Especialista alerta para riscos de nova política estadual sobre TDAH
O Espírito Santo passou a ter, no início de junho, uma Política Estadual de Proteção dos Direitos da Pessoa com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Prevista na Lei 12.419/2025, derivada de um projeto de autoria do deputado Coronel Weliton (PRD), a medida visa assegura cuidados médicos e clínicos já na primeira infância, além de atendimento multiprofissional para o segmento. No entanto, a legislação é recebida com preocupação por especialistas da área.
Para Bruna Lídia Taño, doutora em Educação Especial e professora do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), embora traga em seu texto a intenção de proteger direitos, a lei é um exemplo de como o Estado pode “encobrir problemas estruturais com soluções simplificadas”.
Apesar de reconhecer a boa intenção da proposta – garantir direitos a pessoas com TDAH –, a especialista alerta que legislar com base em diagnósticos individuais pode dificultar a construção de uma política pública verdadeiramente inclusiva. “É uma lei genérica, que mais reforça a medicalização da vida do que de fato propõe ações concretas para uma educação inclusiva e baseada na garantia da equidade”, afirma.

Aprovada em meio a uma onda crescente de propostas específicas para transtornos e deficiências, a nova lei capixaba estabelece diretrizes como o diagnóstico precoce, acesso a tratamento na rede pública, capacitação de profissionais e garantia de matrícula em escolas regulares. Também reafirma o TDAH como condição definida por manuais diagnósticos internacionais, como o CID-10 e o DSM-5.
A professora aponta que o uso da classificação diagnóstica como eixo central de políticas públicas é reducionista. “A categorização do TDAH tem um propósito técnico, que é facilitar a comunicação entre profissionais e gerar estatísticas, mas não deveria servir para pautar o modo como a escola se organiza. O risco é mascarar violações de direitos muito mais complexas”, considera.
Na avaliação da profissional, a principal fragilidade da legislação está no seu ponto de partida: a classificação biomédica como base para a formulação de políticas públicas. “Não há um jeito único de ser uma pessoa com TDAH. Assim como não há um único jeito de ser autista, depressivo ou qualquer outro diagnóstico. Quando partimos da ideia de que é o diagnóstico determina o acesso a direitos, estamos negando a complexidade da vida humana”, alerta.
Bruna também questiona o foco da lei: “Por que ainda precisamos de um diagnóstico para garantir que uma criança tenha acesso à escola, ao apoio pedagógico, à atenção de qualidade? A equidade verdadeira seria olhar para as condições sociais, econômicas e afetivas de cada criança”, argumenta. Ela defende que legislações como essa acabam atendendo muito mais a uma lógica de mercado – o da produção de diagnósticos e da medicalização – do que às necessidades reais das populações vulnerabilizadas. “O diagnóstico pode funcionar como uma cortina de fumaça”, afirma.
Segundo a especialista, há casos em que o diagnóstico de TDAH aparece como explicação única para situações que também têm origem em violação de direitos, abandono de políticas públicas, racismo, violência e desigualdade. “Pensa em uma criança que vive numa casa onde há violência doméstica, ou em uma comunidade constantemente atravessada por conflitos armados. Essa criança tem o direito de se concentrar? De prestar atenção? Se ela está em estado de alerta constante, é justo que a escola diga que ela tem TDAH? Ou seria o caso de olharmos para o contexto em que ela vive?”, pontua.
A leitura medicalizante empobrece o olhar pedagógico e social sobre as crianças, destaca: “Quando tudo vira transtorno, a responsabilidade pela exclusão deixa de ser do Estado, da escola, da sociedade – e passa a ser do corpo da criança”. Bruna chama atenção para os impactos da medicalização na trajetória escolar e de vida das crianças, como evidenciam situações acompanhadas em sua pesquisa com crianças acolhidas institucionalmente. “Muitas vezes, o diagnóstico e a medicação dificultam a reintegração familiar ou a adoção. É como se aquele corpo passasse a carregar um carimbo permanente”, relata.
Na escola, o efeito também é lesivo e torna as instituições educacionais reféns do saber médico, observa: “A escola diz: ‘eu não sei lidar com esse menino, preciso de um laudo’. Se a professora acha que precisa do médico para saber o que fazer, ela é destituída de seu saber. E a criança perde o vínculo com o processo educativo”, ressalta.
Com base no que estabelece a Nota Técnica nº 4/2014 do Ministério da Educação, aponta, cabe à própria escola – por meio de avaliação pedagógica – decidir se uma criança precisa de atendimento educacional especializado, e não a um médico. “Mas os municípios, inclusive Vitória, insistem em pedir laudo. Isso desrespeita a legislação e enfraquece o papel da escola”, afirma.
Outra proposta defendida pela professora é a adoção da avaliação biopsicossocial da deficiência, uma metodologia construída por um grupo de trabalho interministerial, como orienta a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, baseada na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Essa abordagem considera não apenas a condição clínica, mas as barreiras sociais e contextuais que impedem a participação plena da pessoa na sociedade. “Uma criança em cadeira de rodas na Praia do Canto não enfrenta os mesmos desafios de uma criança em cadeira de rodas no Morro do Jaburu. Há um contexto que define o grau de exclusão”, destaca.
Ela pondera que, apesar de compreender a angústia de famílias que buscam o diagnóstico como porta de entrada para direitos, “é ilusório achar que isso resolve”. Para Bruna, a solução está na construção de políticas públicas orientadas pelo princípio da equidade: garantir mais para quem mais precisa, não porque essa pessoa tem um laudo que a “protege”, mas porque aquela vida exige cuidado, reparação e acolhimento.
“Não estou negando os direitos das pessoas com deficiência. Estou dizendo que uma lei para cada transtorno não resolve o desafio de uma sociedade profundamente desigual. A gente precisa de uma política inclusiva, democrática, solidária – que não trate as pessoas como códigos diagnósticos, mas como sujeitos de direito”, finaliza.