Indígenas de Aracruz avaliam que recuo buscou preservar imagem da mineradora

No dia que marcou dez anos do crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP, nessa quarta-feira (5), a Vale solicitou à Justiça Federal a suspensão da reintegração de posse do trecho da ferrovia Vitória a Minas (EFVM), que corta o território indígena de Aracruz, norte do Estado, bloqueado há 16 dias pelas comunidades Tupinikim e Guarani. Os manifestantes consideram que o pedido, acatado pelo juiz federal Gustavo Moulin Ribeiro, revela apenas uma preocupação da empresa com a própria imagem institucional, às vésperas ainda da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em Belém, no Pará, na próxima semana.
A mobilização denuncia a “violência institucional e o apagamento” nos acordos de reparação do crime, que despejou 39 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério na bacia do Rio Doce, atingindo o litoral capixaba, “soterrando vidas, ecossistemas e tradições”, como destaca o grupo, que pede para ser identificado coletivamente como Juventude Indígena dos Povos Originários Tupinikim e Guarani.
“Não se engane. A Vale não fez isso por querer diálogo. Uma ação policial contra indígenas em um ato contra o maior crime ambiental da história do País pegaria mal para a imagem sustentável que ela tenta vender ao mundo”, afirmam.
Mesmo com a suspensão temporária da reintegração, lideranças e jovens Tupinikim seguem como réus no processo movido pela mineradora, o que consideram um ato de intimidação. “Apesar das tentativas de nos enfraquecer, seguimos firmes e mobilizados. O território é nosso, o território é vida. Não há repactuação, e o povo Tupinikim não vai recuar”, completam. O grupo reforça que a ocupação ocorre “depois de anos de tentativas de diálogo e escutas negadas pela Vale, Samarco e BHP”, e afirma que as mineradoras nunca buscaram um acordo que contemplasse de forma justa as comunidades atingidas.
Nessa segunda-feira (3), uma reunião entre a Polícia Federal e outros órgãos governamentais foi realizada em Vila Velha para organizar a operação dessa quarta-feira, mas a Vale entrou com pedido de revogação da reintegração ao juiz federal, que havia acatado o pedido das mineradoras pelo desbloqueio do trecho.
Geane Anahi, moradora da aldeia Caieiras Velha, relata que um representante da Samarco esteve na área na última semana, apenas para ouvir as demandas, sem poder de decisão. “Mandaram uma pessoa que não tem competência para decidir nada. Eles já ouviram tudo, já tinham recebido a nossa proposta, agora queremos uma resposta: se vão cumprir, apresentar uma contraproposta ou dizer que não vão fazer. Enquanto isso não acontecer, não sairemos daqui”, afirmou.

Em carta-manifesto, a Juventude Indígena faz um apelo “pelo direito de sermos ouvidos, pela escuta qualificada, por justiça e pela reparação digna” e denuncia tanto o chamado Novel Indígena, acordo firmado em 2021, como a repactuação que culminou no Novo Acordo Rio Doce (Nard), assinado em 2024 entre as empresas e os governos federal e estaduais. Para eles, esses pactos foram feitos “às escondidas, de forma sorrateira e desonesta, em flagrante violação aos princípios constitucionais e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”.
“Chamamos esse acordo pelo que ele é: o pior de toda a calha da Bacia do Rio Doce. Um instrumento de apagamento, violência institucional e destruição cultural”, diz a carta. A Juventude Indígena afirma que as comunidades foram excluídas das negociações, mesmo após anos de reivindicação por uma escuta qualificada e pelo cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê consulta livre, prévia e informada em decisões que afetem povos originários. “Nunca fomos ouvidos, as empresas nunca respeitaram nossas demandas”, escreveram os indígenas.
Outro ponto de preocupação é o prazo de encerramento do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), previsto para março de 2026, mesmo período limite da repactuação. Caso o novo acordo seja consolidado com a adesão dos povos indígenas, o documento prevê que as comunidades ficarão vinte anos sem poder recorrer de qualquer decisão ou reparação, o que, segundo eles, ameaça o direito de reivindicar novos danos e revisões futuras. “Não tem limite para os danos serem reparados, mas temos prazo para recorrer”, critica uma das representantes da juventude.
Entre as reivindicações apresentadas estão a anulação ou revisão do acordo “Novel Indígena”; o reconhecimento como titulares de direito; a manutenção do auxílio de sustentabilidade emergencial até que as condições de vida retornem ao patamar anterior ao crime; e o pagamento de indenizações justas, de acordo com a matriz de danos reconhecida pelas próprias comunidades. “Nossos direitos não estão à venda. Nossos rios, mares e florestas não se indenizam com dinheiro. Nossa história e nossa vida são sagradas”, afirmam os jovens.
A juventude denuncia a omissão do Estado brasileiro, que, segundo o texto, teria se alinhado aos interesses das mineradoras ao assinar o novo acordo sem a participação indígena, e o silenciamento do tema em espaços internacionais, em especial durante a COP30, onde afirmam que foi proibido falar sobre a poluição causada pela Samarco. Eles cobram presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no território “São dez anos de um crime que ainda continua. Queremos uma reparação justa e a presença do governo aqui, não só em Brasília”, cobram.
Novo Acordo
O Novo Acordo do Rio Doce prevê a destinação de R$ 8 bilhões aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, o que faz parte do chamado Anexo 3, firmado após a homologação judicial em outubro de 2024. Esse anexo é inédito, pois o acordo anterior, que chegou a ser proposto em 2022, não previa recursos específicos para esses grupos e extinguia boa parte das obrigações das mineradoras, como a retirada dos rejeitos de mineração e o monitoramento das áreas atingidas. No novo formato, o governo alegou que “buscou garantir autonomia e participação direta das comunidades no uso dos recursos”, mas a principal crítica dos povos indígenas é que eles não foram nem têm sido devidamente consultados.
De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), os valores serão distribuídos conforme as prioridades definidas pelas próprias comunidades, por meio de um processo de consulta que deve durar até março de 2026. Os repasses serão feitos ao longo de 20 anos, e os recursos poderão ser aplicados em três eixos principais: o primeiro, de verbas assistenciais, cobre um período inicial de 18 meses após a homologação, com possibilidade de prorrogação por mais 72 meses por unidade familiar, caso as comunidades aceitem o acordo; o segundo é o das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), com investimento total previsto de R$ 698 milhões, destinadas a garantir o acompanhamento técnico e jurídico das populações durante o processo de reparação; e o terceiro contempla medidas estruturantes coletivas, voltadas à reconstrução e melhoria das condições nos territórios atingidos, de acordo com os impactos identificados pelas próprias comunidades em modelo de autogestão.
Os valores dentro dos R$ 8 bilhões reservados ao Anexo 3 foram divididos em R$ 1,59 bilhão para os povos Tupinikim e Guarani e R$ 108 milhões para os Puri (Minas Gerais), caso as comunidades aceitem os termos propostos. Esses montantes foram definidos com base no número de famílias, na extensão dos territórios e na gravidade dos danos ambientais, sociais e culturais sofridos por cada povo, segundo o governo federal.
Apesar do Governo Federal afirmar que o processo de consulta está em curso, as lideranças indígenas apontam que a questão central do impasse é a garantia de protagonismo e de reparação justa, sem imposição de prazos ou valores definidos sem o devido diálogo. O formato das reuniões realizadas, que teriam caráter apenas informativo e não consultivo, também é criticado, assim como a falta de compromisso da União em assegurar a consulta real, enquanto as comunidades seguem enfrentando os impactos em seus modos de vida, na espiritualidade e na relação com o território.

