Metais pesados são encontrados em tecidos consumidos por humanos, apontam estudos

Um quadro de “contaminação persistente por metais como zinco, cádmio, cromo, cobre, mercúrio, chumbo e arsênio, com presença detectada em camarões e peixes, incluindo em tecidos consumidos por humanos, como músculos e fígado”. O alerta é de pesquisadores do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática (PMBA) sobre a situação ambiental do baixo Rio Doce, trecho capixaba afetado diretamente pelo crime da Samarco/Vale-BHP, e foi feito durante o seminário técnico-científico de apresentação dos resultados dos estudos, iniciado nesta quarta-feira (23).
Deformidades em larvas de peixe, especialmente tilápias, aumentaram 70% desde 2021, com casos graves envolvendo extravasamento do tecido neural e rompimento do trato digestivo. Camarões também apresentaram altos índices de acúmulo de metais, com análises feitas em tecido branco, hepatopâncreas e músculo.
Na avaliação genética de sete espécies de peixes — incluindo corvina, três tipos de lambari, barrigudinho e traíra —, apenas corvina e traíra demonstraram sinais positivos de recuperação. Ainda assim, a diversidade genética permanece frágil. Além disso, 34% das espécies registradas na região são introduzidas, um indicativo da desequilíbrio ecológico. Os peixes analisados — especialmente os consumidos pela população – apresentaram alterações biológicas que expressam os efeitos tóxicos da exposição prolongada aos contaminantes.
A diversificação funcional da biodiversidade segue estagnada, mesmo quando há aumento de espécies – elas continuam exercendo as mesmas funções ecológicas, o que revela filtros ambientais muito seletivos ainda em ação”, explicou a professora Eneida Maria Eskinazi Sant’Anna. Ela observa que a maioria dos grupos de seres vivos enfrenta dificuldades em aumentar seu número de espécies, com tendência de redução da diversidade ao longo do tempo.
Eneida destacou que os impactos sobre a estrutura das comunidades aquáticas permanecem evidentes, principalmente nos níveis superiores da cadeia trófica, como macrófitas e peixes. “Há uma recuperação lenta da riqueza de espécies. A base da cadeia apresenta algum grau de resiliência, mas os níveis superiores continuam profundamente afetados”.
De acordo com a professora, o índice de toxicidade da água apresenta tendência de melhora, mas o sedimento permanece levemente tóxico. Regiões como o Lago Juparanã, o Lago Novo e a foz do Rio Doce seguem moderadamente impactadas, com picos de contaminação em períodos chuvosos que resgatam o material tóxico depositado no fundo dos corpos d’água. “Os efeitos positivos oriundos das ações de restauração ainda não são claramente perceptíveis”, enfatiza, quase dez anos após o rompimento da barragem. Para ela, a bacia do Rio Doce enfrenta desafios complexos que envolvem, além da contaminação persistente, novos cenários climáticos e pressão humana contínua.
O oceanógrafo Joca Thomé, coordenador do Centro Tamar no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e integrante da Câmara Técnica de Biodiversidade do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) – acordo que criou a Fundação Renova e seus 42 programas de compensação e reparação socioambiental – aponta que o cenário atual dos ecossistemas aquáticos na bacia do Rio Doce ainda é extremamente preocupante. Ele ressalta que embora haja uma “certa impressão de melhoria” em alguns indicadores, especialmente na qualidade da água devido ao efeito natural de diluição com o passar do tempo, os dados gerais continuam a mostrar uma realidade alarmante.
“Realmente é um quadro preocupante, e que, com muita chuva, tudo pode voltar há dez anos”, afirmou, observando a existência de alterações significativas nas estruturas aquáticas e em toda a cadeia trófica, com redução no número de espécies, lentidão na recuperação das que ainda estão presentes e até mesmo estagnação — ou regressão — na diversidade funcional dos ecossistemas. “Só está piorando”, enfatizou. “A gente vem falando, porque às vezes há uma impressão de melhoria, quando de fato não tem melhorias. Os resultados gerais são bastante ruins, são claramente perceptíveis, e deixam todo mundo muito preocupado”, reforça.
O seminário do Programa de Monitoramento da Biodiversidade Aquática também vai abordar os ambientes costeiros e marinhos e apresentará, ao final desta quinta-feira (24), uma matriz integrativa dos resultados, que já apontam mais de 300 impactos identificados desde o início do programa.
‘Autonomia técnica’
‘Os dados foram divulgados em um momento de transição na governança do processo de reparação pelo crime socioambiental. O novo acordo de repactuação, homologado em novembro de 2024, prevê o fim da Fundação Renova até novembro de 2025, com um período de transição até maio de 2026. A responsabilidade pela supervisão das ações passará a um novo modelo coordenado por órgãos ambientais e representantes da sociedade civil, com apoio do ICMBio.
Criada em 2016, a Câmara Técnica de Biodiversidade (CTBio) continuará participando da transição e da estruturação do novo programa de monitoramento, cujo desafio central é transformar conhecimento científico em políticas públicas e medidas efetivas de recuperação do rio Doce e seus ecossistemas. Joca destaca que a fase atual é de transição, com maior abertura para abordagens técnicas e científicas, em contraste com o modelo anterior, marcado por impasses jurídicos e administrativos. “Estamos saindo de um processo em que a Renova media e muitas vezes filtrava os dados. Agora, a gestão será compartilhada entre ICMBio e outros órgãos, com mais autonomia técnica”, disse.
‘Estudos urgentes’
Em 2024, o relatório anual apontou negligências graves nas ações de reparação nas áreas contaminadas. Especialistas reiteraram que a constatação do aumento da “biomagnificação” de metais pesados em animais de topo de cadeia, como peixes maiores, cetáceos e tartarugas marinhas, demonstra a urgência de se realizar, de uma vez por todas, estudos semelhantes em seres humanos. Os especialistas reforçaram a necessidade de entender de que forma essa contaminação, já comprovada nos animais aquáticos, tem afetado as pessoas, principalmente as que fazem consumo mais frequentes dos pescados, para que medidas de saúde pública sejam tomadas.
Estudos da Aecom Brasil, perita judicial contratada pelo Ministério Público Federal, também já haviam apontado para a gravidade dos efeitos de uma contaminação por metais na saúde humana, mas o Comitê Interfederativo (CIF) não reconheceu esses dados, tampouco as empresas criminosas, então as medidas judiciais e práticas não foram tomadas.