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Indígenas Guarani lançam campanha para criar aldeia independente

Comunidade, que enfrenta há décadas ameaças e violações em Aracruz, busca “refúgio sagrado”

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O povo Guarani Mbya do Espírito Santo lançou uma campanha nacional para arrecadar recursos e comprar um território em Santa Leopoldina, na região serrana, onde pretende fundar a Aldeia Montanha das Águas Claras, um espaço autônomo, espiritual e ecológico. O projeto é liderado por Werá Djekupe, conhecido como Marcelo Guarani, bisneto de Tatãtin Ywarate – anciã que realizou a caminhada sagrada Guarani.

A iniciativa nasce do desejo de construir o que Marcelo chama de “santuário Guarani”, um território independente “do governo e da Fundação Nacional do Índio (Funai)”, voltado à preservação das sementes crioulas, da espiritualidade e da autonomia ancestral. “Nossa ideia é criar um espaço para continuar o nosso modo de vida agora mesmo. É um lugar de paz, harmonia e encontros. Um lugar onde a gente possa plantar o nosso milho sagrado e as sementes crioulas, viver com dignidade e manter a origem Guarani viva”, explica.

O local escolhido é o Sítio Montanha das Águas Claras, uma área de 50 hectares com floresta nativa, cachoeiras e nascentes, a cerca de 20 quilômetros do município de Santa Teresa. Segundo Marcelo, o espaço já possui escritório, dormitório, área de camping e uma casa para guardar sementes tradicionais. “Lá é tudo natureza, não tem monocultura, não tem vizinho próximo – o morador mais perto está a quatro quilômetros. É um lugar para manter nossa conexão espiritual com a natureza, cultivar plantas medicinais e realizar nossos batismos e encontros nacionais do povo Guarani”, acrescenta.

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A compra do terreno foi aprovada em assembleia da Associação Indígena Guarani Ka’agwy Porã, e o contrato, no valor de R$ 2,5 milhões, prevê pagamento parcelado ao longo de quatro anos e meio. A arrecadação é feita por meio de uma campanha de financiamento coletivo e da venda do livro Nhê ẽ’õyvu Porã – muito mais do que palavras bonitas, glossário bilíngue Guarani-Português produzido pela comunidade.

O projeto nasce após décadas de conflito e esgotamento social em Aracruz, no norte capixaba, onde os Guarani e os Tupinikim convivem com a devastação ambiental provocada pela monocultura do eucalipto da Suzano Papel e Celulose, antiga Aracruz Celulose e Fibria. O empreendimento da Aracruz Celulose transformou milhares de hectares de Mata Atlântica em desertos verdes, somado a sucessivas violações de direitos e episódios de violência no território indígena.

As aldeias resistem em fragmentos de terra cercados por monoculturas que secam rios e empobrecem o solo. “Essas plantações destruíram o que era floresta viva. Secaram nossas águas e calaram o canto dos pássaros”, relata o documento Nova Aldeia Guarani: Montanha das Águas Claras.

A presença Guarani no Espírito Santo remonta à década de 1960, quando grupos Mbyá vindos do Sul do país migraram em busca de terras férteis e florestas abundantes. Eles se fixaram no litoral norte, especialmente em Aracruz e São Mateus, estabelecendo laços com os Tupinikim, originários da região.

Marcelo vê a nova aldeia como resposta a esse cerco histórico. “As aldeias existentes vão continuar, mas essa nova aldeia é para a gente manter a tradição Guarani um pouco mais distante da população, viver e cultuar nosso Deus com liberdade. É um espaço de espiritualidade, de comida verdadeira, de tembi’u eté, a comida indígena sagrada”, afirma.

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Para o povo Guarani, a Montanha das Águas Claras representa a retomada da Terra sem Males (Yvy Marãey) – o território sonhado nas tradições orais como o lugar de plenitude e equilíbrio com a natureza. “A gente quer um espaço independente do governo, da política, da Funai. O governo muda, e nossos direitos mudam com ele. Por isso, queremos um lugar nosso, de onde ninguém possa tirar a gente outra vez”, defende Marcelo.

O projeto se define como um ato de soberania ancestral, diante do avanço de leis que ameaçam os direitos indígenas, como o Marco Temporal (Lei 14.701/2023) e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que tenta transferir ao Congresso Nacional a competência para demarcações de terras. O documento denuncia que tais medidas “legitimam invasões e paralisam processos de reconhecimento”, favorecendo o agronegócio e a mineração. As terras do Espírito Santo também são ameaçadas.

Na nova aldeia, os Guarani planejam criar um centro de formação tradicional, onde parteiras, pajés e anciãos possam transmitir saberes sobre espiritualidade, cura e agricultura natural. O território abrigará também uma casa de reza (opy) e um espaço de partilha de sementes crioulas, consideradas “guardiãs da vida”.

“Queremos reproduzir nosso modo de vida e mostrar que é possível viver com a floresta, cultivar o milho sagrado, as plantas medicinais, e ensinar as crianças a escutar o som da terra”, afirma Marcelo. “Esse lugar vai servir de exemplo para outras aldeias do Brasil”.

Segundo o projeto, o território também funcionará como laboratório vivo de agrofloresta e medicina tradicional, reunindo práticas sustentáveis e saberes espirituais. “Lá teremos comida sem veneno, sem adubo químico, e a força das águas claras que dão nome ao lugar”, completa.

Para viabilizar a compra, a Associação Ka’agwy Porã lançou um chamado à solidariedade popular. As doações podem ser feitas via Pix ou depósito (CNPJ 46.225.789/0001-80) na conta da Associação Indigena Guarani Ka’agwy Porã. “A gente precisa atingir dois milhões e meio de pessoas que doem a partir de um real. Cada doação é uma semente plantada para o futuro”, ressalta Marcelo. A campanha também busca apoio de instituições, artistas e movimentos socioambientais.

“Não se trata só de comprar uma terra. É de garantir a continuidade de um povo que sobreviveu à colonização, às expulsões, à violência. O que a gente quer é viver de forma digna, com autonomia, espiritualidade e respeito à Terra Mãe”, resume Werá Djekupe.

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