Sábado, 20 Abril 2024

Relatório da Comissão da Verdade mostra os horrores da ditadura no Espírito Santo

laura_perly_ditadura_face_leosa Redes sociais/Leonardo Sá
Prisões, tortura, desaparecimentos e morte. Um cenário tenebroso vivido pelo país durante 21 anos, de 1964 a 1985, tem a memória resgatada nesta sexta-feira (18), com o lançamento do Relatório da Comissão Estadual da Memória e Verdade Orlando Bonfim, disponibilizado ao público em formato de livro, a partir das 15 horas, no site da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos.

O trabalho é entregue na semana em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos, com um atraso de mais de oito anos, e mostra fatos da repressão da ditadura militar de 1964 promovida no Espírito Santo contra estudantes secundaristas e universitários, religiosos, políticos, professores, profissionais liberais, artistas e jornalistas.

"É um momento muito importante no resgate de parte da nossa história; é a continuidade da luta pela hegemonia da narrativa histórica do passado ainda recente", comenta o escritor e militante político Perly Cipriano, uma das vítimas da repressão, que passou 10 anos na prisão, submetido à tortura e agressões e, mesmo depois de libertado, ainda foi alvo de perseguição.

Para Perly, "é muito doloroso ouvir de jovens e idosos elogios a um período de um golpe militar que destituiu um presidente legitimamente eleito, as prisões ilegais e arbitrárias faziam parte da rotina, e as torturas, os assassinatos e os desaparecimentos dos corpos dos opositores aconteciam com frequência", desabafa, referindo-se ao atual cenário político do país.

Laura Coutinho, Laurinha, como é conhecida, outra atingida pelas ações repressivas, também acha oportuno o lançamento do livro, embora ressalte o atraso. "Antes tarde do que nunca e, nada mais oportuno nesta época do quem um livro como esse, quando vemos que estão se esvaindo os sonhos, as conquistas neste país. E bom saber, principalmente os jovens, que existiram pessoas que lutaram por um mundo melhor", comenta, e relembra a sua prisão, aos 21 anos, grávida de dois meses, quando cursava, como Perly, o segundo ano do curso de Odontologia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

"Tivemos governador, reitor, parlamentares cassados, intervenções em sindicatos, intervenções em entidades estudantis, muitas prisões e perseguições políticas", diz Perly, que em 1964 respondeu a um Inquérito Policial Militar (IPM), ainda com a cabeça raspada de calouro da Odontologia. Um ano depois, em 1965, foi preso no 31º Batalhão de Infantaria (BI); em 1966 foi levado pra o Quartel da Polícia Militar durante uma greve na faculdade, e em 1967 preso de novo no Dops de Niterói, Rio e Janeiro, quando participava do Encontro de Estudantes da Região Sudeste contra o Acordo MEC/Usaid, "que fez na marra uma reforma nas universidades sem a participação democrática dos professores e dos estudantes".

"Vejo como um rasgo de esperança", comenta Laurinha, e relata quando, em 1971, foi levada do 31º Batalhão de Infantaria, em Vila Velha, para São Paulo, onde a colocaram, juntamente com outros companheiros, na temível Operação Bandeirante (Oban), e depois na Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), centros de tortura que a fizeram perder o seu primeiro filho, em decorrência dos espancamentos, choques elétricos e afogamentos.

Criada em 2012, a Comissão Estadual da Verdade recebeu o nome do advogado e jornalista Orlando Bonfim, desaparecido político capixaba, e para presidir foi escolhido o então presidente da seccional capixaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-ES), Agesandro Costa Pereira, contando ainda com a participação do professor João Batista Herkenhoff e a professora universitária Eugenia Raizer, entre outras personalidades.

"No Espírito Santo tivemos a cassação do governador, do reitor da Ufes, de mandatos de parlamentares, intervenções em sindicatos e na União Estadual dos Estudantes (UEE), incontáveis prisões arbitrarias", explica Perly, que considera a publicação do relatório uma conquista de toda sociedade capixaba.

O relatório da Comissão da Verdade se soma a outros trabalhos, de instituições como a Ufes, Sindicato dos Jornalistas, Procuradoria e a OAB, e de livros como Ditaduras não são eternas, publicado pela Assembleia Legislativa em 2014, e Caparaó - a primeira guerrilha contra a ditadura, do jornalista José Caldas, ganhador do Prêmio Vladimir Herzog de 2007.

"O trabalho da Comissão da Verdade é fundamental para o reencontro do Brasil com sua história e para que os fatos relevantes por ela apurados não caiam no esquecimento. Infelizmente, o trabalho está sendo abafado nos novos tempos, mas muita gente sofreu e ainda sofre por conta dos abusos do Estado de exceção", relata Caldas.

Ele relembra que "era menino e as lembranças da época são marcantes, inclusive de gente que desapareceu em Alegre, de minha mãe participando de um movimento de apoio à mãe de uma estudante que nunca mais foi encontrada. Só quem sofreu sabe o tamanho da dor".

Para marcar a data, o Espírito Santo tem, na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, um monumento dos seis desaparecidos políticos capixabas. "Uma quantidade muito grande de homens e mulheres foi perseguida, presos, ameaçados pelo simples fato de não aceitarem o golpe civil militar", explica Perly, um dos passaram maior tempo em prisões da ditadura militar.

Já Laurinha relata que acredita que foram libertados porque essa operação, que era para ser, como todas as outras, em sigilo, foi noticiada pelo jornal O Diário, já extinto, que estampou na primeira página a foto do avião que os levava para São Paulo com a manchete "Esse avião leva presos com destino ignorado".

Na Oban, já em São Paulo, ela ouviu o major Tibiriçá comentar: "A gente já fez tanta coisa e agora pega meia dúzia deles no Espírito Santo e eles colocam no jornal". Para Laurinha, a quebra do sigilo foi um dos fatores que possibilitaram a libertação.

A comissão estadual foi criada na primeira gestão do governador Renato Casagrande, quando Perly esteve à frente da Subsecretaria de Direitos Humanos, época em que foi preparada a proposta para criação da Comissão Estadual da Justiça e da Verdade. "A instalação ocorreu no Palácio Anchieta, 25 de março de 2013, quase um ano depois de criada, em 21 de setembro de 2012, com a presença do governador e da então ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário", lembra ele.

Para tanto, contou com a colaboração dos depoentes, professores voluntários, além dos membros desta Comissão por designação do governo, que empreenderam um longo trabalho de pesquisar, catalogar e analisar os diversos documentos disponibilizados e tomar depoimentos de pessoas que foram atingidas pela repressão do regime militar.

Os jornalistas José Caldas da Costa e Leonencio Nossa, autor do livro que narra a Guerrilha do Araguaia, proferiram palestras abertas ao público a respeito de fatos ocorridos com os capixabas no período da ditadura. Ainda como parte das atividades dessa Comissão realizou-se o Seminário intitulado: "O Golpe de 64: 50 Anos Depois", em 20 e 21 de novembro de 2014, na Universidade Federal do Espírito Santo.

Foram nove depoimentos prestados à Comissão Estadual da Memória e Verdade Orlando Bonfim em sua Secretaria Executiva e cinco realizados em parceria com a Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo, no período de 2013 a 2015.

Os estudantes secundaristas e universitários estabeleceram forte resistência ao golpe instituído em 1964 e se organizaram realizando protestos e com denúncias às arbitrariedades cometidas pelo novo regime político que cerceava a liberdade e os direitos constitucionais.

Estudantes como Perly Cipriano, Elio Ramires, Elizabeth Santos Madeira, Antônio Caldas de Brito, Renato Viana Soares, João Amorim Coutinho, Adriano Sisternas, Laurinha e Jorge Luiz de Souza são alguns nomes que se destacam no Estado como promotores da contestação à ditadura em vigor e, por isso mesmo, foram perseguidos politicamente pelo Estado Brasileiro à época em que os militares se encontravam no poder.

Participaram na condução de alguns desses depoimentos, dentre outros convidados, os professores Vítor de Angelo, atual secretário de Estado da Educação, o historiador Ueber José de Oliveira, como membros colaboradores da Comissão.

O relatório, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, está organizado em duas seções iniciais, que descrevem a criação e as atividades desenvolvidas pela Comissão; em seguida, apresenta um panorama histórico do golpe militar no Brasil e no Estado do Espírito Santo, no período de 1964-1985.

Nessa parte "estão inseridos fragmentos dos depoimentos prestados à Comissão; síntese quantitativa das informações sobre perseguidos e vigiados pelo aparato repressor, segundo a documentação dos dossiês do Serviço de Investigações e Informações/ES; transcrição na íntegra dos depoimentos e palestras gravados em vídeo; e conclusão e recomendações da Comissão".

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Comentários: 4

Creuza Vieira em Sexta, 18 Dezembro 2020 16:04

Se pararmos pra analisar os dias de hoje, ainda estamos vivendo na ditadura, porém de uma outra forma. Mas ainda vivemos nela.

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em Sábado, 19 Dezembro 2020 06:52

Comissao direcionada e os atentados cometidos pelos terroristas ninguem fala comissao da meia verdade isso sim

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Henrique em Sábado, 19 Dezembro 2020 12:18

Descaracterizar uma época de "controle" necessário à segurança de todos, de progressso e ORDEM de verdade, de liberdade tanta que até em armas, grupos de pessoas e criminosos se uniram para romper o sistema que garantia a harmonia, a convivência respeitosa, as oportunidades e conquistas compatíveis aos esforços de cada um sem distinção, para impor suas maldosas intenções, malditos valores, malditas posturas que inverteram o sistema de se educar, de se projetar o direito individual ante ao coletivo, de se abrir mão da 'segurança" pela libertinagem que destruiu toda ordem social, o sistema de justiça criminal e nos condenou a TODOS sem escolha a um estado de insegurança e violência sem precedentes na história do Brasil.

Palmas aos hipócritas que prepararam a grande massa "popular" para caminharem por cima desse farto campo, sem nehuma trajetória honrosa de TRABALHO em prol da nação, construtiva de uma convivência SEGURA E HARMÔNICA que é o anseio de qualquer pessoa de bom senso no mundo.

Descaracterizar uma época de "controle" necessário à segurança de todos, de progressso e ORDEM de verdade, de liberdade tanta que até em armas, grupos de pessoas e criminosos se uniram para romper o sistema que garantia a harmonia, a convivência respeitosa, as oportunidades e conquistas compatíveis aos esforços de cada um sem distinção, para impor suas maldosas intenções, malditos valores, malditas posturas que inverteram o sistema de se educar, de se projetar o direito individual ante ao coletivo, de se abrir mão da 'segurança" pela libertinagem que destruiu toda ordem social, o sistema de justiça criminal e nos condenou a TODOS sem escolha a um estado de insegurança e violência sem precedentes na história do Brasil. Palmas aos hipócritas que prepararam a grande massa "popular" para caminharem por cima desse farto campo, sem nehuma trajetória honrosa de TRABALHO em prol da nação, construtiva de uma convivência SEGURA E HARMÔNICA que é o anseio de qualquer pessoa de bom senso no mundo.
André em Terça, 16 Fevereiro 2021 00:02

Comissão da Verdade que só tem depoimento de um lado da história é Comissão de Meia-Verdade. Por acaso alguém assaltava bancos quando foi preso durante o regime militar? Vamos aos fatos sem engambelar, não subestimem a inteligência das pessoas.

Comissão da Verdade que só tem depoimento de um lado da história é Comissão de Meia-Verdade. Por acaso alguém assaltava bancos quando foi preso durante o regime militar? Vamos aos fatos sem engambelar, não subestimem a inteligência das pessoas.
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