Evento em Cachoeiro de Itapemirim promove debate sobre o “Holocausto Brasileiro”
Neste domingo (18), o Brasil celebra o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, uma data marcada pela memória, resistência e urgência de transformar o cuidado em saúde mental. Como parte da programação, o Cineclube Jece Valadão, de Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo, realizará um evento no espaço Sessão 103, localizado no Centro da cidade, com exibição de filme e realização de uma performance sensorial.
A data, que rememora os horrores vividos por pessoas em instituições psiquiátricas ao longo do século XX, também atende ao objetivo de cobrar do Estado o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) como modelo substitutivo e humanizado de cuidado. O evento, que faz parte do projeto “A loucura habita o cineclube”, se integra à luta, ao promover uma programação que reúne performances de teatro e exibição do documentário Holocausto Brasileiro, adaptação do livro homônimo escrito pela jornalista Daniela Arbex, que aborda o genocídio cometido contra os pacientes psiquiátricos do hospício de Barbacena, em Minas Gerais.
Psicóloga e cineclubista que idealizou o projeto “A loucura habita o cineclube”, Marina Balarini destacou que a iniciativa surgiu da necessidade de debater o tema na cidade, onde funcionou a Clínica Santa Isabel, um hospício fechado em 2016. “Esse histórico marcou muito inclusive profissionais de saúde mental, que muitas vezes reproduzem a lógica manicomial”, avalia.

Ela aponta a importância de falar sobre o passado “para que os manicômios não se atualizem utilizando outros nomes, como tem acontecido, apesar da lei da Reforma Psiquiátrica”, em referência a retrocessos, como o investimento público nas comunidades terapêuticas, que não atendem ao modelo pós-reforma. “O manicômio também é algo mental, na medida em que queremos controlar o outro e achar o que é melhor para o outro. Precisamos defender o cuidado em liberdade”, ressalta.
Para o conselheiro regional de Psicologia, Rodrigo Scarabelli, a luta antimanicomial continua sendo fundamental num cenário em que, apesar de avanços legais e institucionais, o país ainda convive com a precariedade dos serviços públicos, o avanço de comunidades terapêuticas com práticas manicomiais e o desmonte de políticas públicas no campo da saúde mental e das drogas.
“Até o início dos anos 2000, existia no país o que a gente chama de grandes manicômios. Eram hospitais ou instituições de características asilares, onde pessoas não recebiam tratamento, mas eram institucionalizadas por tempo indeterminado, muitas vezes vivendo e morrendo nesses locais”, explica.
As denúncias sobre maus-tratos, negligência e violações sistemáticas de direitos humanos em instituições psiquiátricas ganharam notoriedade com o documentário e o livro Holocausto Brasileiro. O material impactou a sociedade brasileira e impulsionou as lutas travadas por profissionais da saúde mental, familiares e movimentos sociais desde os anos 1980. O Brasil viveu um verdadeiro holocausto silencioso, descreve.
“As pessoas eram internadas sem diagnóstico fechado. Muitas vezes eram indesejadas pela família ou pela sociedade. Mulheres, pessoas com deficiência, com orientação sexual não normatizada, amantes de pessoas influentes…todas acabavam em manicômios. E uma vez internadas, não saíam mais”, detalha.

Com a aprovação da Lei 10.216, em 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, o Brasil passou a proibir a internação prolongada de pessoas com transtornos mentais e a instituir serviços substitutivos ao modelo hospitalocêntrico. A partir daí, surgiram os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que oferecem tratamento em liberdade, com vínculos comunitários e familiares preservados.
“O hospital ainda existe, mas numa lógica diferente. Hoje, uma internação só deve ocorrer em situação de crise aguda, com risco para a pessoa ou terceiros. E mesmo assim, pelo menor tempo possível, para que ela estabilize e volte para o acompanhamento na rede de atenção psicossocial”, explica o conselheiro. Ele lembra que a transição não se deu de forma automática no País.
“Mesmo após a lei, muitos hospitais psiquiátricos continuaram abertos. No Espírito Santo, o antigo Hospital Santo Isabel, em Cachoeiro de Itapemirim, só foi fechado anos depois, após inspeções realizadas com o apoio do Conselho de Psicologia. O mesmo ocorreu com o Adauto Botelho, na região metropolitana, que hoje é o Hospital Estadual de Atenção Clínica (HEAC), antes o manicômio da Grande Vitória”, pontua.
Essas inspeções revelaram violências intensas, castigos físicos, alimentação precária, celas de isolamento. Era comum encontrar pessoas envelhecidas dentro desses hospitais, internadas desde jovens. Algumas mulheres deram à luz dentro dessas instituições e seus filhos cresceram trabalhando no próprio hospital, relata.
Apesar dos avanços conquistados, o representante do Conselho Regional de Psicologia afirma que ainda falta muito para a consolidação plena da Raps. Uma recente auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES) apontou diversas falhas na estrutura pública de atendimento a pessoas com sofrimento psíquico e usuárias de álcool e outras drogas. “É preciso investir em equipamentos públicos de saúde mental em todo o país. Existem municípios que não têm sequer um CAPS. Como podemos dizer que a política não funciona se ela nunca foi plenamente implantada?”, questiona.
Enquanto isso, muitas pessoas em sofrimento psíquico acabam sendo levadas a comunidades terapêuticas, geralmente por desamparo das famílias, diante da ausência de serviços adequados. “Esses espaços, embora legalizados, muitas vezes reproduzem práticas manicomiais, com restrições severas à liberdade e punições veladas”, avalia.
Nesse sentido, o governo estadual tem concentrado esforços e recursos em iniciativas paralelas, coordenadas pela Secretaria Especial sobre Drogas, como a Rede Abraço, que embora reúna ações de prevenção e orientação sobre uso de drogas, é criticado por privilegiar as comunidades terapêuticas em detrimento do fortalecimento da rede pública, especialmente dos CAPS AD (voltados ao atendimento de pessoas com problemas relacionados ao álcool e outras drogas).
“As comunidades terapêuticas acabam preenchendo uma lacuna deixada pelo Estado: a ausência de unidades de acolhimento”, alerta. O conselheiro explica que, de acordo com a Política Nacional de Saúde Mental, essas unidades de acolhimento deveriam funcionar como moradias temporárias para pessoas em tratamento, especialmente aquelas em vulnerabilidade social — como quem está em situação de rua ou em risco de recaída por permanecer em ambientes hostis.

A unidade de acolhimento é uma estrutura essencial e que deveria existir em articulação com os CAPS, mas não está sendo implementada como deveria, e isso abre espaço para alternativas fora da lógica da reforma psiquiátrica”, pontua o conselheiro, que manifesta preocupação quanto à falta de estrutura adequada para o cuidado em liberdade, aliada à fragilidade da política sobre drogas. Para ele, a mistura entre equipamentos públicos e comunidades terapêuticas precisa ser revista, para que prevaleça a lógica do cuidado na política de saúde mental, pautada pelos direitos humanos e autonomia
“É fundamental divulgar as experiências positivas da Raps, mostrar que há caminhos possíveis e eficazes. Mas também é preciso cobrar do poder público mais investimento, equipamentos e profissionais preparados. O interior do Estado também precisa ter acesso ao que hoje ainda está concentrado na região metropolitana”, defende.
Manicômios judiciários
Outra mudança recente no campo da saúde mental diz respeito à Resolução nº 487/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a Política Antimanicomial no Poder Judiciário. A nova norma finalmente alcança os manicômios judiciários, estruturas que permaneceram à margem da reforma psiquiátrica iniciada nos anos 2000. A resolução prevê a desinstitucionalização progressiva de pessoas internadas em hospitais de custódia e sua reinserção nas redes de cuidado comunitário e em residências terapêuticas, quando não houver retorno familiar possível.
A partir do próximo dia 26 de maio, a Unidade de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (UCTP) de Cariacica deixará de receber novos pacientes. A medida cumpre o cronograma previsto na Portaria Conjunta Sejus/Sesa nº 001-R, de 18 de setembro de 2024, para desativação do manicômio judicial do Estado, direcionado a pessoas que cometeram crimes e foram consideradas incapazes de se responsabilizarem pelos seus atos devido a transtornos psiquiátricos. O Estado concluirá a implementação da Política Antimanicomial do Judiciário em novembro de 2026, segundo informou ao CNJ.
“O processo de fechamento dos hospitais de custódia vem acompanhado de muito alarde na mídia, com discursos de medo e estigmatização. O mesmo aconteceu quando os manicômios civis começaram a ser desativados. Diziam que os ‘loucos’ estariam nas ruas colocando todos em risco, mas não foi o que aconteceu. Agora, novamente, vemos esse tipo de narrativa se repetir”, observa o conselheiro. Ele destaca que tanto o Conselho Federal quanto os regionais de Psicologia estão atentos à aplicação da resolução e participam de comitês de monitoramento, como o Comitê Estadual Antimanicomial no Espírito Santo.
Debate e programação cultural
A programação do Dia da Luta Antimanicomial em Cachoeiro de Itapemirim inicia às 16h, com performance sensorial “Ciclo Sentidos”, da Cia Nós de Teatro. Na sequência, às 18h, haverá a exibição do documentário Holocausto Brasileiro. A noite se encerra com um debate sobre o tema.
O projeto “A loucura habita o cineclube”, do qual o evento faz parte, é realizado com recursos da Secult/Funcultura, que promove sessões com usuários de serviços de saúde mental e intervenções em espaços públicos. Marina Balarin defende que o debate chegue a mais pessoas. “Todo mundo está sujeito a um adoecimento mental”, reforça.