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‘Tinham que interditar as comunidades terapêuticas, não são boas para ninguém’

Usuários da Rede Atenção Psicossocial participaram de evento contra as CTs na Assembleia

Lucas S. Costa/Ales

Em 1999, aos 19 anos, Warley Lima do Nascimento foi internado em uma comunidade terapêutica (CT) de Belo Horizonte, em Minas Gerais, por conta do uso prejudicial de drogas. Ele afirma que a instituição o obrigou a vender canetas e outros objetos pelas ruas sem receber nada em troca. Seus documentos foram apreendidos, e ele não tinha como sair de um ambiente insalubre, onde as pessoas dormiam amontoadas e a comida era racionada. Para conseguir sair, teve que chamar a polícia. Um tempo depois depois, foi internado novamente em uma “fazenda”, onde foi obrigado a trabalhar capinando.

“Acho que tinham que interditar essas comunidades terapêuticas, porque não são boas para ninguém”, comentou Warley, que hoje é atendido em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps) da Grande Vitória. Ele relatou suas experiências na manhã desta sexta-feira (10), na Assembleia Legislativa, durante um evento da Campanha Nacional Contra Comunidades Terapêuticas, realizado na mesma data em que é celebrado o Dia Mundial da Saúde Mental.

O evento da campanha em Vitória foi organizado pela Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Luta Antimanicomial, presidida pela deputada estadual Camila Valadão (Psol). Diversos usuários e seus familiares e trabalhadores da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do Estado tiveram a oportunidade de se manifestar.

“Já no Caps eu fui acolhido, meus irmãos me levaram e eu pensava que seria a mesma coisa, eu estava nervoso. Mas o Caps acolhe, tem psicóloga, psiquiatra, terapeuta e humanidade, eles vão na casa da gente, ajudam e orientam. Foi uma diferença enorme para mim. Eu acho muito importante que tenha mais Caps, porque tem pouco ainda, eles estão lotados”, disse Warley.

Outro usuário, Vagner Silva, também estava na mesa principal, e opinou que a Raps têm uma relação direta com a construção da democracia no Brasil. Ele, por exemplo, tem a oportunidade de participar do conselho gestor do Caps, o que não acontece nas comunidades terapêuticas ou até mesmo nas clínicas psiquiátricas tradicionais.

Também compuseram a mesa, junto com Camila Valadão e os usuários, Fabiola Xavier Leal, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); Betsaida Moulin Malheiros, gerente do Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (Caps ad) Laranjeiras, na Serra; Nicéia Malheiros, assistente social e representante da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme); e a vereadora de Vitória Ana Paula Rocha (Psol).

Financiamento público

Um dos principais pontos destacados no evento foi o fato de as comunidades terapêuticas concorrerem por recursos públicos com os serviços oferecidos pelos Sistemas Únicos de Saúde (Suas) e Assistência Social (Suas). Dados do governo federal dão conta de que o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) já destinou em 2025 cerca de R$ 170 milhões para comunidades terapêuticas.

No Espírito Santo, a Rede Abraço financia, diretamente, cinco comunidades terapêuticas credenciadas. Apesar de muitas receberem dinheiro público, Fabíola Xavier afirmou que existem mais de 100 CTs que muitas vezes atuam sem o devido controle dos órgãos públicos. Ela mesma realizou uma pesquisa recente pelo Estado em que só conseguiu acesso a 27 comunidades.

Fabíola também reforçou os pontos que fazem com que a luta antimanicomial se posicione radicalmente contra a existência das comunidades terapêuticas: são instituições, quase sempre, ligadas a grupos religiosos; confinam os usuários por longos períodos e longe de seus territórios; e substituem o cuidado adequado por oração e atividades laborais, que têm resultado inclusive em denúncias de trabalho análogo à escravidão.

Lucas S. Costa/Ales

“Não estou dizendo nada que não seja real. Confinamento em longo prazo e baseado num modelo, numa ideia de enfrentamento da questão, sobretudo do consumo de álcool e outras drogas e substâncias psicoativas, por meio do labor e da oração. Esse é o modelo no Brasil. Eu já viajei o mundo, visitei comunidades terapêuticas em todos os países que vocês possam imaginar. Não existe comunidade terapêutica igual ao modelo brasileiro. Esse modelo de oração e confinamento só acontece no Brasil. Quando a gente diz isso no exterior, as pessoas não conseguem entender”, acrescentou.

Em contraponto, o vice-presidente do Conselho Estadual sobre Drogas, José Carlos Fiorido, manifestou-se a favor do “debate público e democrático”, e defendeu a existência de CTs, desde que sejam fiscalizadas. “Essas cinco [CTs habilitadas da Rede Abraço], nós não temos nenhuma reclamação. E temos espaço para reclamações, em que, na verdade, cada pessoa pode utilizar esse espaço para reclamar, e todas as denúncias são apuradas. Portanto, nós defendemos as comunidades terapêuticas. Até porque se a gente fecha as comunidades terapêuticas, vai levar as pessoas para onde?”, opinou.

Tentativa de intimidação

Antes do início das falas, a deputada Camila Valadão relatou que recebeu, nessa quinta-feira (9), uma notificação extrajudicial da Federação das Comunidades Terapêuticas do Estado do Espírito Santo (Fecotes), a respeito do evento e de falas da parlamentar nas redes sociais.

O documento, assinado pelo presidente Fecotes, Elias Ferreira Nunes, pede que a deputada: “abstenha-se de proferir ou divulgar, em eventos públicos, declarações genéricas e infundadas que denigram a imagem das Comunidades Terapêuticas”; que ela apresente retratação pública, “reconhecendo que as CTs são entidades legais fiscalizadas e que exercem importante papel social”; e que “assegure o direito de resposta institucional à Fecotes”.

Ainda de acordo com a notificação, a deputada deveria se manifestar no prazo de até cinco dias úteis, ou então a Fecotes “adotará as medidas judiciais cabíveis”. Durante o evento, Camila afirmou que haveria possibilidade de manifestação para quem quisesse, destacando ainda que as atividades estavam sendo registradas em vídeo, mas que não toleraria tentativas de intimidação.

“Não serei intimidada nas minhas prerrogativas como deputada eleita”, reforçou.

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