“Declaração monstruosa com a finalidade enxovalhar a memória dos mortos”. Assim reagiu o escritor e ativista político Perly Cipriano, preso e torturado em Pernambuco durante a ditadura militar, ao comentar a declaração do presidente Jair Bolsonaro (PSL), que afirmou: “Se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele”.
O presidente da República fez a declaração nessa segunda-feira (29), em referência à morte de Fernando Santa Cruz, militante da resistência à ditadura militar, com o objetivo de atingir o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que é seu filho.
A OAB nacional reagiu e divulgou nota de repúdio, mas o presidente da entidade afirmou que irá interpelar Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir esclarecimentos sobre as informações. Santos Cruz disse que há “crueldade e falta de empatia” nas declarações do presidente, que “se diz cristão”. A seccional da OAB no Espírito Santo, procurada, não se pronunciou.
A fala de Bolsonaro causou manifestações de repúdio no Brasil e no exterior e repercutiu no Espírito Santo, onde reside o ex-delegado Cláudio Guerra, hoje pastor evangélico, em prisão domiciliar, proibido de dar entrevistas, denunciado como responsável pela incineração de corpos de militantes políticos, entre eles o de Fernando.
Perly manteve contato com o irmão de Fernando, Marcelo, que exerce mandato político em Recife, e mantinha com sua mãe, Elzita, que faleceu há cerca de dois meses, com 105 anos. “Ela guardou até morrer a chave do quarto de Fernando, na esperança de que ele retornasse para casa com vida”, lamenta.
Ele confirmou nesta terça-feira que o corpo de Fernando foi incinerado pelo então delegado Cláudio Guerra, no Estado do Rio, conforme relato dele à Comissão Nacional da Verdade, em Recife, e também em depoimento aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, reunido no livro Memórias de uma Guerra Suja.
“O delegado Cláudio Guerra foi comigo a Recife, em 2016, prestar depoimento à Comissão da Verdade, quando narrou a incineração de corpos de militantes políticos no Estado do Rio, entre eles Fernando Santa Cruz e o sertanejo Aleixo, o Ventania”, declarou Perly.
O Sindicato dos Advogados do Espírito Santo (Sindiadvogados), em nota assinada pelo presidente Luiz Télvio Valim, “repudia as infelizes declarações do Sr. presidente da República Jair Messias Bolsonaro sobre a família de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz”.
Em outro trecho, o Sindiadvogados defende a democracia, os direitos humanos e entende que deve se respeitar a memória dos mortos e desaparecidos na época da ditadura. “O Sindiadvogados do Espírito Santo sempre se posicionará a favor da democracia, da Justiça e da Igualdade e sempre contrário a falas que representam retrocesso em nosso país”.
A Rede Brasil Memória, entidade de defesa dos direitos humanos, considera desprezível a declaração do presidente Jair Bolsonaro sobre a morte de Fernando Santa Cruz. Também em nota, a entidade lamenta: “Como outros brasileiros, Fernando Santa Cruz foi capturado e torturado até a morte; seu corpo, assim como de várias outras pessoas, entre homens e mulheres, nunca mais foi encontrado”.
Sobre a declaração do presidente Jair Bolsonaro, a Diretora Executiva da Anistia Internacional, Jurema Werneck disse: “É terrível que o filho de um desaparecido pelo regime militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no país, declarações tão duras”. “O Brasil deve assumir sua responsabilidade e adotar todas as medidas necessárias para que casos como esses sejam levados à justiça. O direito à memória, justiça, verdade e reparação das vitimas, sobreviventes e suas famílias deve ser defendido e promovido pelo Estado Brasileiro e seus representantes”, afirmou.
“Defendemos a revogação da Lei de Anistia de 1979, eliminando os dispositivos que impedem a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos, a investigação e responsabilização dos crimes contra a humanidade cometidos por agentes do Estado durante o regime militar”, conclui Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.