parque já apresenta um grau preocupante de degradação, resultado da expansão agropecuária, abertura de estradas e supressão de vegetação nativa. “O parque está cada vez mais isolado. Sem corredores e sem aumento de área, a fauna e a flora ficam ilhadas e perdem capacidade de se manter no longo prazo”, afirmou. Antes de qualquer intervenção turística ou concessão à iniciativa privada, a bióloga defende que o Estado deveria priorizar a recuperação ambiental das zonas de amortecimento e a reconexão dos fragmentos florestais que sustentam a biodiversidade do Caparaó.

A deputada Iriny Lopes destacou que a comissão tem buscado ampliar a participação social no debate diante da falta de informações oficialmente disponibilizadas pelo governo. Os dados levantados nas audiências serão encaminhados à Comissão de Meio Ambiente da Assembleia. O movimento ambiental, pesquisadores e representantes indígenas cobraram participação real nas decisões e defenderam a integridade da Cachoeira da Fumaça não apenas como patrimônio natural, mas como parte da identidade da região.

‘Expropriação’

Representantes da Teia dos Povos no Espírito Santo apresentaram um manifesto durante a audiência pública em Alegre, em que denunciam violações legais, impactos socioculturais e a continuidade de um processo de expropriação que atravessa séculos. O elo capixaba da articulação, que une povos indígenas, quilombolas, agricultores, assentamentos e coletivos urbanos, está em processo de reorganização e é composto atualmente por representantes Puri e Guarani.

Uma das integrantes da Teia, Xapuko Ñavera, educadora popular do povo Ñamantuza Koya Puri, reitera as críticas ao modelo de turismo “pensado de cima para cima”, sem consulta prévia e diálogo com as comunidades locais. Ela tem alertado que a promessa de emprego e desenvolvimento esconde a precarização e a transformação dos moradores em mão de obra barata.

Arquivo pessoal

O manifesto aponta que o governo do Estado, ao avançar com o Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação, “desrespeita diretamente a legislação brasileira e internacional”, especialmente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que exige consulta prévia, livre e informada aos povos que habitam territórios afetados por medidas administrativas. No entanto, “a consulta não foi feita com os povos originários que habitam esse território”, destaca. Para eles, a iniciativa estatal ignora completamente “os impactos no modo de vida e cultura dos povos”.

A Teia dos Povos ressalta que esteve presente na audiência em comitiva para defender seus direitos e exigir a suspensão de decisões que afetem suas formas de existência. “Estamos aqui para fazer valer a legislação e para que anulem decisões que afetam nossa existência enquanto povo”, defendem no documento. Eles enfatizam que a relação entre comunidades tradicionais e natureza não é simbólica ou abstrata. “O território é o povo e o povo é o território”, afirmam. O grupo destaca que as árvores, pedras, rios e seres do ambiente não são elementos externos, mas entidades que compõem a própria identidade coletiva.

“Nossa existência está intrinsecamente conectada e referenciada neles”, diz o texto, reforçando que qualquer ameaça ao ambiente representa uma ameaça direta a seus modos de vida. “Estando eles em risco, está em risco a manutenção dos nossos saberes e tradições”, prossegue.

O documento também destaca que povos em etnogênese (grupos que foram historicamente dispersos, violentados, desterritorializados e impedidos de permanecer em seus espaços originais) seguem lutando para manter sua continuidade. Eles afirmam que esses grupos foram “espremidos e desterritorializados para longe de seus territórios”, expulsões que foram empurrando as comunidades para periferias, margens e áreas cada vez mais restritas. A Teia dos Povos reforça que esses povos não podem ser novamente deslocados em nome de interesses privados ou empresariais, pois “dependem do território para se regerem enquanto povo”.

Os representantes apontam ainda que a privatização de unidades de conservação faz parte de uma linha contínua de esbulho territorial. Em suas palavras, a expropriação que começou em 1500 segue sendo atualizada por mecanismos modernos de gestão, que retomam lógicas coloniais sob novas formas. “É o resultado de uma expropriação que vem sendo feita pelo Estado de nossos territórios desde 1500”, afirmam, relacionando o processo histórico à entrega da gestão de áreas sagradas “para a administração privada e estrangeira do nosso solo”.

Para os porta-vozes da Teia dos Povos no Estado, não se trata apenas de impedir a privatização da Cachoeira da Fumaça, mas de enfrentar a raiz histórica do conflito fundiário no país. “Nós, povos originários dessa terra, exigimos que devolvam nossos territórios, que antes de 1500 eram milenarmente geridos por nós”, concluem.

O Programa

O Peduc, criado pelo Decreto nº 5409-R, em junho de 2023, prevê a concessão de seis unidades de conservação para exploração turística pela inciativa privada por 35 anos. Além do Parque Estadual Cachoeira da Fumaça, envolve o Paulo César Vinha (PEPCV), em Setiba, Guarapari; o Parque Estadual de Itaúnas, em Conceição da Barra, no norte do Estado; o parques Forno Grande (PEFG) e Mata das Flores (PEMF), em Castelo, no sul do Estado; e Pedra Azul (Pepaz), em Domingos Martins, na região serrana.

A mobilização contra o Peduc vem crescendo desde 2024, quando o governo anunciou por meio da imprensa projetos de construção de teleféricos, tirolesas, hospedagens, estacionamentos e restaurantes no Parque Estadual de Itaúnas e César Vinha. As propostas, elaboradas pela consultora multinacional Ernst & Young, contratada sem licitação por mais de R$ 8,6 milhões para a modelagem econômica das concessões, têm sido criticadas por especialistas como incompatíveis com a função de proteção integral da unidades.

O secretário Felipe Rigoni tem sido apontado como responsável por uma condução autoritária do projeto e criticado por sua falta de expertise para gerir a pasta. Ele é associado a interesses privados, sendo conhecido como “embaixador do sal-gema”, devido ao seu empenho em viabilizar a mineração das jazidas capixabas, mesmo após o colapso das minas da Braskem, que provocou o afundamento de bairros em Maceió.

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