O secretário estadual de Direitos Humanos Júlio César Pompeu irrompeu no caos da segurança pública capixaba quando as negociações entre governo e mulheres de militares não conduziam o Espírito Santo a outro lugar senão ao apocalipse. O governo do Estado adotou uma nova estratégia na quarta-feira (8), instituindo um Comitê Permanente de Negociação, que, em suma e na prática, mudou os atores de interlocução com os representantes dos amotinados.
Saía de cena a dureza tão xucra quanto estéril do secretário de Segurança Pública, André Garcia, e entravam a candura e a sofisticação do secretário Júlio Pompeu.
Habituado a contemplar o Leviatã do lado de fora, o filósofo e professor-adjunto do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), agora do lado de dentro, arrostaria seu primeiro grande desafio. Homo hominilupus?
Até então, Pompeu era um gracioso bibelô na vitrine do governo Paulo Hartung (PMDB).
A intenção era simples. Assombrado de um lado pela memória ainda palpitante das “masmorras de Hartung” nos corações e mentes capixabas e, do outro, pela nuvem gélida do discurso de ajuste fiscal, do corte de despesas a qualquer custo, o governo precisava fazer alguma coisa para mostrar que as moiras não teceram o destino de Hartung para tão-somente cevar a porca do grand monde capixaba. Era preciso mostrar que naquele peito batia um coração.
Aqui entra Júlio Pompeu, figura cuja atuação socialmente reconhecida contra as mazelas humanas iria, ao lado de projetos como Ocupação Social e Escola Viva, conferir alguma sensibilidade ao senhor Ajuste Fiscal.
A ascensão de Pompeu à Secretaria de Direitos Humanos, no entanto, cumpriu um roteiro incomum, junto com a criação da própria pasta. Fora nomeado coordenador estadual de Direito Humanos em maio de 2015 sob a expectativa de assumir uma prometida, e inédita, Secretaria Estadual de Direitos Humanos. No entanto, não se importou em emprestar sua grife ao governo quando ainda nem produto havia: aguardou, digamos, platonicamente, pouco mais de um ano até o governo criar a secretaria. Foi nomeado em julho de 2016.
É óbvio dizer que o ingresso de Pompeu no governo Hartung não foi recebida sem estranhamento entre antigos companheiros de movimentos sociais e no curso de Direito da Ufes. Um travo amargo que deve se deteriorar em decepção e desaguar na infâmia.
Graduado em Direito e Filosofia, mestre em Direito e doutor em Psicologia, Pompeu ostenta um respeitável currículo Lattes. Leciona Ética e Teoria do Estado no curso de Direito da Ufes e outras disciplinas nos programas de pós-graduação em Direito Processual e no Mestrado Profissional em Gestão Público da instituição.
Escreveu quatro livros, três dos quais por editoras de porte (Objetiva e Casa do Saber) e dois dos quais em conjunto com o filósofo Clóvis de Barros Filho, professor da Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e uma estrela pop da divulgação do pensamento filosófico.
Sem contar os inúmeros projetos de pesquisa, artigos, capítulos em livros, textos em jornais e revistas, apresentações de trabalho, orientações e supervisões concluídas na graduação e no mestrado e a quase uma centena de participações em entrevistas, mesas-redondas, programas e comentários na mídia. Ministrou palestras para grandes empresas também, como Banco Safra, Unilever, Coca-Cola, Vale, entre outras.
Mas Pompeu não se restringe a um bem fornido Lattes. É descrito como um ponto fora da curva no Direito da Ufes, curso de carregado perfil processualista (especialmente Processo Civil) que lega à sombra docentes de perfil filosófico – caso de Pompeu. A vestimenta também destoava: dificilmente era visto enfiado em um terno e gravata, ao feitio do dresscode jurídico, observado mesmo na academia, mas em confortáveis paletó e calça jeans.
Impecável orador – como atestam muitas de suas palestras disponíveis no You Tube, as principais com mais de mil visualizações – apresenta com linguagem fácil reflexões difíceis em torno de teorias filosóficas e dilemas éticos, razão pela qual era amiúde convocado para ministrar aulas inaugurais, que, ao final, embeveciam calouros babando por elevação intelectual. Professor sério e comprometido, dava aulas instigantes com igual graça, resgatando alunos do deleite das zonas de conforto.
É um perfil que, se não suscita a idolatria, é o suficiente para angariar o respeito e a admiração de estudantes. Assim aglutinava, especialmente em torno do projeto Balcão de Direitos, do qual era coordenador, alunos que de uma forma ou de outra se identificavam com o mestre que apresentava questões instigantes sobre as ações humanas, o convívio social. Foi paraninfo e professor homenageado de turmas de formandos na Ufes.
Com o projeto de extensão, Pompeu conjugou teoria e prática ao oferecer assistência jurídico-humanitária global às comunidades indígenas e quilombolas, que, atacadas por poderosos entes industriais (menção honrosa à eterna Aracruz Celulose, hoje Fíbria) e ignoradas pelo poder público, são um retrato fiel da violação aos direitos humanos no estado.
Não era um homem destinado a trancafiar-se nas torres da egolatria acadêmica.
A sensibilidade para as mazelas sociais ficou mais evidente do que nunca durante a crise das nacionalmente famigeradas “Masmorras de Hartung”, que em, 2010, levou o governador à ONU para explicar gravíssimas denúncias de violações aos diretos humanos, como tortura e esquartejamento de presos, no sistema prisional capixaba.
Em longa entrevista a este jornal, Pompeu criticou de forma contundente o sistema prisional capixaba e qualificou-o como “um grande caixão social”, em que o preso era lançado e esquecido. Não havia preocupação em devolvê-lo à sociedade. Apoiou a visita do então presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), Sérgio Salomão Shecaira, que, em 2009, veio ao Estado para averiguar denúncias de torturas de presos, trabalho que renderia um chocante relatório que escancarou a realidade das masmorras de Hartung, que, por sua vez, serviu de base para novas denúncias e trouxe sucessivas comitivas nacionais e internacionais para testemunhar a barbárie capixaba.
Pompeu ingressou na vida pública em 2007 como membro do Conselho Estadual de Ética, órgão criado no mesmo ano pelo então governador Hartung como instância deliberativa de acompanhamento da conduta de gestores e servidores estaduais. Em fevereiro de 2011, segundo mês da gestão Renato Casagrande (PSB), Pompeu relatou o processo dentro do conselho que recomendou a exoneração do então diretor-geral do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES), Paulo Lemos, multado oito vezes entre 2007 e 2008 por infrações de trânsito.
Em abril, contudo, o conselho renunciou em bloco, alegando falta de estrutura mínima para trabalhar. Em entrevistas, Pompeu, que presidia o órgão, afirmou que a situação perdurava desde a Era Hartung e lamentou não ter sido recebido por Casagrande, malgrado os pedidos de reunião, para debater a situação. Ou seja, mostrou, então, uma conduta de acordo com as expectativas em torno de sua figura.
No entanto, exibiu paciência socrática com os 14 meses de demora para a implantação da Secretaria Estadual de Direitos Humanos.
Paciência recompensada naquele dia 10, quando desenvolveu com esplendor a longa experiência adquirida em fóruns de discussão com movimentos sociais, caracterizados pelo perfil horizontal, rizomático, do entendimento. Havia chegado a hora de emprestar todo esse prestígio a um governo notoriamente avesso ao diálogo e, portanto, justificar porque assumiu o proscênio das negociações no lugar de Garcia.
Na pequena sala, diante de dezenas de jornalistas, conduziu a o baile coreográfico que anunciou um acordo entre governo e associações militares para o fim da greve da Polícia Militar – que, horas depois, revelaria-se um embuste.
O arrazoado de meia hora não evocou o professor e palestrante que simulava sisudez para deslindar com garbo e bom humor os conselhos de Maquiavel aos príncipes, o conceito de mal em Leibniz, a razão pura de Kant, o eterno retorno de Nietzsche.
Pelo contrário. Agiu hobbesianamente. As palavras não saíam fluídas e convincentes; a fala estancava em pausas frequentes, menos por estratégia retórica que por insegurança narrativa. Tudo isso sustentando pesada catadura. Questionado sobre o que aconteceria aos militares que não retornassem às ruas após as 7h do dia seguinte, como recomendava o acordo, proferiu com serenidade: “Infelizmente, as ações necessárias para a retomada da lei e da ordem vão seguir seu curso”. Antes, instado se a greve afinal acabara ou não, ofereceu uma resposta pouco filosófica que, como se diz, enlouqueceu a internet: “Perguntem ao William Bonner. Não a mim”.
Ao fim e ao cabo, não adiantou trocar a truculência de André Garcia pela candura de Júlio Pompeu. Ambas se irmanaram para jogar a PM contra a população, criminalizar a greve e os grevistas e, sobretudo, reforçar a narrativa das boas intenções do ajuste fiscal à capixaba.
Se a entrada de Pompeu no governo Paulo Hartung suscita curiosidade, a pergunta correta talvez não seja “como Hartung conseguiu seduzi-lo?”, mas, sim: como Pompeu conseguiu dissimular por tanto tempo e de tantas pessoas que o que lhe importava não era desenredar questões de filosofia moral coisíssima nenhuma, mas, antes, reservar um bom lugar à mesa farta do poder? E por que escolheu um caminho tão difícil?
Para tal, havia um menos pedregoso que duas graduações, um mestrado, um doutorado e algumas centenas de livros de filosofia. Veja-se o exemplo de Paulo Roberto Ferreira: o titular de uma pasta de maior vulto – a da Fazenda – estava a seu lado na coletiva, sem mestrado ou doutorado, nem Platão ou Foucault.
Pompeu escreveu do próprio punho um dilema ético que, quem sabe, um dia proponha aos alunos: como defender o ajuste fiscal de uma gestão que esconde bilionários incentivos fiscais? Uma coisa é defender a concessão do incentivo. Ok. Outra é transigir com a falta de transparência na publicidade dos beneficiários. O panegírico ao ajuste que publicou quinta-feira (16) em A Gazeta passa longe de desfazer esse dilema: foi um apanhado de platitudes para defender o senhor #AmorS2es, que se apoia no ajuste para negar aumento salarial a policiais militares e todo funcionalismo estadual.
A defesa irreparável da cartilha hartunguete que promoveu desde o instante em que substituiu Garcia como porta-voz do governo na crise da segurança certamente garantiu a Pompeu o ingresso no clube de novas figuras políticas que Hartung reúne em torno de si neste mandato.
Como se sabe, ou pelo menos se deduz, o governador está se desvinculando de companheiros políticos de longa data, como o deputado federal Lelo Coimbra (PMDB), ou Anselmo Tozi e NeivaldoBragatto. Figuras tais não lhe rendem mais dividendos políticos, razão pela qual Hartung busca oxigenação. Neste novo clube, destacam-se figuras como o secretário de Agricultura Octaciano Neto e o secretário de Controle e Transparência, Eugênio Ricas.
Depois dessa crise, Pompeu certamente vai subir de patamar no governo. Mas, desde já, enterrou uma biografia.