Quinta, 18 Abril 2024

Dá para ser amigo do clima sem ameaçar a soberania alimentar e a biodiversidade?

casagrande_cop_26_helio_filho_secom Hélio Filho/Secom
Hélio Filho/Secom

O protagonismo do Espírito Santo sob gestão de Renato Casagrande (PSB) nos acordos climáticos em escala nacional e global deu mais um passo na última sexta-feira (22), com a sanção, pelo governador capixaba, da Lei Ordinária n° 11.668, que ratifica o protocolo de intenções para a criação do Consórcio Interestadual Brasil Verde, cujo objetivo é promover o enfrentamento aos efeitos adversos das mudanças climáticas, em conjunto com os demais estados brasileiros.

A proposta de uma coalização de governadores pelo clima foi liderada por Casagrande durante a 26° Conferência das Nações Unidas para a Mudança Climática (COP-26), em Glasgow/Suécia, em novembro passado, onde, inclusive, ele foi eleito por unanimidade para a presidência do Consórcio. Para que seja efetivamente criado, é preciso que os chefes do Executivo de ao menos outros 19 estados sancionem leis semelhantes, a exemplo do que fizeram o Espírito Santo e o Mato Grosso do Sul.

Giovani Pagotto/GovES

A finalidade primordial é gerir aportes internacionais de recursos públicos e privados, com destaque para o governo dos Estados Unidos e empresas multinacionais. A dica foi dada em Glasgow pelo governador, ao comentar a pauta da reunião feita com o emissário americano Jonathan Pershing, representante do enviado especial dos Estados Unidos para questões climáticas, John Kerry. "Falamos sobre a importância de países ricos e entidades investirem no Brasil para atingirmos as metas. Contudo, nosso grande problema no Brasil, é aprovar financiamentos externos que, em alguns casos, chegam a durar até quatro anos. Por meio de doações, os recursos podem ser repassados de forma direta, superando assim a burocracia".

Já a pista para a conveniência da realização das tais doações por parte de multinacionais do agronegócio, como a Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose), vem da sua assídua presença em iniciativas ligadas ao mercado capixaba de sequestro de carbono. Umexemplo é o Plano de Agricultura de Baixo Carbono (Plano ABC) do Espírito Santo, cuja primeira versão (2014-2020) traz a papeleira como "parceira no alcance de resultados e ações". 

O "Resultado 1" projetado é "Ampliação da Cobertura Florestal" e se subdivide em dois indicadores: "Florestas nativas recuperadas" (15 mil hectares) e "Florestas Plantadas Recuperadas" (12 mil hectares de SAFs de seringueira e cacau e 30 mil de eucaliptais). 

Para atingir esse resultado, cinco ações foram estabelecidas: a primeira, plantio de 100 milhões de mudas de "café, seringueira, eucalipto, cacau etc." O Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, publicado em 2018, indica que, especificamente em relação à eucaliptocultura, a meta deve ter sido alcançada. Reunindo o monitoramento das mudanças na cobertura vegetal em todo o território capixaba ocorridas entre 2007/2008 e 2014/2015, a publicação mostra que os monocultivos de eucalipto foram o uso do solo que mais cresceu no período, subindo de 5,8% para 6,8%, um aumento de 45,3 mil hectares. 

A quinta ação do Plano ABC referente ao Resultado 1 é a contratação de 21 mil hectares de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), meta que também foi atingida, pois, os resultados oficiais do Programa Reflorestar, para o período de 2015 a 2019, exibem a realização de 3,79 mil contratos de PSA, que, juntos, somam 20,1 mil hectares de áreas que foram alvo ou de recuperação ou de reconhecimento de florestas em pé. O investimento no período foi de R$ 73,3 milhões. 

Florestas e 'florestas'

O cruzamento desses diferentes estudos e planos mostra como o deserto verde continua tendo prioridade em relação à floresta nativa. O termo floresta, aliás, é usado para se referir aos monocultivos comerciais de ciclo curto que abastecem as fábricas de celulose da Suzano, mesmo sendo os mesmos fontes de aplicações periódicas de agrotóxicos, causadores de escassez hídrica e violação de direitos de povos e comunidades tradicionais, globalmente conhecidos como protetores das verdadeiras florestas, com sua biodiversidade e serviços ecossistêmicos característicos, que vão muito além do sequestro de carbono.

A tendência, segundo a gerência do próprio Reflorestar, é que a próxima edição do Atlas aponte a mesma dinâmica: eucalipto liderando a expansão, seguido do café; mata nativa com cobertura estável (porém perdendo em complexidade e biodiversidade, com mata jovens substituindo florestas maduras); e pecuária encolhendo, apesar de continuar ocupando a maior área (39,2% em 2015). 

A prometida nova fábrica da multinacional em Aracruz, anunciada para começar a operar em 2024, quando irá gerar 200 empregos, entre diretos e indiretos, vai exigir mais terra coberta com monocultivos exóticos. O investimento para erguer a fábrica é de R$ 600 milhões, obtido pela empresa por meio de isenções fiscais concedidas pelo governo do Estado. 

Extrema pobreza

Curiosamente, é o montante similar indicado, em 2019 pelo Instituto Jones dos Santos Neves, como necessário para retirar todas as pessoas que viviam na condição de extrema pobreza no Espírito Santo antes da pandemia. Em 2021, no entanto, o valor aportado pelo Palácio Anchieta nessa tarefa foi de R$ 136,52 milhões, um orçamento oito vezes maior que o de 2018, porém, ainda assim, equivalente a apenas 22,7% do que recebeu a papeleira. 

Outro estudo do IJSN, relativo à pobreza no Espírito Santo, no âmbito do Projeto de Desenvolvimento Regional Sustentável (DRS), traz a extrema pobreza como características do "indigente", "aquele indivíduo cuja renda familiar per capita não é suficiente nem para cobrir os gastos com alimentação". 

A degradação ambiental e humana são duas faces da mesma moeda, por isso a importância do pleito histórico empreendido por organizações sociais do campo, como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que tem, entre suas prioridades, a realização de iniciativas que são amigas do clima sem serem inimigas da soberania alimentar e da sociobiodiversidade. São projetos que visam a recuperação ambiental, produção e conservação da água, por meio da produção de alimentos saudáveis, baseados na Agroecologia e nos Sistemas Agroflorestais (SAFs). 

"A gente vem colocando isso para o governo do Estado em vários momentos, mas ainda se investe pouco nessa área. Existe o Programa Reflorestar, mas ele é muito limitado e não atende às regiões que estão mais degradadas, como na divisa com Minas Gerais, desde Baixo Guandu até a região norte e noroeste", expõe Dorizete Cosme, membro da coordenação estadual do MPA no Espírito Santo. 

"Continuaremos pautando, para os governos estadual e federal, a necessidade de que a gente também participe dessas discussões sobre políticas para o clima, porque projetos que fazem sequestro de carbono são uma fonte de renda para as famílias camponesas, até mesmo as que trabalham com o café. Elas podem solicitar e desenvolver projetos que fazem o sequestro de carbono e, por isso, receberem também bonificações, assim como as grandes empresas do agronegócio já recebem, com suas monoculturas, como é o caso da Suzano e os monocultivos de eucalipto", pleiteia o líder camponês. 

Linhas de crédito

Os SAFs também são destaque no cardápio de tecnologias incentivadas pelo Plano ABC, que terá sua segunda versão publicada até o final deste ano, estima o coordenador de Silvicultura e Produção Vegetal da Secretaria de Estado da Agricultura (Seag), Pedro Luís Pereira Teixeira de Carvalho, um dos autores do primeiro volume. 

"SAFs têm um potencial imenso para crescer dentro do Plano ABC, porque, além do carbono, trazem a questão da biodiversidade, se forem usados diferentes estratos do sistema agroflorestal, com diferentes espécies", afirma. 

O coordenador ressalta que é preciso fazer um trabalho de formação dos agricultores e divulgação, entre eles, das linhas de crédito específicas da ABC, disponíveis em instituições como o Banco do Brasil, Sicoob e Bandes.

"O Espírito Santo está acessando pouco essas linhas de crédito", diz, comparando com estados como São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina.

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Comentários: 2

Verônica em Segunda, 25 Julho 2022 08:33

E o concurso do Iema, autorizado há 01 ano?

E o concurso do Iema, autorizado há 01 ano?
Paulo dos Santos Andion em Domingo, 07 Agosto 2022 09:14

O mais interessante é que se trata de um consórcio para o reflorestamento lucrativo no campo que não cita o prêmio aos consorciados e sim muito trabalho pela frente em cifras que alcançarão bilhões de dólares e talvez uma oferta de apartamentos que empuleram famílias na beira das praias capixabas, consideradas áreas nobres, que impedem a passagem da luz do sol nas tardes de domingo.

O mais interessante é que se trata de um consórcio para o reflorestamento lucrativo no campo que não cita o prêmio aos consorciados e sim muito trabalho pela frente em cifras que alcançarão bilhões de dólares e talvez uma oferta de apartamentos que empuleram famílias na beira das praias capixabas, consideradas áreas nobres, que impedem a passagem da luz do sol nas tardes de domingo.
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Sexta, 19 Abril 2024

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