Nutricionista Denner Mantovaneli apontou limitações enfrentadas no interior do Estado
A população LGBTQIA+ que vive em municípios do interior do Espírito Santo enfrenta dificuldades no acesso a serviços de saúde especializados, como a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP) e outros tratamentos, uma herança de uma política de saúde historicamente centralizada no Brasil, que foi destacada pelo nutricionista Denner Mantovaneli, durante a etapa estadual da 4ª Conferência LGBTQIA+, realizada nesse fim de semana. A denúncia resultou na aprovação de uma proposta que defende a descentralização desses serviços, para ser levada à etapa nacional da conferência, que acontecerá em Brasília, entre os dias 21 e 25 de outubro, após mais de uma década desde a última edição.
Denner relatou que os serviços de prevenção ao HIV, como PrEP e PEP (profilaxia pós-exposição), continuam concentrados em centros especializados localizados nas cidades maiores e, por falta desse serviço em Vila Valério, município onde mora, no noroeste do Estado, ele precisa se deslocar a cada dois ou três meses até outra cidade, onde é atendido por uma enfermeira que se solidarizou com sua situação. “A cada mês, preciso reorganizar toda minha agenda de trabalho para conseguir viajar. Isso exige deslocamento, tempo e dinheiro, mas fico pensando principalmente em quem nem sabe que pode ter acesso”, destacou.

Ele observa que essa realidade não é uma exceção, pois muitas pessoas sequer sabem da existência da PrEP por falta de informação. Para o nutricionista, descentralizar o acesso é fundamental para garantir que todas as pessoas possam receber os cuidados de saúde adequados. Denner explica que a proposta de descentralização da PrEP, uma das aprovadas no eixo 4 da conferência, que focou na saúde, tinha sido pensada inicialmente para garantir atendimento prioritário a pessoas vivendo com HIV, mas o debate levou à constatação de que, antes de estabelecer prioridades, é preciso garantir o acesso básico.
O texto final juntou duas propostas semelhantes originadas em diferentes regiões do Estado. “Consolidamos a ideia de que o acesso precisa, antes de tudo, existir. Não adianta falar em prioridade sem garantir a oferta do serviço”, explicou.
Ele acredita que, se aprovada em nível federal, a medida pode trazer mudanças concretas para a população LGBTQIAPN+ em todo o País. “Se não fosse essa profissional que me acolhe, eu estaria desassistido. O problema já começa na dificuldade de chegar informação e orientação”, avalia.
O eixo da saúde também debateu outras medidas para ampliar e qualificar o atendimento à população LGBTQIA+ no SUS. Uma das propostas foi a criação de um Estatuto da População LGBTQIA+, que estabeleça diretrizes permanentes para garantir a aplicação e fiscalização de políticas públicas. Também houve discussão sobre a transparência orçamentária nas ações governamentais voltadas à diversidade sexual e de gênero, com objetivo de identificar os valores destinados a essa área nos planejamentos e execuções de gastos públicos.
Denner relatou ainda que, até o ano passado, Vila Valério sequer participava da conferência. Em 2024, a presença do município só ocorreu após uma recomendação do Ministério Público. “Fui enviado pela gestão municipal justamente porque não havia ninguém representando a cidade nessa pauta. Aqui ainda não existe uma política específica para a população LGBTQIA+”, afirmou.
De acordo com dados da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), de janeiro a novembro de 2024, mais de 19,8 mil pessoas vivem com HIV no Espírito Santo e outras 2,9 mil pessoas estão em uso de PrEP. Embora o Estado conte com 31 Serviços de Atenção Especializada (SAEs) e Centros de Testagem e Aconselhamento (CTAs) voltados para o cuidado de pessoas com HIV/AIDS e outras ISTs, apenas 26 estão atualmente habilitados a ofertar a PrEP. A diferença se deve à necessidade de estrutura adequada, equipe capacitada e logística de fornecimento do medicamento, requisitos que ainda estão em fase de ampliação em alguns municípios.
Ainda em 2024, o Brasil atingiu 96% de diagnósticos entre pessoas vivendo com HIV, superando a segunda das três metas globais estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para eliminação da Aids como problema de saúde pública até 2030. O avanço foi atribuído, entre outros fatores, à ampliação da oferta da PrEP, que exige a realização de testes prévios para sua utilização. Apesar do progresso, o Ministério da Saúde reconhece que ainda há desafios, como garantir acesso ao tratamento a todas as pessoas recém-diagnosticadas, reconectar quem abandonou a terapia e combater as desigualdades regionais no acesso aos serviços. A meta agora é ampliar em 142% o número de usuários em PrEP até 2027, com foco nas populações mais vulnerabilizadas.
Para Denner, é essencial que a descentralização da PrEP se transforme em uma política pública contínua, com garantia de orçamento e responsabilidade das gestões, para que o acesso à saúde deixe de ser limitado e passe a alcançar todas as pessoas, inclusive nos municípios menores. “Mesmo que não seja aprovada de imediato, que ao menos seja discutida. É uma pauta urgente e nós precisamos dar o primeiro passo”, ressaltou.
O presidente do Conselho Estadual LGBTQIA+, Filipe Vieira, destaca que o Espírito Santo registrou o dobro de adesões em relação à conferência de 2019, superando inclusive a participação municipal de encontros voltados a outros segmentos sociais, como juventude, pessoa idosa e igualdade racial. “Tivemos um processo de construção de 16 meses com o governo estadual, com o governo federal e com a sociedade civil. E essa foi uma das conferências mais bem organizadas do país, segundo o próprio Conselho Nacional e o Ministério”, afirmou. Ao todo, 70% dos municípios capixabas participaram da etapa estadual.
A cartilha elaborada durante o processo reúne propostas voltadas à promoção de cidadania, saúde, educação, segurança pública e empregabilidade para a população LGBTQIA+. Filipe destaca que agora é essencial que o documento seja incorporado de forma permanente à agenda política, com a implementação dos eixos que tratam da ampliação do acesso à saúde, formação continuada de servidores públicos, inserção no mercado de trabalho, acolhimento da juventude e da população negra e indígena, e o combate à violência e à LGBTfobia institucional.