Domingo, 05 Mai 2024

???A palavra vandalismo para o que está acontecendo não faz sentido???

???A palavra vandalismo para o que está acontecendo não faz sentido???
Rogério Medeiros e Renata Oliveira

Fotos: Apoena Medeiros
 
 
O professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Victor Gentilli, acompanha o novo momento político com uma análise panorâmica dos movimentos das ruas e uma crítica ao tratamento que a mídia vem dando aos protestos. 
 
Para ele, o processo de marketagem dita as regras não só na classe política, mas também nas empresas de comunicação, o que explicaria o comportamento da imprensa em situações atípicas como as manifestações populares dos últimos dias. 
 
Nesta entrevista, Gentilli aponta causas e consequências para as manifestações e mostra que a impressão que a sociedade tem em relação à sua representatividade, seja de forma nacional ou local, pode levar a um índice de votos nulos nunca vistos na história recente. 
 
A resistência da sociedade à cobertura de parte da imprensa dos protestos deve levar à reflexão sobre o papel do profissional de jornalismo em uma sociedade em que a informação circula de forma abundante. 

 
 
Século Diário – Vivemos um momento muito peculiar da história brasileira, que é a retomada das ruas pela população, com cobranças que colocam em xeque tudo que entendemos por sistema democrático. Porque no momento em que se rejeita os partidos políticos, se tenta ocupar o Congresso, se ocupa a Assembleia, parece que a população entende que a Casa é do povo, e toma essa Casa para si. Como o senhor entende essa movimentação?
 
Victor Gentilli – Esse é o primeiro movimento macro, importante, desde a Revolução Francesa, que não quer tomar o poder, não quer derrubar o governo. É um movimento diferente. E esse é o primeiro ponto que o difere de todos os movimentos anteriores. Nesse sentido, esse não é um movimento que contesta esta ordem que está aqui. Ao contrário, quer pôr ordem no que entende como desordem. Ele quer que a Constituição de 1988 seja para valer, que os direitos do cidadão sejam garantidos. E ai você tem o governo Lula, que de fato fez um trabalho que facilitou o crescimento do poder de consumo da sociedade em geral, principalmente das classes menos favorecidas. Agora eles [manifestantes] querem mais. Eles não querem consumir, querem ser cidadãos. Não querem bens, querem serviços públicos. 
 
– E a gente percebe que a classe política, de cima a baixo, não está conseguindo entender esse movimento. Ela tenta reprimir, pois sem reprimir não consegue conversar. Há um descompasso entre o que acontece na rua e a política institucional. São duas políticas, completamente diferentes e que não dialogam.
 
– Acho que vale distinguir o conflito em relação a essa ordem e a crise de representação. Na verdade, as pessoas não mais se sentem representadas. Isso é uma coisa que não é nova, mas a forma que ela se manifesta é nova. E não foi falta de aviso. Os políticos não 'caíram a ficha' do que é a ficha limpa. A ficha limpa significou o seguinte: a sociedade precisou pedir para a justiça impedir que os partidos não coloquem criminosos em suas chapas. Os partidos não conseguem, meu Deus, cumprir ser filtro nem disso. A função dos partidos é selecionar as pessoas que dispõem a defender os projetos e as ideias dos partidos. E se os partidos colocam criminosos em suas chapas, o que a população sente em relação a isso tem essa dimensão. 
 
– Mas esse processo de coalizão em nível nacional e de unanimidade política, aqui no Estado, colabora para esse enfraquecimento dos partidos em relação a escolher até seus representantes para as eleições. 
 
– Aí eu acho que o Casagrande precisa tomar mais cuidado, porque essa unanimidade é uma unanimidade por cima e tem o risco, porque no momento em que se contesta toda essa estrutura que está aí, cria-se o risco de novas institucionalidades, de avanço de setores conservadores, no pior sentido da palavra. Temos grupos militares se assanhando por aí. A contestação dos partidos é um problema, mas o problema da contestação aos partidos é que os partidos não correspondem. As pessoas têm dificuldade em escolher seus candidatos.
 
– Aí temos um problema grande, porque essas mudanças que se pede nas ruas não vão acontecer para 2014, então teremos os mesmos partidos e as mesmas lideranças na disputa do ano que vem. A democracia se faz com os partidos políticos, mas o que se contesta é o sistema. Prega-se voto em lista, financiamento público, mas isso não chega para 2014.
 
– Acho que tem riscos. A Folha de S. Paulo deu maior destaque para a queda de popularidade de Dilma. E o Alckmin não perdeu? Fernando Haddad não perdeu? E se pesquisar aqui, o Casagrande não perdeu? O Paulo Hartung não perdeu? O [Theodorico] Ferraço não perdeu? Eu tenho uma intuição de que é possível que tenhamos uma eleição com uma quantidade de votos nulos como nunca se viu. Essa queda não é da Dilma, é geral. Nenhum desses nomes é mais capaz de aglutinar. Na área nacional: Aécio Neves sobe? Eduardo Campos sobe? Marina Silva sobe um pouco, mas ela não tem ainda condições políticas de disputar. 
 
– Mas Joaquim Barbosa sobe...
 
– Aí é um outro problema. Por que estão colocando o nome dele na pesquisa? Dos grandes partidos, nenhum deles está disposto a oferecer uma vaga para ele. 
 
– Mas tem o partido dos militares, que está se formando...
 
– Mas não vai ter tempo de TV. Vai ser um Enéas. Mas isso pode ser uma surpresa. E o que significa? Ele não se relaciona com os partidos. Essa institucionalidade, se não for mexida, vai criar uma situação que já é conhecida, quem não tem sustentação política, cai. Foi o caso do Collor.
 
– Nós tivemos algumas lideranças do PT entrevistadas neste espaço, e todas elas destacavam a importância da retomada do diálogo com as bases. É isso? Os partidos precisam olhar para dentro e se fortalecer não só no que diz respeito à articulação e alianças, mas também no que se refere à ideologia, ou é tarde?
 
– Acho que é tarde. O PT é mais antigo do que se pensa. Vi recentemente uma palestra do André Singer e ele mesmo defende que não só o PT esgotou seu ciclo, como o lulismo também. E é um estudioso que está dentro. 
 
– Não só os partidos políticos, mas também o movimento sindical. As instituições e entidades sociais que tinham representatividade social  tentam entrar nessa movimentação, mas entram tarde também. 
 
– Esse é um outro problema, que estava avançando e o mensalão atrapalhou, que foi o fim do imposto sindical. O imposto sindical faz com que os sindicatos virem máquinas burocráticas que perdem a função e esse movimento sindical, que é novo, se incorporou na burocracia e tomou o poder. Esse sindicalismo novo precisa aparecer de novo. E o curioso é que os sindicatos são um dos pouquíssimos órgãos que não são obrigados a prestar contas. 
 
– Até as ONGs são obrigadas e o sindicato não é?
 
– Todas as organizações que recebem recursos públicos são obrigadas a prestar contas. Executivo, Legislativo e Judiciário. Município, Estado e União. Estatal, ONGs, autarquias e todas as instituições que operem com o serviço público. Uma ONG é o dinheiro de um contrato e um convênio e o sindicato é o dinheiro de um imposto. Que custa um dia de cada trabalhador. Nesse aspecto, os sindicatos são os mais opacos. O governo petista ia bem nessa questão, mas quando veio o mensalão, ele percebeu que por ali não dava para seguir. Tinha uma passagem de derrubar o imposto sindical. Enquanto o imposto sindical existir, os sindicatos vão ter muita dificuldade de aparecer nessa estrutura sindical. A não ser que apareça algo do final da década de 1970, que foi aquilo que Lula condenou, que eram os pelegos. Os que contestavam os pelegos, são os pelegos hoje.
 
– Um recorte que queremos dar a essa entrevista é a difícil relação entre os profissionais de imprensa e o movimento. No auge do movimento, nas semanas passadas, vimos os repórteres televisivos sem as canoplas nos microfones, cobrindo a manifestação de cima de prédios ou em helicópteros. Tivemos casos de profissionais furtados, agredidos. O que está acontecendo? Por que a imprensa tem essa dificuldade em cobrir o movimento?
 
– Não é de agora que a imprensa vem sofrendo com esse problema. Uma das questões é a contaminação tanto da política, quanto da imprensa da marketagem. São esses marketeiros que impõem para os políticos uma maneira de fazer política em que você deixa de ser representante de um projeto político e passa a ser a expressão daquilo que a sociedade pensa, você não propõe, você vai atrás do que as pesquisas apontam. O último que tinha alguma coisa foi Brizola. Essa mesma marketagem também dominou o jornalismo. Eu fui pesquisado pela Futura, na quali. Quando me perguntaram o que eu achava do jornal já tinha uma hora e meia de conversa. Foram falar de política e economia lá no finzinho. No momento em que o jornal se movimenta, imaginando estar atendendo ao que o público quer, ele faz o posto. 
 
Como os jornais se estruturavam? Você tinha a primeira página, depois economia, política. Aí fizeram a pesquisa que mostrava que o leitor não gostava de política e economia. Então, colocaram o que o leitor gostava nas primeiras páginas e a política para traz. Nenhuma empresa que tem um produto para vender faz isso. Se a empresa tem um produto e a pesquisa mostra erro, o raciocínio é outro. Por que o leitor não gosta de política? Onde estamos errando? Como podemos melhorar o jornalismo de política? Como podemos esclarecer a população sobre o assunto? É igual uma fábrica de salsicha, que se o povo não gosta da salsicha, para de fabricar.  Essa é uma questão. 
 
– Houve uma manifestação na frente da Rede Gazeta, e em nível nacional também houve manifestações em veículos de comunicação, em que os manifestantes colocaram uma pauta de assuntos que gostaria de ver nos jornais. Ou seja, a agenda do jornal não é mais a mesma agenda da rua?
 
– Esse descontentamento que a sociedade tem com a estrutura institucional, com a estrutura partidária, também tem com a imprensa. Mas com a imprensa, com características especiais. A imprensa deveria fazer esta medição, deveria ser a instituição que esclarece as pessoas, que informa. Se o jornalista não entender que o compromisso dele é com a sociedade, que o compromisso dele é abastecer a população de informação, para que ela possa fazer suas escolhas, ele está em um mau caminho, infelizmente.
 
– Isso tem a ver com essa história de falências dos jornais impressos, de perda de leitores...
 
– Tem uma crise dos jornais brasileiros que é antiga, que começou lá atrás nos mil dias da Folha, mas tem uma crise mais recente, que tem duas vertentes: como a empresa se remunera e como a imprensa opera, na medida em que precisa produzir e o papel tem custos absurdos. Os jornais nacionais que eu assino chegavam por volta das 11 horas do outro dia, no tablet eu tenho isso disponível à meia-noite. Mudou o suporte, mas os jornais precisam mudar também, e o jornalismo precisa se renovar, entender que dialoga, e esse diálogo é direto. Você coloca a coluna e imediatamente as pessoas compartilham, criticam, comentam. O jornalismo não é mais de mão única. Se os jornais não entenderem que esse processo de mão única acabou e ainda querem escolher os assuntos e como tratar esses assuntos, imagina se a sociedade vai aceitar isso! Eu não faço isso, mas assisti àquele Jornal Nacional em que o William Bonner estava na porta do estádio para supostamente ancorar o jornal e a Patrícia Poeta no estúdio. Ele foi ancorando pela Patrícia Poeta, que ficou chamando do Brasil inteiro, mostrando as manifestações em vários pontos do País. E, é claro, que tentaram esconder, como nas Diretas Já, mas não dava mais.
 
– Essa é uma outra questão. A imprensa nunca gostou de manifestação de rua, mas chegou em um determinado momento que ela mudou e passou a tentar mostrar a festa da democracia, destacando um grupo que nomeou de “vândalos”, que são os radicais, e começa a criminalizar esse grupo. Por que houve essa mudança de rumo?
 
– Primeiro que a palavra vandalismo para o que está acontecendo não faz sentido. Depredação, sim, faz sentido, mas vandalismo, não. Em 2009, em Paris, 590 carros foram incendiados e o noticiário de 2009 em Paris não falava em vandalismo, falava em revolta dos jovens pobres, de periferia de Paris. Os mesmos jornais que aqui falam em vandalismo, falavam em 2009 sobre Paris, como revolta dos jovens. Um movimento sem liderança, que é difuso, é complicado. E isso é importante pontuar, do lado dos manifestantes, eles não controlam aqueles que depredam, do outro lado sim. Uma bala de borracha, aquele gatilho veio do sargento, que veio do capitão, que veio do comandante da PM, que veio do secretário de Segurança, que veio do governador. Ali você tem uma linha de comando, a hierarquia funciona, não há tiro que não venha de uma ordem. Nesta dimensão, a repressão policial tem de ser vista com mais gravidade e os jornais precisam mostrar isso. Se os jornais não mostram que o Estado tem sido agressivo... o que são essas depredações? São os radicais que passam dos limites, mas do lado da polícia também tem radicais que passam dos limites. Em 2011 também teve bala de borracha, quem deu esse tiro? O que foi investigado? Quem foi punido? A sociedade precisa saber e os jornais precisam cobrar.
 
– Até pouco tempo atrás, o que saía nessa imprensa burguesa mudava a opinião das pessoas, mudava o comportamento das pessoas. Mas agora, com a proliferação da informação na internet, as coisas mudaram. Como o senhor vê isso?
 
– É preciso pensar qual a função do jornalista hoje. O jornalista tem o monopólio da informação, e hoje ele não tem mais, a função mudou. A função hoje não é só agregar, não só informar, só juntar, além de tudo isso tem de dialogar e entender que esse diálogo é fundamental. Todo mundo produz informação, mas só o jornalista faz isso profissionalmente. O seu trabalho diário é na produção de informação, isso faz diferença. E vejo que os jornais estão caminhando na direção inversa. 
 
– Mas no meio do caminho entre o manifestante e a empresa-jornal está o repórter que vai para a rua, sofre a pressão na manifestação, e quando chega sofre a pressão da linha editorial. Como fica a situação do profissional?
 
– Essa lógica que você está falando não tem futuro. Essa lógica já era e eles não estão entendendo. Mas estou otimista, porque vejo que o jornalismo tem hoje possibilidades que nunca antes existiram.
 
–  O acesso à informação é muito grande, não é?
 
–  E  a sociedade nunca precisou tanto de jornalistas. Até porque as redes sociais reproduzem, grosso modo, o que os jornais produzem. 
 
–  Precisa de gente para produzir esse conteúdo a ser compartilhado.
 
–  E aí vamos lá. Você vê no Facebook debate sobre o sistema prisional? Você vê debate sobre o índice de assassinato de jovens, negros, pobres, de periferia. Os jornalistas têm de entender que precisam produzir esses conteúdos. As grandes pautas... o Sincades [Sindicato do Comércio Atacadista e Distribuidor do Espírito Santo], quem vai abrir essa caixa- preta? O Fundap [Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias]? Quem explica como foram usados os royalties? É nesse sentido que eu sou otimista e por isso temos que apoiar a implantação da Lei do Acesso à Informação. É uma coisa nova no Brasil, pouco conhecida no Brasil. A Dilma, na manifestação, chamou a atenção para todos os órgãos públicos conhecerem e implantarem. O que significa: prestar contas à sociedade. Mas os jornais também precisam prestar contas à sociedade. Jornalismo é serviço público, mesmo que esteja sendo feito por uma empresa privada, a atividade jornalística é uma atividade de prestação de serviço à sociedade. E se toda a área de serviço público precisa prestar contas, o jornalismo também precisa. 
 
Um outro ponto que gostaria de destacar é a reportagem. Eu não vejo grandes reportagens sobre esses temas. Aquela cobertura do repórter que gasta sola de sapato, que vai para a rua, que ouve, não é aquele menininho que vai lá e ouve, é diferente. Eu falo para os meus alunos, o jornalista é quem dá informação, quem vai lá, ouve e reproduz é moleque de recado e a gente vê muito isso. 
 
– Dias desses o senhor participou de um programa da TV do governo e foi censurado, foi isso?
 
– Foi uma fala. 
 
– Também faz parte dessa discussão que tivemos antes não é, sobre a quem a comunicação serve...
 
– Quando falei da questão do marketing, da contaminação do marketing, isso aparece muito na área da comunicação. E é por isso que a comunicação dos governos passa a ser comunicações de gestões, e aí vemos essa questão dos gastos em comunicação. O governo precisa prestar contas, mas por que o governo gasta tanto em comunicação?

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