Segunda, 29 Abril 2024

Reportagem especialO pescador de ilusões

Reportagem especialO pescador de ilusões
Texto: Henrique Alves
Fotos: Arquivo Pessoal
 
Semana passada, neste jornal, ele apareceu com a história de um peixe banhado em óleo e pó de minério. Passou-se o seguinte:
 
O motor do barco ancorado no píer do Iate Clube do Espírito Santo é grande, razão pela qual reclama movimento. O ócio poderia azedar-lhe a operacionalidade. Assim que, unindo o útil ao agradável, Bebeto Ruschi e o dono do barco, seu filho Fábio, resolveram por pescarias em domingos alternados. Domingo sim, domingo não, dedicam-se os dois a uma horinha de suave errância pelo trecho de Oceano Atlântico que banha Vitória. 
 

    


Três domingos atrás, era 7h30 quando saíram para o mar de Camburi.  O barco zarpou do Iate Clube, ladeou a Ilha da Galheta e deslizou rumo à ponta de Tubarão. 
 
Há um ano e meio Bebeto não navegava aquelas paragens. Hoje diz, solene: “Se não é a vivência...”. Foi a larga vivência de mais de meio século singrando as águas capixabas que lhe acionou instantaneamente o instinto do perigo ao ver um pequeno inseto pousado no teto da cabine. “Tira a âncora, se abaixa e não se mexe”, advertiu ao filho. Um grosso enxame de abelhas africanas se instalou pouco depois sobre o teto da lancha.
 
O barco fundeara ao lado de um navio escuro; os dois usufruíram o mar numa calma pescaria. Em movimentos suaves, o filho de Bebeto pôs o barco a contravento e o enxame, ufa, se esvaiu no ar. 
 
Um ano e meio depois voltaram e de lá trouxeram não uma história de pânico, mas quase uma lenda fantástica. Melhor: um realismo fantástico à capixaba. Quer coisa mais espírito-santense que um peixe empanado em pó de minério? Uma metáfora e tanto.
 
Bebeto estava de costas quando ouviu o filho chamar: “Pai, olha a vara”. O instrumento se mexia tanto que seu filho disse: “Pai, esse peixe é um peixe grande”. E era mesmo. A experiência de pescador mais uma vez o ajudou. Bebeto já estava com o martelo de borracha em mãos: jogou o peixe para dentro do barco e, pum!, mirou-lhe a cabeça. Bebeto diz que um espada atinge em média 70 centímetros. Aquele tinha 1,30.
 
 “O bicho era quase do meu tamanho, cara”, espanta-se Bebeto, que tem 1,72 de altura. Um aborto, ele fala. Bebeto ficou irado com o filho, que chegando no Iate Clube, presenteou alguém com o peixe. Queria levar para casa e fotografá-lo. Ele acha que alguma coisa aconteceu para o espada ter alcançado aquele tamanho.
 
O flerte de Bebeto Ruschi com o mar de Vitória, que desabrocharia num relacionamento doce e duradouro, começa nos primeiros anos da década de 50. A Praia do Canto era um idílio; as águas do Oceano Atlântico vinham desmaiar à beira da Avenida Saturnino de Brito; a Praia Comprida não era memória. 
 
Bebeto residiu em cinco casas diferentes nas imediações da avenida e da Rua Moacir Avidos e pescava com os pescadores portugueses de uma colônia instalada em frente à sua casa. O menino de 14, 15 anos chegava às duas da manhã e ficava sentado numa amurada de frente para a praia (na foto abaixo). Às vezes quem dava com ele era o pai do Loyola, o premiado jogador de vôlei de praia capixaba: “Ô, Beto já tá aí!”. 
 


Com os portugueses, entrava mar adentro em direção à ponta de Tubarão, então área da fazenda do Coronel Manduca Nunes, cujos terrenos se estendiam até Nova Almeida (Serra). Enrico Ruschi, seu pai, era amigo do coronel. Ainda hoje Bebeto se lembra dos mergulhos que dava e dos badégios e lagostas que pegava onde hoje só se pega pó de minério. 
 
Nos dias de luz e de festa do sol da juventude, Bebeto lembra as aventuras marinhas com Roberto Menescal, um dos ícones da Bossa Nova que se apresenta na terra natal justamente neste domingo (8), dentro das comemorações do aniversário de 462 anos de Vitória. 
 
Quando do calçamento da Praia do Canto, os dois surrupiaram uma manilha lançá-la no mar, num ponto específico entre o Iate Clube e a Ilha do Frade. Já no fundo da água, eles colocavam a manilha de pé. Duas semanas depois, ela estava cheia de lagosta: bastava então cobrir a abertura com uma rede e revirar a manilha. Pronto. Também pegando lagosta, os dois já foram presos na Ilha do Boi, que era área militar.
 
A partir da construção do primeiro píer, o Píer I, do Porto de Tubarão ele percebeu uma mudança na vida marinha de Camburi. As obras fizeram com que a areia carregada pelo mar se concentrasse em recifes artificiais, aterrando a lama junto à praia, ou seja, o solo propício à vida de camarões e pequenos animais que são o alimento de peixes de profundidade. 
 
A cadeia alimentar da região foi desestabilizada: sem lama, não há camarão; sem camarão, não há peixe. Pescado, Corvina, Pé de banco, Cabeça Dura, Pescadinha. Todos sumiram aos poucos. 
 
Some-se ainda o minério depositado na região da Ponta de Tubarão nos anos 70. Bebeto conta que num ponto em que se contava 60 braças de profundidade (cerca de 132 metros), hoje conta-se oito metros, como o próprio Bebeto registra, ainda espantado. A medição foi efetuada com o barco do filho, que tem marcador de profundidade. 
 
Aquela praia “de certa forma” mansa, em que as ondas rebentavam a 40 metros da orla, ficaria cada vez mais para trás. “Você tinha um lugar em que você jogava a isca na espuma e pegava robalo, pegava anchova... E não era robalinho, não”. Ganhou mais de 30 campeonatos com a equipe de pesca de que faz parte.
 
Bebeto ainda se lembra do dia em que um choroso Manduca achegou-se a seu pai, que, notando os olhos murchos do coronel, se mostrou preocupado: “O que foi?”. Manduca se abriu, num tom de desabafo: é que “uma tal de Vale do Rio Doce” chegou e desapropriou um terreno a preço de banana.
 
“Camburi era uma praia completamente diferente”, diz Bebeto, escandindo o advérbio. “Era aquela praia bonita, verde. A praia tinha uma areia marrom. Às vezes, quando a maré estava baixa, eu pegava o carro e vinha pela praia até o canal, de tão dura que era a areia. Impressionante”. 
 

                                        
 
Fascinantemente impressionante é testemunhar Bebeto contando que penava para dormir ao ronco das lanchas de camarão estremecendo a vida às três da manhã. A gente pergunta onde exatamente acontecia isso e ele, braço esticado, aponta o indicador exclamando um inapelável “aqui na frente”: Bebeto mora na Mata da Praia, numa rua perpendicular à Antônio Borges. 
 
Hoje, fora os impactos dos materiais particulados das transnacionais, Bebeto se mostra alarmado com outro gênero de poluição por partículas: os resíduos do desgaste dos freios de automóvel. Quando chegamos à sua casa, ele logo pôs à mesa um pequeno pedaço de papel embrulhado, em cujo interior ajuntava-se um punhado de uma finíssima terra negra. 
 
O material fora recolhido de um dia para o outro. Como o pó é muito fino, ele acha não se tratar de pó de minério, cujas partículas são mais “robustas”. “O que você acha que é isso?”, indaga, retoricamente. Pode ser carvão da siderúrgica ArcellorMittal, pondera. Mas, na sua opinião, trata-se de resíduos do desgaste dos freios automotivos. O ar de Vitória é igual coração de mãe.

Veja mais notícias sobre Meio Ambiente.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Segunda, 29 Abril 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://www.seculodiario.com.br/