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‘É um conflito de interesse flagrante que vai tornar o trabalho mais fragilizado’

Auditores fiscais federais denunciam proposta que entrega inspeção aos frigoríficos

Durante a tarde dessa quarta-feira (14), quem passou em frente à Superintendência Federal de Agricultura (SFA/ES), no bairro Mata da Praia, em Vitória, ouviu, de um carro de som, alertas sobre os riscos de uma “mudança silenciosa, mas potencialmente desastrosa” no controle sanitário de carnes no Brasil. No momento em que representantes do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) participavam de reunião na sede da Superintendência, a denúncia dos servidores da fiscalização agropecuária apontava os perigos da proposta de alteração normativa, que pode transferir a inspeção diária de carnes para empresas privadas contratadas diretamente pelos frigoríficos.

Reprodução

A medida tem sido articulada sob forte influência do lobby da indústria da carne, alertam os auditores fiscais federais agropecuários, listando riscos tanto à saúde pública quanto à confiabilidade das exportações brasileiras. “É um conflito de interesse flagrante, que vai tornar esse trabalho muito mais fragilizado”, resume Sara Hoppe, auditora fiscal federal e delegada estadual do Sindicato Nacional dos Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical). “Se o auditor já sofre pressão, imagine um veterinário que depende do salário pago pela empresa que ele precisa multar”, destaca.

Atualmente, a inspeção de carnes no Brasil é feita por servidores públicos do Serviço de Inspeção Federal (SIF), vinculados ao Mapa. Esses servidores, amparados por estabilidade e independência funcional, avaliam diariamente os animais antes e depois do abate em frigoríficos, garantindo que apenas produtos aptos ao consumo sigam para os mercados nacional e internacional.

No entanto, a minuta de uma nova portaria, elaborada por um grupo técnico do Mapa, propõe regulamentar o artigo 5º da Lei 14.515/2022 (Lei do Autocontrole), transferindo a responsabilidade pela execução da inspeção para empresas privadas credenciadas e pagas diretamente pelos frigoríficos. A supervisão formal ainda seria de responsabilidade de um auditor do Mapa – mas este, conforme explicam os servidores, teria atuação remota e limitada, visitando os frigoríficos poucas vezes ao ano.

Durante a visita da diretora do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa), Juliana Satie Becker de Carvalho Chino, acompanhada do coordenador de suporte à inspeção João Heleno Moreira Pimentel e do coordenador regional do 4º Sipoa, Marcelo Zordan Lucas, os servidores optaram por uma manifestação simbólica, com o carro de som em frente à sede da SFA/ES.

“Atenção! Talvez você nem saiba, mas a carne que você consome no dia a dia só chega ao mercado depois que passa por inspeção sanitária realizada por um servidor público. Agora, veja o que está prestes a acontecer: inacreditavelmente, o Mapa quer transferir essa responsabilidade para empresas contratadas pelos próprios frigoríficos”, dizia um trecho da gravação. Para Sara, o ato teve um tom “fúnebre”. “As pessoas estão constrangidas, acuadas. Ficou só o carro lá falando. Foi um protesto silencioso, mas muito grave”, relatou.

A delegada sindical da categoria no Espírito Santo protocolou, no último dia 7, uma denúncia formal ao Ministério Público Federal (MPF). No documento, ela alerta para os riscos à saúde pública, à integridade do sistema de inspeção e às relações comerciais com países importadores de carne brasileira, como China e Estados Unidos.

“O financiamento dos serviços de inspeção a ser realizado pelo frigorífico diretamente à empresa credenciada é indissociável do conflito de interesses pelo aspecto econômico, num sistema capitalista”, escreveu na representação. Ela também lembrou que “já existem dezenas de casos recentes de assédio — inclusive tentativa de homicídio” – contra servidores que condenaram produtos insalubres. “Se já existe pressão sobre servidores independentes e estáveis, como será a autonomia dos veterinários contratados por empresas financiadas pelos próprios frigoríficos?”, questiona.

Em 2016, uma tentativa de privatizar a inspeção federal no Espírito Santo foi barrada na Justiça. Agora, os auditores estaduais e federais se articulam novamente. Um comando estadual de mobilização foi criado pelos auditores do Mapa no Estado, com o objetivo de organizar novas ações e articular com outros estados para impedir a publicação da portaria.

Ela também expressou preocupação com a situação sanitária em plantas frigoríficas do Estado. Em Colatina, noroste capixaba, funcionários de empresas têm relatado alto número de casos de tuberculose, revela. “E o mais grave: esses dados são abafados, não são públicos, e o trabalho de fiscalização já é hoje altamente assediado”, acrescenta.

Além da ameaça à segurança alimentar, a mudança pode comprometer a exportação de carnes brasileiras. Muitos países exigem que as cargas sejam inspecionadas por auditores independentes, e enviam regularmente missões técnicas para auditar o sistema de inspeção. Com a nova portaria, esses auditores do Mapa não estarão mais presentes fisicamente nas plantas frigoríficas, mas ainda terão que assinar os certificados de exportação — com base em dados produzidos por uma equipe terceirizada, sem vínculo público e submetida à lógica de mercado.

Se essa proposta for adiante, a categoria entende que o Brasil corre risco de perder credibilidade no mercado internacional. “A inspeção sanitária não pode ser entregue à lógica privada”, alerta a delegada sindical. A entidade tem denunciado o que considera “mais um passo do Mapa rumo à privatização do serviço público de inspeção”. Em nota pública, afirma que a proposta desestrutura um modelo centenário de controle sanitário e “rasga os princípios da imparcialidade, do interesse público e da soberania alimentar”.

Para os servidores, a sociedade brasileira precisa ser informada sobre os riscos da medida. “Essa é uma luta que não é só nossa. É uma luta por saúde pública, por soberania e por respeito ao povo brasileiro. O mínimo que se espera é que o governo retire essa proposta de pauta e abra um debate real com os trabalhadores e com a sociedade”, cobram.

Os servidores preparam novas ações para as próximas semanas e defendem que, em vez de enfraquecer o serviço público, o Mapa invista em novos concursos e valorização da carreira. “A falta de pessoal e de perspectiva para a carreira é real, mas isso não justifica essa entrega ao setor privado. É uma escolha política, não uma necessidade técnica”, enfatiza Sara.

Polícia Civil/ RJ

Violações de segurança

Em 2024, a organização Repórter Brasil revelou as graves violações de saúde e segurança nos frigoríficos brasileiros, denunciando a indústria da carne como uma “fábrica de acidentes” e mostrando que, mesmo com normas específicas em vigor há mais de uma década, trabalhadores continuam expostos a ritmos intensos, mutilações, adoecimentos e irregularidades que afetam diretamente suas vidas e os cofres públicos. A investigação apontou a persistência de condições degradantes de trabalho na indústria frigorífica brasileira, mesmo mais de uma década após a implementação da Norma Regulamentadora nº 36 (NR-36), que estabelece diretrizes mínimas de segurança e saúde para o setor.

Com base em 63 entrevistas realizadas com empregados e ex-empregados de grandes frigoríficos como JBS, Marfrig e Minerva, o levantamento revelou um quadro alarmante: 84% dos trabalhadores relataram doenças relacionadas ao trabalho, 40% afirmaram ter sofrido acidentes, e quase todos relataram desconforto térmico e jornadas exaustivas, frequentemente sem pausas obrigatórias.

A reportagem mostrou que os frigoríficos operam como verdadeiras “fábricas de lesões”, em que o adoecimento físico dos trabalhadores é uma constante. Relatos revelam trabalhadores com sequelas permanentes após anos de esforço repetitivo, exposição a temperaturas extremas e uso contínuo de facas e serras. Os depoimentos evidenciam um padrão de adoecimento ignorado por empresas que, embora afirmem seguir as normas legais, acumulam autuações por descumprimento da NR-36.

A Repórter Brasil também contextualizou esses problemas com o histórico de ameaças à NR-36, como a tentativa do governo Bolsonaro de flexibilizar a norma em 2022, o que só foi barrado por decisão judicial. Embora a implementação da norma tenha contribuído para a redução de alguns indicadores de afastamento por doenças e fraturas, a reportagem demonstrou que sua aplicação segue sendo parcial e constantemente desrespeitada pelas empresas.

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