Domingo, 19 Mai 2024

Como o diabo gosta

 

Esta reportagem foi originalmente publicada na edição número 26, Revista Século, em abril de 2002.
 
Texto: Rogério Medeiros
Ilustrações: Wagner Veiga


"Qual é o mais feroz dos animais?",

perguntou o poeta ao sábio.

"O homem".

"Por quê ?"

"Pergunte a ti mesmo. És também uma fera que

tem em si mesmo outras feras e por desejo de

poder quer tirar a vida de todas as outras feras".

(Diálogo extraído do romance

Baudolino, de Umberto Eco)

 

Em matéria de mortes, ele só não superou o Coronel Bimbim (SÉCULO nº 21). Mas, em compensação, no que tange a execuções, nenhum outro bamba do gatilho ganhou dele. Não era do seu estilo encomendar mortes, como fazia Bimbim. Ele mesmo costumava fazer o serviço. E suas mortes tinham sempre uma marca inconfundível: um certeiro tiro na cabeça.
 
Esse matador implacável, que aterrorizou o sertão capixaba por quase três décadas, do final de 40 e mais 50 e 60, atendia pelo nome de tenente José Scárdua. Se o Coronel Bimbim, com o qual se juntou em muitos episódios de violência, era o rei do crime, certamente o tenente poderia até ter sido o seu príncipe regente.
 
Imperou por muito tempo pelo temor que infundia. Ficaram visíveis na sua história os relevantes serviços prestados à aristocracia rural, ajudando-a, inclusive, a manter-se no poder por muitos anos através de governos do PSD. Na região do rio Doce, principal cenário do crime no Espírito Santo, o governador Carlos Lindenberg, por exemplo, só ia lá na sua companhia.
 
Guilherme Ayres, companheiro político do governador Lindenberg e que em algumas ocasiões se fez até de seu motorista, presenciou uma dessas espetaculares execuções do tenente José Scárdua. Foi na cidade de Baixo Guandu, num dia bem chuvoso, levando o governador para inaugurar o prédio dos Correios e Telégrafos. Foram de jipe por causa da precariedade das estradas da época. Guilherme ao volante, o governador no banco do carona e o tenente José Scárdua no banco de trás.
 
O clima era tenso na cidade, estavam próximas as eleições. Quando o jipe se aproximou do prédio dos Correios e Telégrafos, o tenente ordenou ao Guilherme passar direto e fazer a chegada pela outra rua. Voltando pelo sentido contrário da chegada, ele só viu quando o tenente empurrou um pouquinho o governador para a frente e atirou num moço que estava parado montando um cavalo, de chapéu e capa gaúcha (como são conhecidas ainda hoje no interior essas capas grossas).
 
O cavaleiro caiu de cima do animal, mas ao se estatelar no chão uma carabina rolou debaixo da capa. O tenente e o governador trocaram olhares cúmplices e discretos sorrisos. Era mais um que o tenente abatia com um tiro certeiro na cabeça. Em seguida, o governador pôde inaugurar o prédio dos Correios e Telégrafos com a maior segurança e tranqüilidade.
 
Mas não era só esse tipo de serviço que o tenente José Scárdua prestava a Carlos Lindenberg e ao seu PSD. Nas eleições ele era também um fator de votos. Botou muito adversário do PSD para correr e mudou o rumo de muitos votos. Pesava mais do que muito chefe político do PSD. Era um período em que o grosso do eleitorado ainda se mantinha no interior. Na época, Vitória era apenas um aglomerado de funcionários públicos e empregados do comércio.
 
Concessões políticas, o tenente José Scárdua só fazia para o pessoal do Coronel Bimbim. Primeiro, porque era ajuizado o suficiente para não bater de frente com um homem que controlava a vida dos outros na região do rio Doce e norte do Estado. E depois o tenente tinha o hábito de executar sozinho as suas vítimas. Face a essas e outras circunstâncias, os dois se uniram, a tal ponto que viraram, inclusive, compadres.
 
Em matéria de patentes, é bom logo explicar que enquanto Scárdua tinha a sua por causa da carreira militar (pertencia aos quadros da Polícia Militar do Estado), o Bimbim era coronel de patente dada pelo povo da roça, pelo mandonismo que exercia na sua região de influência. E o tenente José Scárdua se fez seu parceiro e cobiçado pela aristocracia rural por conta de, ainda jovem, como soldado de polícia, haver abatido uns e outros com certeiros tiros. Depois, na perseguição a ladrões de cavalo, sua arma era a mais temida.
 
Pontarias à parte, a verdade é que essa relação entre Scárdua e Bimbim mudou o rumo político do Estado. Bimbim tinha no Espírito Santo, já que a sede dele era em Aymorés, MG, um sobrinho fazendo política contra o PSD, de Carlos Lindenberg: Sebastião Cypriano do Nascimento, o Totó, que foi deputado estadual pela UDN.
 
Apesar de o sobrinho do coronel Bimbim abusar algumas vezes do PSD em Afonso Cláudio, onde fazia política, o tenente José Scárdua não deixou que nada lhe acontecesse. Até a hora em que outros valentões, a serviço do seu principal inimigo de Afonso Cláudio, o ex-deputado Pedro Saleme, quiseram matá-lo. Ele evitou.
 

Debaixo da asa do tenente José Scárdua e do nome do tio, o Totó barbarizou o PSD em Afonso Cláudio, a ponto de botar o governador Carlos Lindenberg para correr num comício na sua terra. E Totó acabou influenciando na derrota que o PSD sofreu para a oposição no ano de 1954. Disputavam o governo Eurico de Aguiar Sales pelo PSD e Francisco Lacerda de Aguiar - o Chiquinho - pela oposição.
 
Nessa eleição, o tenente José Scárdua não se mexeu. Ficou neutro. E o fato dessa sua neutralidade correr no interior, deu campo para que o Coronel Bimbim, que nunca morreu de amores pelo governador Carlos Lindenberg, agisse em favor do candidato de oposição. A neutralidade de Scárdua nesse pleito, que veio a quebrar, inclusive, uma longa permanência do PSD no governo, atendeu a duas circunstâncias básicas: o interesse do Coronel Bimbim na derrota do PSD e o fato de estar disputando pelo PSD o governo uma figura que não via com bons olhos a relação do militar com o seu partido.
 
Aliás, vale ainda registrar: o tenente José Scárdua, que entrou na Polícia Militar como soldado raso, chegou a tenente em seguidas promoções nos governos do PSD.
 
Mas foi dentro desse mundo de Bimbim, Totó e PSD que o tenente José Scárdua virou uma lendária figura de terror para pequenos proprietários, especialmente os que tinham suas terras cobiçadas pelas elites rurais ou em conflitos, situações absolutamente comuns na questão territorial do Estado. Do ponto de vista das elites rurais, ele foi efetivamente o seu grande guardião e justiceiro.
 
O conflito de terra sempre existiu no Espírito Santo, um Estado de pequenas propriedades pela natureza de sua colonização, toda ela feita por oriundos europeus, acostumados a chamada propriedade força, onde só se emprega a mão-de-obra familiar. A maior parte desses conflitos de terra ocorreu nas regiões da pecuária, diante da exigência da ampliação das propriedades.
 
Houve momentos nesta luta territorial em que foi necessário dar ao tenente José Scárdua credenciais oficiais para agir. Por mais de uma vez ele exerceu o cargo de delegado de polícia de Baixo Guandu. Neste posto ele foi implacável, pois matava às claras, como um caso ocorrido dentro do principal café da cidade, freqüentado por homens de negócios e políticos.
 
O tenente foi avisado de que estava chegando gente na cidade para matá-lo. Ele distribuiu seus soldados nos postos-chave de observação. Não demorou a chegar um estranho à cidade. E o pior: ele perguntava os lugares freqüentados pelo tenente Scárdua. O soldado chegou na delegacia com a notícia do estranho.

O tenente saiu com o soldado à cata do forasteiro. O soldado o viu sentado na mesa do bar tomando um cafezinho. O café na hora estava muito cheio. O tenente disse então para o soldado. "Eu vou entrar e vou ficar no fim do balcão de frente para as mesas. Você, quando entrar no bar, chama alto pelo meu nome". E assim procedeu o soldado: "Tenente José Scárdua!" O cara levantou o rosto surpreso em direção ao soldado (em trajes na hora). O tenente sacou do seu revólver e acertou o centro da testa do sujeito, como sempre fez com a suas vítimas.

Mandou recolher o corpo e enterrar no cemitério na cova dos indigentes. Nunca procurou saber de onde veio e que propósitos o trouxeram ao lugar, e se estava realmente ali para matá-lo. Costumava dizer aos seus auxiliares nesses casos: "Pela dúvida, é preferível ele do que eu". E, assim como esse desconhecido, muitos outros foram mortos pelo seu famoso Shmith & Wesson , contramarca, cabo de madrepérola.
 
Morte terrível mesmo foi com o cara que atirou nele quando ele estava desarmado e preso no quartel central da Polícia Militar, em Maruípe. O tenente pegou o sujeito depois e o trucidou, literalmente. Mas não vou contar agora essa barbaridade. Vou deixar para depois com receio de o leitor abandonar essa história pelo meio. É realmente pavorosa. E também porque esse episódio se encontra no contexto do racha do Sindicato do Crime, no qual vamos também entrar daqui a pouquinho mais.
 
Antes, vamos conhecer as alegações do tenente de só atirar na cabeça de suas vítimas. Dizia ele que, nessas condições, quando o tiro não matava, inutilizava de vez a vítima. Só deixou de atirar na cabeça daqueles que o traíram ou quando o caso era de vingança. Aí o tiro era na coluna para deixar a pessoa sofrendo numa cadeira de rodas. Há dois casos desses conhecidos: um detetive de polícia que o traiu e um ex-pracinha que espancou um afilhado dele numa sorveteria no centro de Vitória. Ambos penaram anos a fio numa cadeira de rodas.
 
Outro ponto ainda necessário para registro, tratando-se de costume dele: detestava que olhassem dentro dos seus olhos. O pistoleiro do Coronel Bimbim, Aponino Gomes da Silva, que andou com ele dando segurança ao Totó, falou que quando a pessoa olhava dentro dos olhos do tenente "ele estranhava e arrepiava". Mas tem sentido esse hábito na região em que vivia o tenente José Scárdua, pois, segundo o escritor Roberto Drumond, no seu livro O cheiro de Deus, que se passa lá, essa atitude é comum entre os habitantes:
 
"O Contestado - diz no seu livro Drumond - é onde ninguém olha nos olhos; lá, nem os amantes olham nos olhos, porque o olhar pode denunciar um segredo: um amor clandestino, um pecado, uma tocaia; então todos olham de banda, olham pro chão, desconfiados, e quem ousa desafiar a lei do Contestado é punido".
 

Aponino assegura que quem privava da relação com o tenente, como ele, não tinha realmente coragem de olhá-lo nos olhos. Aponino falou também da pontaria do tenente José Scárdua. Ele era capaz de jogar um limão para cima e acertá-lo. Errar um tiro ele só errou mesmo o do Reginaldo Paiva. Mas tem justificativa plausível. No exato momento do tiro o Reginaldo desceu da calçada para a rua. E o tiro, que tinha o endereço certo da sua cabeça, acabou furando apenas o chapéu dele.
 
Mas tratando-se do tenente José Scárdua, foi o seu único tiro perdido. Mas fatal, como também vão ver daqui a pouco. Por conta desse erro, inclusive, ele seria, mais tarde, também morto. A morte dele ocorre depois de muitas mortes feitas em parceria com o próprio Reginaldo e o Coronel Bimbim. Depois de anos de impunidade juntos, um racha na organização os dividiu.
 
Realmente, o racha do chamado Sindicato do Crime estabelece entre eles uma guerra sem trégua, dessas que não há sequer lugar para a chamada piedade cristã. O pior é que entre eles um conhecia a força do outro, daí ocorrer uma matança sem fim, iniciada na jagunçada e encerrada nas lideranças. E ela começou no justo momento em que o principal cabeça da organização, o Coronel Bimbim, descia à sepultura, em meados de 1964, no cemitério de Alto Capim, Aymorés (MG). O Sindicato do Crime cindiu-se em dois grupos: um sob a liderança do tenente José Scárdua e outro do fazendeiro Reginaldo Paiva.
 
O estopim da cisão foi a morte de  Neném Maria, um importante matador (talvez a expressão melhor a ser aplicada a ele seja a de terrível matador), que foi executado, a mando de Reginaldo Paiva, juntamente com dois irmãos fazendeiros, ligados ao tenente José Scárdua. Daí em diante foi uma sequência de mortes, espalhando terror na região de Baixo Guandu e adjacências.
 
A rotina dos dois grupos passou a ser de contar os seus próprios mortos e elaborar planos para eliminar os jagunços mais perigosos do inimigo. Para melhor se situar na guerra, o grupo de Reginaldo Paiva incorporou o major Orlando Cavalcante, que era quase tão temido no Estado quanto o tenente José Scárdua.
 
Juntaram-se ainda ao grupo de Reginaldo os irmãos Pinto, Antonio e João, dois fazendeiros barra pesada, com rosários de mortes também invejáveis nos seus currículos. Já o grupo do tenente José Scárdua passou a contar com o coronel Jadir Rezende, considerado um dos oficiais mais corajosos da Polícia Militar do Estado. E um jovem que viria, rapidamente, a ficar tão temido como o tenente José Scárdua por conta de sua pontaria: Josélio Barros.
 
A rotina das mortes logo mostraria que a guerra entre eles não passava de um grupo consolar sua morte com a morte de um inimigo. Vamos aos registros mas somente das principais figuras, até por falta de espaço para a reportagem: Antonio Pinto manda seus capangas invadirem a fazenda do pai de Josélio Barros para matá-lo. Na ausência de Josélio, tentaram matar o pai dele, que safou-se da morte por conta de um bom cavalo em que estava montado. O animal disparou ao estampido do primeiro tiro. Em represália, Josélio Barros matou os dois jagunços que atentaram contra a vida do seu pai, em seguida invadiu a fazenda do Antonio Pinto para matá-lo. Mas o ataque foi à noite, e Josélio não teve êxito. Ao contrário, deixou o local carregando dois de seus homens feridos em estado grave.
 
Na sequência, houve o atentado ao tenente José Scárdua. Foi na sua fazenda em Itapina (no ano de 1965). Usando um rifle ponto 30 com luneta, atingiram o tenente na boca. Mas ele não morreu. Ficou entre a vida e a morte por vários dias. Seus inimigos quiseram invadir o hospital onde estava, mas a polícia defendeu-o. Dois anos depois, prenderam os pistoleiros autores do atentado: Abel Alves de Brito e Getúlio Félix da Silva.
 
Como não podia deixar de ser, tiveram o mesmo destino dos demais: sepultados no cemitério.
 
Mil novecentos e sessenta e sete. Chega a vez do major Orlando Cavalcante. Ele é morto em Nova Almeida por três pistoleiros levados ao balneário por Josélio Barros. Por conta desse crime o tenente José Scárdua foi preso juntamente com o coronel Jadir Rezende. Como também foram presos Josélio e os três pistoleiros usados na morte do major.
 
Recolhido ao quartel de Maruípe juntamente com o coronel Jadir, o tenente José Scárdua sofre o mais ousado de todos os atentados nesta guerra entre os integrantes do antigo Sindicato do Crime. Foram matá-lo dentro do quartel, aproveitando-se da circunstância de ele se encontrar desarmado. O bando dos Paiva mandou de volta para o quartel um dos seus melhores pistoleiros, o soldado João da Luz.
 
Ele conseguiu ir servir no rancho e ser escalado para levar o café da noite para o tenente José Scárdua. Chegou com a bandeja e, na hora em que o tenente pegou a bandeja, um revólver surgiu por debaixo dela na mão do soldado, disparando em cima dele. Mas como o tiro foi muito próximo do tenente e o autor do disparo, apesar de considerado uma fera no ranking dos jagunços, tremeu também na hora, o tenente escapou da morte, mais uma vez.
 
(Esperem mais um pouco, ainda, para ver o que vai acontecer com esse jagunço).
 
Logo o grupo do Scárdua devolvia esse atentado abatendo a principal figura do grupo rival: Reginaldo Paiva, que foi morto em pleno dia na principal avenida de Baixo Guandu. Morreu na mão de um pistoleiro que veio especialmente de Barra de São Francisco para fazer esses serviços. Paulo Capeta (que como os outros foi depois caçado e morto).
 
O atentado a Scárdua e a morte de Reginaldo endemoniaram o ambiente e a cólera substituiu a estratégia de luta, levando a classe política, a qual eles sempre estiveram ligados, a intervir, buscando encontrar uma trégua entre os dois grupos. Os tempos também eram outros. O país já estava sob uma ditadura militar e a briga entre eles havia ganhado as manchetes dos jornais dos grandes centros. E o governo de Cristiano Dias Lopes Filho (1966-70), apesar de sua origem pessedista, havia feito uma verdadeira razia contra o banditismo no Estado.
 
A reunião foi puxada pelos senadores Raul Giuberti e Dirceu Cardoso (deputado federal na época) e contou com a presença do coronel Aristides Pereira Martins, representando o tenente José Scárdua, Maneco e Renato Paiva (irmão de Reginaldo), juntamente com Antonio Pinto, pelo outro grupo, mais os fazendeiros Odilon Milagre, Carlyle Passos e Pedro Ribeiro, o comerciante José Ceglias Barbosa e o advogado José Andrade (em cujo escritório se deu a reunião).
 
Durante dois anos a paz reinou por completo. A princípio, o tenente José Scárdua ausentou-se do Estado. Andou morando no Rio de Janeiro e em São Paulo. Josélio de Barros foi fazer propriedade agrícola na Amazônia. Renato Paiva (se encontra ainda hoje por lá) foi residir definitivamente na sua fazenda, em Carlos Chagas (MG).
 
Mas em 1971 a paz foi quebrada com o assassinato de Antonio Pinto, tido como um dos mandantes dos atentados ao tenente José Scárdua. Ele foi morto numa emboscada, quando, na companhia de seus vaqueiros, inspecionava o gado em sua fazenda. A cena de sua morte, como foram as demais nesta guerra entre esses dois grupos, foi também cinematográfica.
 
Antonio Pinto, quando ouviu o estampido do primeiro tiro, tentou disparar com seu cavalo, pois andava desarmado desde a data da trégua acertada com os seus inimigos. Mas não conseguiu evitar o segundo tiro, que foi mortal. Ele morreu na hora mas o seu cavalo o arrastou até a entrada da sua casa, onde foi recolhido pelos familiares.
 
Pouco mais de 15 dias depois da morte de Antonio Pinto, o tenente José Scárdua dava ao jornal "A Gazeta" a única entrevista de toda a sua vida. Dizia ele: "Eu considero uma injustiça meu nome ser envolvido na morte do fazendeiro Antonio Pinto. Espero que Deus me conceda o direito de viver tranquilo junto de minha família, criando os meus filhos longe desse ambiente de crimes que tem envolvido o Espírito Santo".
 
"Como homem de palavra, nunca entraria numa situação do tipo deste crime de Antonio Pinto, depois do pacto de honra que fiz, do qual participaram, além do fazendeiro recentemente fuzilado, o sr. Renato Paiva e sua família. Como encarar minha família e meus amigos se fugisse a palavra empenhada de maneira tão veemente?" (veja box ao lado).
 
Voltemos a sequência cronológica dos fatos. Por ocasião da morte de Antonio Pinto, o tenente José Scárdua havia já se mudado para a rua São João, na Vila Rubim. E aos sábados costumava frequentar a mesma barbearia. Hábito que não interrompeu nem por ocasião da morte de Antonio Pinto, apesar da advertência dos amigos. O coronel Jadir Rezende chegou a avisar da presença na cidade de um filho de João Pinto, irmão do Antonio, que o coronel encontrou próximo a loja do Edgard Rocha (hoje Dadalto, na rua do Comércio).
 
Por desconhecer que nessas guerras particulares fica sempre a herança do ódio, ele não levou em conta as advertências dos amigos e foi morto, nesta barbearia da rua São João, num sábado, dia 3 de fevereiro de 1973, quando lá esteve mais uma vez para fazer a barba. Dois anos, portanto, após a morte de Antonio Pinto. Matou-o um pistoleiro disfarçado de mendigo, que aproximou-se da barbearia para pedir esmola. Na hora, Scárdua olhou para ele e deu as costas, com alguma repugnância. Na mão do mendigo havia um saco e, dentro dele, um revólver 38 engatilhado. O tiro do mendigo estrondou-lhe na nuca e saiu pelos olhos. Ele ainda tentou sacar o seu 38SW cabo de madrepérola. Mas em vão.
 
Para os amigos, como o coronel Jadir Rezende, ele não teve a bela morte que previu para si – que seria num duelo contra o principal inimigo. Morreu nas mãos de um pistoleiro disfarçado de mendigo. Na cartilha dos justiceiros é desonroso ser morto por um pé-de-chinelo, que dirá por um pistoleiro que não tem a coragem de mostrar o rosto.
 
Em verdade, as circunstâncias da sua morte faltaram com a chamada condescendência da posteridade. Muito embora esse cenário de mortes, que acabamos de contar não seja nada alvissareiro para misturar a filosofia de Montaigne com ele, não há como não deixar de recorrê-lo quando ele diz: "É necessário enfrentar inimigos vitoriosos para morrer de morte honrosa". Algo que faltou realmente no epílogo da história do tenente José Scárdua.

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