Sexta, 19 Abril 2024

'Marcas precisam se co-responsabilizar por destino final de seu produto'

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Nascida no interior da Bahia, Juliana Lisboa veio aos 13 anos morar em Vitória, onde se formou em Design na Ufes. De lá pra cá desenvolveu uma trajetória não só pensando o desenho de produtos mas também a interface do design com as cidades, sendo uma das criadoras do projeto Cidade Quintal, que já realizou notáveis intervenções urbanas em diversos bairros de Vitória. 

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"Desde pequena me interessei muito por solucionar coisas", resume a artista, ao falar da essência de seu trabalho, que tem forte influência da visão social e coletiva da mãe e da habilidade prática da vó, acostumada a produzir com as próprias mãos por meio da costura, marcenaria, entre outras coisas. O design, entendido por Juliana Lisboa como um campo que articula empatia, usabilidade, comunicação e inovação, ainda tem um entendimento muito restrito pela sociedade em geral, e no Espírito Santo é acessado por uma parcela muito pequena da população.

Ela cita o caso de lojas de móveis voltados para as classes B, C e D. Com formatos pré-moldados mal projetados e materiais perecíveis, são pouco adequados para lares expostos a alagamentos ou mudanças constantes de endereços, podendo ficar precários rapidamente. "A comunidade de designers no Brasil ainda reproduz muito modelos externos e não olha de uma forma ampla para seu papel enquanto agente de mudança social, ambiental, política. Está ocupada com outras coisas", afirma.

Uma de suas preocupações frequentes é com a sustentabilidade, incluindo consumo consciente, o desperdício e o impacto socioambiental das embalagens que usamos. O próprio trabalho da Cidade Quintal tem refletido sobre o reaproveitamento de materiais, tendo virado tradição ao final de cada projeto, que as latas de tinta utilizadas recebam pinturas manuais e possam ser ressignificadas para uso como vasos de plantas ou outras funções. Chamado, reLATAS, o projeto terá nova edição na manhã do dia 27 de março no espaço Casa Flor, na Rua Gama Rosa, Centro de Vitória.

Antes disso, até 15 de março, Juliana está participando da residência artística Entre Nós 2021, sendo a terceira convidada do projeto realizado pela OÁ Galeria Arte Contemporânea com curadoria de Clara Sampaio. Desde sua casa e percursos pela cidade de Vitória ela vem gerando reflexões e provocações sobre o uso das embalagens. Conversamos com Juliana sobre essas e outras questões.

Como está sendo essa residência? Que tipo de atividades está realizando?

É a minha primeira residência e ela está acontecendo a partir de três lugares: minha casa, trajetos da cidade e pelo Instagram da Entre Nós. São duas semanas em que estou trabalhando com provocações para fabular futuros possíveis.

Essas provocações são para mim, para o público que está acompanhando, para as marcas, para a cidade de Vitória. No começo parei para ler, analisar a linha do tempo dos últimos três anos em que comecei a atuar sobre essas questões para entender um pouco melhor esse meu movimento.

Escolhi dois bairros de Vitória, Ilha das Caieiras e Jesus de Nazaré, para fazer algumas caminhadas, buscando relacionar a questão do consumo na cidade com as águas, tendo em vista o fato de vivermos numa ilha.

Nesse processo, continuei a registrar o que tô chamo de #marcasnomar, com postagens de fotos e vídeos de embalagens legíveis sobre as águas, marcando suas donas. Também descobri que o Festival da Torta Capixaba da Ilha das Caieiras este ano acontece via delivery, que é um ponto crítico nessa questão do aumento do consumo de plástico pós-pandemia. Então no momento estou fabulando uma proposta -até então fictícia - de festival lixo-zero, em que estou projetando um kit delivery de baixo impacto ambiental e alto impacto para a economia local, levando um pouco da identidade do bairro e chamando a atenção do público para a pauta do plástico no mar.

Como entende que chegamos ao ponto de hoje, onde a descartabilidade virou algo comum e até positivo? Quais os impactos socioambientais disso?

Tudo isso é muito recente na história da humanidade e vem crescendo exponencialmente mais rápido do que damos conta de entender. Antes o casco da Coca-Cola era retornável, o absorvente era um paninho de lavar, o bebê usava fralda de pano. Sem a competição entre marcas os supermercados tinham uma outra configuração, existia o granel e poucas opções de produtos, o leite era um vidro que você enchia e esse era o mundo.

A história do plástico nos últimos 100 anos deveria ser estudada na escola. Hoje, você pensa em comprar alguma coisa, abre uma loja online e dois dias depois a coisa se materializa na sua frente. A gente está muito mal acostumado com uma vida "prática", e aprendeu a abstrair totalmente toda cadeia que existe por trás e pela frente do simples ato de descartar, que dura segundos. Muita gente ganha dinheiro e se dá bem em cima desse modelo de consumo, no entanto, a conta está chegando para todas.

Como quebrar uma cultura que parece ter se consolidado entre a maioria? Como você enxerga a questão da responsabilidade de empresas e de consumidores sobre o uso insustentável das embalagens? Como esses dois lados podem mudar suas práticas?

Desde que comecei a repensar o meu papel como designer nessa história de consumo responsável, comecei a comprar diferente. Senti uma dificuldade imensa em saber a procedência das coisas. Fui procurar um tênis para caminhada e queria saber do que ele era feito, onde foi feito, por quem foi feito. E simplesmente essas informações não existem para nós consumidores. Vai lá na Nike, Puma, Adidas, All Star, Reebok, etc. Eu não achei. Você vai encontrar um modelo-conceito, limitado, com uma puta campanha emocionante que nem está à venda. Mas em sua totalidade, existem milhares de ofertas e você não sabe o que está comprando.

Em primeiro lugar eu gostaria de ver transparência por parte das marcas. Depois elas precisam se co-responsabilizar pelo destino final do seu produto. De alguma maneira, seja repensando na base, para um design projetado com uma lógica circular, seja pensando numa reciclagem, seja fazendo logística reversa, seja o que for, fazer alguma coisa. Na outra ponta, o consumidor precisa ser seletivo e passar a "descartar" a opção de consumir dessas marcas caixa-preta.

Além disso, aprender a descartar da maneira correta, consumir menos, etc. Eu comecei a filmar embalagens plásticas com marcas visíveis nos rótulos, e marcar o @ e a # da marca, buscando levar esse rastro ambiental para um rastro nas redes sociais deles. Outro dia, uma marca de café do Espírito Santo que eu marquei me respondeu um pouco chateada, dizendo que não sabia que as embalagens deles iam parar no mar.

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Que tipo de usos de embalagem que eram comuns no passado e podemos resgatar? Que novas alternativas surgiram recentemente e se mostram viáveis?

No campo da alimentação, muita coisa pode ser feita. Existe o granel para a gente substituir o supermercado na compra de cereais, óleos, farinhas, temperos, conservas, doces, etc. Você pode inclusive levar sua sacola e seus potes de casa. Na limpeza, há muitas receitas naturais para substituir os produtos prontos, e o que não der, geralmente essas embalagens são plásticos com grande potencial para reciclabilidade, com alta durabilidade. Então cabe à comunidade aprender a higienizar, separar e destinar corretamente.

Ainda nessa parte da higiene, muitas marcas femininas têm recriado a forma como olhamos para a menstruação, oferecendo produtos que substituem o absorvente descartável pelo reutilizável e ainda quebram tabus, investem numa melhor saúde para as mulheres. Soluções parecidas têm surgido para as fraldas reutilizáveis. Na moda, além de uma reeducação para uma redução do consumo, valorizar os produtores locais, procurar saber do que é feito o tecido, fugir de tecidos que utilizam plástico na sua composição

.Quais exemplos de boas práticas nesse sentido você citaria no Brasil e no mundo?

No mundo, um movimento que estou acompanhando de perto é o Precious Plastic, que é uma galera da cultura maker e da inovação aberta que tem difundido a cultura do design para reciclagem de plástico no mundo. Eles tiveram um boom de 2020 para cá, e muitos labs no Brasil surgiram a partir disso.

Essa plataforma ensina o beabá e como montar o maquinário industrial a baixo custo para a criação de um lab, como mobilizar uma rede comunitária para o fornecimento de plástico, como funciona o plástico propriamente, o que é possível ser feito a partir dele e das máquinas. Meu sonho atual é montar um lab desses por aqui e junto com a Cidade Quintal começar a produzir mobiliário urbano de plástico reciclável.

No Brasil, um exemplo que conheci no Recife em 2019 em uma visita à Secretaria de Inovação Urbana é o da Cooperativa Palha de Arroz, formada por mulheres. Lá o pessoal da prefeitura em parceria com a universidade montou esse lab, capacitou essas mulheres e hoje já faz três anos que elas estão reciclando plástico, fazendo peças incríveis, gerando renda, educação cidadã, muita coisa junto.

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