Agentes privados e o Estado são principais causadores, aponta relatório do CPP
Mais de 10 mil famílias de comunidades tradicionais pesqueiras do Espírito Santo são diretamente afetadas por conflitos socioambientais que ameaçam seus territórios, modos de vida e direitos fundamentais. É o que denuncia o 3º Relatório de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos em Comunidades Tradicionais Pesqueiras, elaborado pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), lançado recentemente em Conceição da Barra, no norte do Estado.
A publicação, que em sua terceira edição sistematiza conflitos em todo o Brasil, chegou às mãos das comunidades capixabas durante o seminário “Pesca Artesanal e os Impactos da Mineração do Sal-Gema”, realizado na Comunidade Quilombola e Pesqueira de Porto Grande, às margens do rio Cricaré. Na ocasião, comunidades da região se reuniram para ouvir o diagnóstico e fortalecer a mobilização em defesa de seus territórios.

Foram registrados três novos relatos de comunidades pesqueiras em conflitos socioambientais no Espírito Santo, todas localizadas no litoral: Marobá, no município de Presidente Kennedy; extremo sul do Estado; Sapê do Norte, que agrega os municípios de Conceição da Barra e São Mateus, no norte; e a comunidade de Urussuquara, também em São Mateus.
O número de famílias, mulheres e crianças envolvidas em conflitos socioambientais é uma estimativa a partir de informações coletadas nas comunidades, registros oficiais e outros documentos, informa o CPP, que destaca como a ausência de dados contribui para marginalizar as comunidades pesqueiras e dificultar a formulação de políticas públicas adequadas. “Portanto, ao estimar a população impactada, o CPP não apenas busca dar visibilidade a essas comunidades, mas também denuncia a omissão do Estado”, enfatiza o relatório.
A publicação denuncia que “a realidade das comunidades tradicionais pesqueiras é historicamente marcada pela ofensiva do capital sobre seus territórios, agravada pelo recrudescimento da violência e pela ausência e omissão do Estado”, o que resulta em desterritorialização; destruição ambiental; criminalização de movimentos sociais; ameaças; perseguições; e mortes.
Os principais agentes causadores de conflitos no Espírito Santo são empresas privadas, agentes particulares e o poder público. Esse cenário acompanha a tendência observada em nível nacional, na qual as empresas privadas figuram como responsáveis por 77,6% dos casos, seguidas por agentes privados (55,1%), Executivo Municipal (55,1%) e Executivo Estadual (53,1%).
Outro ponto central levantado nas três edições do relatório é o histórico processo de grilagem e apropriação de terras públicas, o que força centenas de comunidades a recorrer à judicialização para garantir sua permanência nos territórios.

Avanço do Porto Central
Em Marobá, são cerca de 4 mil famílias que assumem a identidade de pescadores artesanais, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, sendo aproximadamente 6 mil mulheres e 4 mil crianças. O relatório aponta que a comunidade enfrenta um cenário de intensos conflitos socioambientais, principalmente devido à construção de portos e à expansão da indústria naval, além de empreendimentos turísticos, especulação imobiliária e construção de ferrovias.
Entre os principais empreendimentos na região, destaca-se o Porto Central, projeto sob responsabilidade da TPK Logística, que prevê a ocupação de 6,8 mil hectares no entorno do município de Presidente Kennedy. O megaempreendimento visa estabelecer um polo logístico e industrial voltado para mineração, siderurgia, petróleo e gás, estaleiros navais e movimentação de cargas diversas, incluindo rochas ornamentais, veículos, contêineres e produtos do agronegócio.
Apesar das promessas de desenvolvimento econômico, a publicação alerta para “preocupações significativas, pois o projeto atual não tem considerado as comunidades pesqueiras da região de várias formas”. Um dos principais pontos críticos é a ausência de compensações adequadas para as comunidades tradicionais que dependem da pesca artesanal, cujos territórios podem ser profundamente impactados.
Além dos danos econômicos, o levantamento revela consequências ambientais severas: “a construção de portos e a expansão da indústria naval geram muitos problemas e tensões, principalmente devido aos impactos ambientais e sociais”, descreve. Entre eles, destacam-se o desmatamento e a destruição de habitats naturais, a diminuição da diversidade e da quantidade de pescado, a escassez de água e a possibilidade de alterações na sedimentação das praias, e a poluição da água, do solo e do ar.
O relatório também recorda que há um projeto de ferrovia previsto para conectar Vitória ao Rio de Janeiro, integrando o litoral às regiões mineradoras e ao agronegócio do Centro-Oeste. O conflito relacionado ao Porto Central já se estende por mais de uma década e é visto pela comunidade como uma ameaça à reprodução de seus modos de vida tradicionais. Os principais agentes envolvidos nos conflitos são empresas e os poderes executivos, federal, estadual e municipal.
Quatro comunidades próximas, na região limítrofe entre Espírito Santo e Rio de Janeiro, também são afetadas: Lagoa Monte Alegre, São Francisco de Itabapoana, Lagoa Feia e Campo de Goytacazes.
Resistência contra mineração
Na região de Sapê do Norte, em Conceição da Barra, já impactada por décadas de exploração da Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria), mas de 6 mil famílias são afetadas pelos conflitos, em aproximadamente 30 comunidades quilombolas e pesqueiras. Estima-se que, dessas famílias, 8 mil são mulheres e 6 mil são crianças, todas identificadas como pescadores artesanais, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares.
Os conflitos enfrentados incluem discriminação étnico-racial e religiosa; dragagem; empreendimentos turísticos; esgoto industrial e urbano; especulação imobiliária; negligência na garantia de direitos civis e político; além da privatização de áreas e mineração.
Desde 1991, a descoberta de grandes jazidas de sal-gema, consideradas as maiores reservas da América Latina, intensificou as pressões sobre os habitantes, que resistem até hoje às diversas iniciativas que visam à implementação da atividade minerária na região. “A comunidade tem resistido às diversas estratégias e iniciativas que pretendem implementar a atividade minerária na região”, afirma o relatório. Os principais agentes envolvidos nos conflitos são empresas privadas, os governos federal e estadual e a prefeitura.
Entre os impactos ambientais gerados por essas atividades estão o assoreamento; desmatamento; diminuição da quantidade e diversidade de pescado; escassez de água; mortandade de manguezais; poluição; e salinização de rios e poços. Além disso, a comunidade expressa preocupação com riscos de desmoronamentos do solo, a exemplo do que ocorreu em bairros de Maceió em decorrência da exploração de sal-gema.

As comunidades do Sapê do Norte também têm reportado como o cultivo intensivo de eucalipto por parte da Suzano, uma das maiores multinacionais do setor de papel e celulose, provoca o desaparecimento de 156 córregos na região. Há ainda denúncias de privatização de cursos d’água, uso extensivo de poços artesianos para o tratamento da celulose, degradação, concentração fundiária e violência contra povos tradicionais.
Entre as violações promovidas pela empresa, que adquiriu a antiga Aracruz Celulose, acusada de grilagem de terras desde quando se instalou na região, ainda na década de 1970, durante a ditadura militar, estão crimes como “roubo de água, desvio e morte de rios, perda de diversidade, e uso de agrotóxicos associados ao câncer”, segundo denúncia do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Ameaças do TUP
No sul do município de São Mateus, na comunidade de Urussuquara, 375 famílias são diretamente afetadas por disputas territoriais e socioambientais, incluindo aproximadamente 700 mulheres e 300 crianças. A comunidade se identifica como pescadores artesanais e compartilha os conflitos com outros nove territórios próximos: Campo Grande, Barra Seca, Praia das Pedras, Praia de Nudismo, Barra Nova Sul, Barra Nova Norte, Nativo, São Miguel, Ferrugem e Sítio da Ponta.
Desde 2015, Urussuquara sofre as consequências do crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP, que afetou diretamente a região. Atualmente, os principais conflitos estão relacionados à construção de portos, indústria naval e atividades petrolíferas e petroquímicas. Segundo o levantamento, entre os empreendimentos mais controversos, está a proposta de implantação do Terminal de Uso Privativo (TUP) de Urussuquara, um porto destinado à movimentação de contêineres, carga geral e grãos.
Os impactos ambientais incluem desmatamento; redução da biodiversidade; escassez de água; mortandade de manguezais; alterações no perfil das praias; e poluição. Os documentos de licenciamento ambiental indicam que haverá interferência direta na atividade pesqueira em três zonas distintas, com uma área de exclusão de pesca de 947 hectares. Os principais agentes causadores do conflito são empresas privadas, com destaque para a Petrocity, além do governo do Estado e prefeitura.

Violações
A nível nacional,os dados revelam que os conflitos socioambientais enfrentados estão fortemente associados à utilização criminosa e ilegal dos recursos naturais e do meio ambiente e aos racismos ambiental e institucional.
O documento destaca que os conflitos têm gerado impactos socioeconômicos profundos nas comunidades pesqueiras, sendo a “descaracterização de suas culturas tradicionais” a resposta mais citada, afetando 79,6% das comunidades. Esse processo resulta em um desmantelamento dos modos de vida e produção, que são essenciais para a identidade e a sobrevivência dessas populações.
Além disso, 77,6% das comunidades relatam a restrição e a perda de recursos naturais, enquanto 67,3% enfrentam dificuldade de acesso aos seus territórios, limitando as atividades pesqueiras. A diminuição da renda familiar, apontada por 67,3% das comunidades, também é considerada um dos impactos mais relevantes, assim como a insegurança alimentar e nutricional, que atinge 55,1%. O conselho reforça ainda que estes fatores se entrelaçam, comprometem não apenas a economia local, mas também os laços comunitários e o bem-estar das famílias pesqueiras, resultando em processos de vulnerabilidade e exclusão.

Conflitos por água
No ano de 2024, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), por meio do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino (Cedoc), registrou 12 ocorrências de conflito pela água no Espírito Santo, representando o maior número de casos dos últimos cinco anos. Em relação a 2023, indicam um aumento de 71% nos casos registrados. As ocorrências representam mais de um terço das violências no campo, que somam 32, incluindo conflitos por terra (14) e trabalho escravo rural (6).
Metade desses conflitos está no norte do Estado, na região do Sapê do Norte, e em Marilândia. Em Conceição da Barra, a Comunidade do Linharinho denunciou violência por contaminação por agrotóxico; e a de Angelim I, o não cumprimento de procedimentos legais. Em Linhares, a comunidade de Regência, atingida do crime da Samarco/Vale-BHP, também denunciou o não cumprimento de procedimentos legais, e a comunidade de Degredo fez a mesma denúncia contra a mineradora Samarco. A violação também foi reportada na Praia de Guriri, em São Mateus, e na Comunidade Boninsegna, em Marilândia.
Na região metropolitana, as ocorrências envolvem associações de pescadores, devido à destruição ou poluição de corpos d’água. Quatro estão em Cariacica (Associação de Pescadores de Cariacica – Pescar; Associação dos Catadores e Caranguejeiros da Grande Nova Rosa da Penha – Ascapenha; Associação de Pescadores Artesanais de Porto de Santana e Adjacências e Associação dos Pequenos Pescadores da Comunidade Nova Canaã). Na Capital, duas ocorrências foram reportadas pela Associação dos Pescadores, Marisqueiros e Desfiadeiras da Região da Grande São Pedro, em setembro, e pela Colônia de Pescadores.
Apesar de não trazer dados do Estado quanto à caracterização dos agentes e vítimas da violência derivada de conflitos por água, o relatório indica que as principais vítimas dos conflitos pela água no País foram os povos indígenas (71 registros), quilombolas (58), ribeirinhos (28) e posseiros (27). Pescadores e pequenos proprietários aparecem em 24 registros cada. Em relação aos principais agentes causadores dos conflitos, os empresários lideram com 64 ocorrências, seguidos por fazendeiros (58), o Governo Federal (36), mineradoras (34), hidrelétricas (31) e garimpeiros (14).