Propostas foram apresentadas por consultoria contratada por mais de R$ 8 milhões
Bondinhos, tirolesas, teleféricos, glampings, restaurantes esculpidos em rochas, trenós, estacionamentos de grande porte e até passeios de helicóptero: essas são algumas das estruturas previstas nos planos estratégicos elaborados pela multinacional Ernst & Young para os parques do Espírito Santo. Os documentos, com baixíssima divulgação e restritos ao site da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama), descrevem em detalhes a transformação de áreas de proteção integral em polos de turismo de massa.
A consultoria recebeu mais de R$ 8,6 milhões para desenhar os modelos de exploração turística dentro do Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (Peduc), que prevê a concessão de seis áreas de proteção integral por 35 anos. No pacote estão seis unidades: o Parque Estadual de Itaúnas (PEI), em Conceição da Barra, norte do Estado; Cachoeira da Fumaça (PECF), em Alegre, região do Caparaó; Forno Grande (PEFG) e Mata das Flores (PEMF), em Castelo, no sul; Paulo César Vinha (PEPCV), em Guarapari; e Pedra Azul (Pepaz), em Domingos Martins, na região serrana.

O contrato estabelece a obrigação de realizar audiências públicas pela empresa, o que ainda não aconteceu, reforçando as críticas de falta de transparência e participação social no processo. Os únicos debates convocados até agora são de iniciativa da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa. Em abril deste ano, um termo aditivo estendeu o prazo para a conclusão dos modelos de exploração econômica e turística até 2027. Com isso, o leilão das unidades, inicialmente previsto para o primeiro semestre deste ano, também foi adiado.
A estratégia de divulgação mínima é considerada proposital por ambientalistas, para evitar que o movimento contrário ao programa ganhe corpo. As críticas se intensificam também sobre a postura da Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, chefiada por Felipe Rigoni (União), acusada de defender um discurso de sustentabilidade enquanto patrocina um modelo de turismo de massa em áreas frágeis.
“É um equívoco enorme. Eles estão confundindo parques de proteção integral, criados para conservação da biodiversidade, com parques urbanos de entretenimento”, avalia o biólogo Hugo Cavaca, do Movimento em Defesa das Unidades de Conservação. Para ele, os planos estratégicos representam “um show de horrores”, elaborados sem base ambiental consistente.

As propostas levantam preocupações não apenas pela pressão sobre ecossistemas frágeis, mas também pelos impactos sociais. Em parques como Itaúnas e Paulo César Vinha, as comunidades locais reagiram ao descobrir que poderiam perder espaço para resorts, bangalôs e estacionamentos que comportam centenas de carros. O custo de ingresso também preocupa. Os parques usados como referência nos estudos cobram valores acima de R$ 80, o que, segundo ambientalistas, elitiza o acesso e exclui as populações que sempre viveram no entorno das áreas protegidas.
Outro ponto central é a descaracterização do papel das unidades de conservação. “O SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] estabelece que parques de proteção integral existem para conservar. O uso público deve ser compatível com essa função. Mas os estudos ignoram isso e propõem turismo de massa, agressivo e degradador”, acrescenta.

‘Tela em branco’
Os planos estratégicos detalham uma série de equipamentos de lazer que destoam do tamanho reduzido das áreas capixabas. Para a Cachoeira da Fumaça, são sugeridos estruturas como mirantes, centros de visitantes, restaurantes, lojas de souvenirs e até uma tirolesa sobre o vale. O Parque Forno Grande, que divide ecossistemas com a Pedra Azul, aparece como espaço para bondinhos, hotéis, áreas gastronômicas e teleférico — inclusive em zona classificada como de preservação.
No caso do Parque Estadual Mata das Flores, em Castelo, a consultoria descreve a área como uma “tela em branco”, aberta a jardins temáticos e estruturas de lazer. Itaúnas e Paulo César Vinha também receberam projetos agressivos: estacionamentos para centenas de veículos, glampings, bangalôs, piscinas, decks flutuantes e trilhas suspensas em áreas de restinga.
Inspiradas em grandes parques internacionais, essas propostas contrastam com a dimensão das unidades capixabas, muitas com menos de 200 hectares. “Todos os parques do Espírito Santo cabem dentro de uma única área como o Parque do Iguaçu. Comparar essas escalas é uma loucura”, ressalta a bióloga Andressa Hartuiq, que atua em iniciativas comunitárias de conservação no Caparaó Capixaba e compõe o Movimento em Defesa das Unidades de Conservação, criado para denunciar a deturpação da função primordial das áreas de proteção integral atingidas pelo programa estadual.

As críticas se intensificaram em um seminário recente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia, que reuniu professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), pesquisadores do Jardim Botânico, do Rio de Janeiro, Ministério Público e movimentos sociais. Representantes da Seama, porém, não compareceram.
O encontro foi considerado um divisor de águas por ambientalistas, pois expôs com clareza os riscos ambientais e sociais das propostas. Para os participantes, a tentativa do governo de adaptar os planos de manejo aos interesses do Peduc representa um desrespeito à legislação ambiental. “Primeiro deveriam existir planos de manejo consistentes, depois se poderia discutir o uso público. Aqui inverteram o processo, atropelaram etapas e produziram documentos sem serventia para a conservação”, reitera Hugo Cavaca.
Diante da ausência de diálogo, o Movimento em Defesa das UCs pretende ampliar a articulação com o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para questionar juridicamente o programa. “Nosso objetivo é abortar o Peduc e abrir um diálogo real sobre planos de uso público que respeitem os limites da conservação. Ninguém é contra visitação, mas precisa ser um turismo consciente, de base comunitária, que fortaleça quem já cuida do território”, resume o ambientalista.
Audiências no Caparaó
Enquanto o governo evita dar visibilidade às propostas, a Comissão de Meio Ambiente vai realizar duas audiências públicas na região do Caparaó Capixaba. No dia 25 de novembro, será em Alegre, e no dia 26, em Ibitirama. As propostas têm recebido forte rejeição popular à medida que são exibidas nesses encontros. Em audiências promovidas pelo colegiado em Itaúnas e no Parque Paulo César Vinha, comunidades locais, especialistas e militantes de movimentos sociais denunciaram que a gestão estadual avança em um modelo de concessão que pouco dialoga com a legislação ambiental e ignora a função primordial dessas áreas.
“Percebemos uma surpresa muito grande da população quando, realmente, é mostrado para elas o impacto que vai ocorrer nas áreas. As pessoas contam que não sabiam que seria dessa forma, imaginavam outra coisa. Geralmente, o que escutamos é que não vai ser bom, nem para elas e ainda menos para a natureza, que precisa ser preservada”, relata a bióloga Andressa Hartuiq. Para ela, o momento exige resistência e reflexão coletiva. “A natureza não pode ser transformada em mercadoria em todos os lugares. Existem áreas que precisam simplesmente existir, sem exploração econômica. Os parques capixabas deveriam ser esses lugares”, defende.