Investimento do governo em internações supera o orçamento dos Caps

Organizações que compõem a Luta Antimanicomial no Brasil realizam, até 10 de outubro, uma campanha nacional contra as comunidades terapêuticas (CTs), instituições que acolhem pessoas com transtornos mentais por uso de drogas, mas que são frequentemente denunciadas por violações de direitos humanos. Na contramão desse esforço, no Espírito Santo, a Rede Abraço, programa estadual de ações sobre drogas, financia diretamente cinco CTs.
O programa atende à lógica do Governo do Estado de privilegiar o investimento em internações nas políticas de saúde mental. Em sua dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a pesquisadora Lara Campanharo identificou a destinação de 76,30% do recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) capixaba a leitos psiquiátricos e medicamentos.
O Estado destina R$ 191 mil por mês para clínicas psiquiátricas privadas. Para financiar os 224 leitos das 14 clínicas credenciadas com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), o gasto anual é de cerca de R$ 32 milhões, conforme informações da própria Sesa. O valor é 33,2% superior à verba para manutenção de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025 do Espírito Santo, de R$ 21,3 milhões – de acordo com levantamento de Século Diário.
O montante de recursos do Estado para comunidades terapêuticas é bem menor do que o destinado para clínicas psiquiátricas. De 2019 a julho de 2023, o valor liquidado junto às CTs credenciadas foi de R$ 7,8 milhões – conforme resposta da Secretaria de Estado de Governo (SEG) a um pedido de informação da deputada estadual Camila Valadão (Psol), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial, na Assembleia Legislativa.
Mesmo sendo menos custoso em relação às clínicas privadas, o investimento financeiro nas CTs não compensa, na opinião de especialistas em saúde mental e políticas de drogas. Até mesmo porque, segundo Fabiola Xavier Leal, professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), também é relativamente “barato” – e bem mais eficaz – destinar recursos para o atendimento da população em liberdade.
Fabíola, que coordena o Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão Fênix, focado em políticas de saúde mental e drogas, avalia que as comunidades terapêuticas são uma “particularidade brasileira”. Esse tipo de instituição, de caráter religioso, confina pessoas com transtornos mentais decorrentes do uso de substâncias por longos períodos, na contramão do que preconiza a lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001.
O edital de credenciamento de CTs de 2023 da Segov, o último lançado, previa que as instituições deveriam ter o seguinte quadro de funcionários: coordenador-geral, coordenador-administrativo, monitor de dependente químico, cozinheiro, assistente social, psicólogo, responsável técnico e suporte administrativo.
Chama a atenção o fato de não ser preconizada a presença de psiquiatras, que deveriam fazer o acompanhamento de pessoas com dependência de drogas em situações de abstinência, como ocorre nas clínicas tradicionais. Pacientes que deixam de utilizar substâncias psicoativas de forma abrupta, como crack, cocaína e remédios ansiolíticos, costumam sentir efeitos desconfortáveis e angustiantes, e podem apresentar sintomas psicóticos, como delírios e pensamento desorganizado.
A não exigência da presença de médicos e outros profissionais da área da saúde ocorre justamente porque as comunidades terapêuticas não são equipamentos de saúde ou de assistência social, conforme ressalta Fabíola Xavier. “São instituições que confinam as pessoas por um longo tempo, com a proposta de que, com trabalho e oração, o sujeito será capaz de encontrar alternativas para lidar com seu problema com relação ao uso de drogas. Essa característica coloca essas comunidades num limbo institucional”, explica.

Muitas Comunidades Terapêuticas empregam a chamada laborterapia, que consiste na utilização de atividades laborais como ferramenta terapêutica, mas que a Luta Antimanicomial denuncia como uma forma disfarçada de aplicação de trabalho forçado.
Em julho, o Governo Federal suspendeu a formalização de um contrato de prestação de serviços com a comunidade terapêutica Tenda do Encontro, de Juiz de Fora (MG), uma instituição que figurava na “lista suja” de trabalho análogo à escravidão do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Em uma série de reportagens de 2023, o portal The Intercept Brasil denunciou, dentre outros casos, os métodos da comunidade Esdras, da cidade de Cajamar (SP), que utilizava remédios de tarja preta para controlar e torturar internos.
Em 2024, o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) baixou a resolução 151, que não reconhece as comunidades terapêuticas como entidades de cuidado, prevenção, apoio, mútua ajuda, atendimento psicossocial e ressocialização de dependentes do álcool e outras drogas e seus familiares. De acordo com a normativa, essas instituições não podem receber recursos da Assistência Social. Entretanto, estados como o Espírito Santo continuam livres para financias essas comunidades por outros meios.
Em 6 de agosto último, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) cancelou o Edital nº 8/2023, que havia habilitado 587 comunidades terapêuticas em todo o Brasil. Movimentos sociais comemoraram a medida, mas consideram que o governo do presidente Lula (PT) ainda precisa avançar muito para revogar o legado de seus antecessores Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL), quando o financiamento às CTs ganhou maior impulso. O MDS ainda conta com um departamento de comunidades terapêuticas.
Rede Abraço
A Rede Abraço, como é chamado o Programa Estadual de Ações Integradas sobre Drogas (PESD), foi criada em 2013, no primeiro mandato de Renato Casagrande (PSB) como governador. Quando Paulo Hartung (atualmente no PSD) assumiu seu terceiro mandato no Governo do Estado (2015-2018), foi cobrado por cortes no financiamento às CTs, dentro de sua política de ajuste fiscal, e a Rede Abraço chegou a ser renomeada como Programa Integrado de Valorização à Vida (Proviv).
Em 2020, quando Renato Casagrande havia retornado ao governo, o programa foi reestruturado com o nome original. Em 2022, ocorreu uma mudança importante: a Subsecretaria de Estado de Políticas sobre Drogas (Sesd) foi deslocada da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) para a Segov, colocando o programa sob o “guarda-chuva” de uma pasta que não tem relação direta com as áreas de assistência social e de saúde.
Além das comunidades terapêuticas credenciadas, a Rede Abraço conta com três unidades do Centro de Acolhimento e Atenção Integral sobre Drogas (Caad) em Cachoeiro de Itapemirim (sul do Estado), Linhares (litoral norte) e Vitória. Os Caads contam com equipes multiprofissionais, com trabalhadores nas áreas de psicologia, serviço social, enfermagem, medicina e nutrição, além de “monitores de dependência química”. O atendimento é por demanda espontânea.
Em 2025, também foi implantado um Centro de Prevenção Comunitária (Cenprecom) no bairro Consolação, em Vitória, destinado a um trabalho preventivo sobre uso de drogas com crianças e adolescentes de 6 a 14 anos do Território do Bem, ofertando atividades socioeducativas, culturais, esportivas e de apoio psicossocial. O espaço está sob a coordenação da entidade Rede Amor e Compaixão, única aprovada no edital de parceria, com investimento de R$ 300 mil.
Também são lançados, com regularidade, editais de “boas práticas” e “boas práticas pedagógicas”, destinados a instituições com projetos na área de prevenção às drogas. Em 2025, já foi lançado um edital de boas práticas, com dez prêmios de R$ 40 mil (R$ 1,2 milhão no total), e outro de boas práticas pedagógicas, com 30 prêmios de R$ 10 mil (R$ 300 mil ao todo).
“A Rede Abraço é um retrocesso, porque ela compete com os serviços estruturados no SUS [Sistema Único de Saúde], conforme preconizado pela política de saúde e pela Reforma Psiquiátrica. Um Caad não é ou não deveria ser um equipamento de saúde, porque concorre com um Caps ou uma Unidade Básica de Saúde. Embora os gestores digam que é uma rede complementar, na nossa avaliação, desvia recursos para uma lógica manicomial”, avalia Fabiola.
A pesquisadora afirma ainda que há dificuldade para fazer o devido controle social da Rede Abraço. Em março do ano passado, ela decidiu deixar o Conselho Estadual sobre Drogas (Coesad) após mais de uma década de atuação, por considerar que não havia espaço de questionamento à atual política estadual sobre drogas.
Comunidades terapêuticas e discurso religioso
As comunidades terapêuticas atualmente credenciadas na Rede Abraço, todas voltadas ao público masculino, incluem: Instituto de Consciência Antidrogas (ICAD), também conhecido como Projeto Resgate Vida, que funciona em Afonso Cláudio (região serrana); Projeto Alfa, de Piúma (litoral sul); Associação de Amparo Social, Educacional e de Reabilitação de Dependentes Químicos de Nova Venécia (Aaserdq), localizado no município do noroeste; Instituto Horta de Vida e Associação de Acolhimento Psicossocial Fênix, ambas de Cariacica, na Grande Vitória.

Atualmente, está em aberto um edital de chamamento de comunidade terapêutica para acolhimento feminino, no valor de R$ 1,3 milhão. Até o início de 2021, também recebia financiamento a comunidade terapêutica Tratamento Comportamental Antidrogas Casa da Mulher (TCAD – Casa da Mulher), de Domingos Martins, na região serrana, que foi descredenciada.
As irregularidades praticadas pela unidade feminina, segundo denúncias, incluíam: rotina intensa de trabalho com capina e cuidado com horta; cultos e estudos bíblicos três vezes ao dia como terapia; coação de coordenadores nos contatos com familiares; discriminação de gênero; e ausência de prontuários regulares de atendimento. A TCAD – Casa da Mulher continua em funcionamento, apesar de não receber recursos do Estado.
As denúncias foram mencionadas por Ingrid Santana Engelender Brotto, em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de mestrado profissional na Faculdade Unida de Vitória, apresentado em 2022, sobre comunidades terapêuticas do Espírito Santo. Ingrid, que trabalhou na Rede Abraço, fez visitas às cinco CTs credenciadas pelo Estado.
Sem citar os nomes de cada uma delas, Ingrid observou que todas as comunidades terapêuticas apresentam elementos e representações, em maior ou menor quantidade, ligados à religião cristã, e a maior parte delas fica em locais de difícil acesso. Uma pessoa acolhida em uma das CTs chegou a reclamar que outros internos estavam fazendo uso de drogas dentro da própria instituição.
“No que diz respeito à dimensão da espiritualidade no tratamento, percebemos que as comunidades terapêuticas não conseguem dissociar religião de espiritualidade e, dentro da rotina de atividades estabelecidas para promoção da espiritualidade, acabam por desenvolver ações proselitistas de cunho cristão. Essas ações são prejudiciais aos acolhidos que não se identificam com o tratamento de base religiosa ou que por motivos pessoais não conseguem estabelecer uma identificação com a doutrina cristã, bem como não favorece aos acolhidos que têm uma fé diferente e que, portanto, são estigmatizados ou perseguidos – mas que ainda assim têm necessidade de buscar sentido para a vida e enquanto cidadãos têm direito ao tratamento oferecido dentro das políticas públicas, de maneira que não sejam perseguidos ou hostilizados”, defendeu a pesquisadora no trabalho.
Junto à religião, há também a influência política. Em junho, foi instalada na Assembleia Legislativa, a Frente Parlamentar em Apoio às Comunidades Terapêuticas, presidida pelo deputado estadual Allan Ferreira (Podemos). Em 18 de agosto, no Dia Nacional das Comunidades Terapêutica, Allan fez um vídeo ao lado do pastor Luiz César Ferreira Oliveira, fundador do Projeto Alfa. Em 2022, Luiz César foi candidato a deputado estadual pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), o mesmo de Renato Casagrande.
A data do final da campanha nacional pretende estabelecer o Dia Nacional de Luta Contra as Comunidades Terapêuticas. Um manifesto foi disponibilizado na internet, e os interessados podem assinar por meio de um formulário online.
Financiamento da Raps
Por conta de um novo projeto de pequisa, o grupo acadêmico de Fabiola Xavier fez visitas recentemente a diversas instituições direcionadas ao tratamento de pessoas com uso de drogas no Espírito Santo, tanto da rede pública quanto de instituições privadas. Os resultados deverão ser apresentados em outubro.
Os dados ainda estão em processo de análise, mas um dos pontos notados pela professora da Ufes é que, nos últimos anos, houve um aprimoramento da estrutura das comunidades terapêuticas e, principalmente, um grande crescimento no número de clínicas psiquiátricas. Muitas dessas clínicas trabalham dentro da lógica das internações compulsórias, quando usuários de drogas são internados sob efeito de medidas judiciais, e com tratamento bancado pelo Estado.
Fabiola comenta que, se tivesse que escolher entre uma clínica psiquiátrica e uma comunidade terapêutica, certamente apontaria a primeira opção. Entretanto, ela acrescenta que as clínicas seguem a mesma lógica de confinamento, o qual tem se mostrado ineficaz.

“São milhões em recursos públicos que, em vez de serem investidos em prevenção, promoção, atendimento no território, nas unidades de saúde, nos Caps, estão sendo repassados para internar pessoas em instituições privadas. E a gente tem visto ciclo imensos, pessoas que passam por 17 processos de internação. É um dinheiro para confinar pessoas, e que escoa pelo ralo”, critica.
A ênfase em internações e medicamentos acaba por fortalecer uma indústria bastante lucrativa. Atualmente, a Greenhouse e a Vivere, duas das principais clínicas psiquiátricas em atuação no Espírito Santo, pertencem ao ViV Saúde Mental e Emocional, grupo empresarial do Rio de Janeiro.
Para Fabiola, é preciso inverter essa lógica e insistir na execução plena da Rede de Atenção Psicossocial no Sistema Único de Saúde. Um relatório recente do Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) identificou ao menos 17 problemas estruturais e de gestão na Raps capixaba. Entre os principais pontos críticos, destacam-se o tempo excessivo de espera para consultas com profissionais da psiquiatria, que ultrapassa 100 dias em algumas regiões; a falta de estrutura adequada nos Caps, que enfrentam carência de recursos humanos, físicos e de equipamentos; além da ausência de Caps em municípios elegíveis para habilitação de unidades.
Esse levantamento inclui os Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-ad), que atendem diretamente o público com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas. “A rede pública já está colocada, ela é brilhante. É universal, gratuita, de qualidade, é tudo o que a gente defende em todas as dimensões teóricas. Mas o Espírito Santo é um dos poucos estados do Brasil que não tem a rede completa. Falta Unidade de Acolhimento (UA), Centros de Convivência e Cultura. Não são só os Caps: entre a Unidade Básica e o leito psiquiátrico, existe uma infinidade de coisas que não são efetivadas”, acrescenta.
‘Seguindo a política nacional’
Procurada por Século Diário, a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) argumentou que “trabalha na ótica do cuidado em Saúde Mental seguindo a política nacional, que visa garantir o cuidado às pessoas com transtornos mentais e necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Os critérios de internação voluntárias e involuntárias estão estabelecidos no Espírito Santo, desde de 2014, em consonância com a Lei Federal nº 10.216/2001 e com as recomendações da Organização Mundial da Saúde. A Sesa ressalta que qualquer internação involuntária necessita de laudo médico e de esgotamento dos recursos extra-hospitalares”.
Sobre as internações, a secretaria destacou que “as solicitações de internação em saúde mental são classificadas como voluntárias (quando o próprio indivíduo deseja a internação), involuntária (quando a internação é necessária, porém o indivíduo não a deseja) ou compulsória (quando a internação é determinada judicialmente). As internações voluntárias e involuntárias são tratadas como solicitações administrativas”.
A secretaria destacou ainda que conta hoje com leitos psiquiátricos para adultos no Hospital de Atenção Clínica (HEAC), em Cariacica; no Centro de Atendimento Psiquiátrico Aristides Alexandre Campos (Capaac), em Cachoeiro; e leitos de saúde mental infanto juvenis no Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (Himaba) em Vila Velha. “Além dos leitos próprios, a Sesa conta também com os filantrópicos contratualizados e clínicas credenciadas para atender aos pacientes, utilizando o Protocolo Estadual de Classificação de Risco em Saúde Mental para definição de prioridade clínica para internação”, acrescenta a nota.
A Sesa também destacou o trabalho da Subsecretaria de Estado de Políticas sobre Drogas (Sesd), da Segov. Entretanto, não respondeu aos questionamentos do jornal sobre a discrepância entre o investimento em internações e os recursos para atendimento em liberdade.
Século Diário também procurou a Secretaria de Estado de Governo, por meio da Superintendência Estadual de Comunicação Social (Secom), mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.