Polícia Militar concentra maioria dos casos e triplicou a taxa nos últimos anos

Entre 2020 e 2024, ao menos 23 profissionais das forças de segurança morreram por suicídio no Espírito Santo. O número, apresentado pelo novo Boletim do Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (Ippes), divulgado nesta semana, apesar de ainda subestimado, segundo os pesquisadores, é apontado como uma evidência da falta de políticas estruturadas de promoção da saúde mental entre servidores da área.
Na Polícia Militar, onde estavam a maioria dos trabalhadores que perderam a vida, não existem profissionais de saúde dedicados à prevenção e ao cuidado psicológico, revelou o estudo, que se baseou em levantamento de dados oficiais obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) com a polícias civis, militares, penais, órgãos de perícia, guardas municipais, bombeiros, forças federais e guardas das capitais. Ainda assim, o próprio instituto afirma que os números “devem ser consideravelmente maiores”, devido à subnotificação e ao fato de parte das instituições não registrar nem divulgar adequadamente esses episódios.
No conjunto dos dados nacionais, o boletim indica que 818 profissionais de segurança pública ativos morreram por mortes autoprovocadas nos últimos cinco anos. Mais da metade das mortes ocorreram entre policiais militares: 464 suicídios, além dos 36 casos combinados de homicídio e suicídio. Assim como no cenário nacional, a PM capixaba concentrou mais da metade das mortes ao longo da série história. Foram oito registros entre 2020 e 2024, considerando militares da ativa: dois em 2020, um em cada ano de 2021, 2022 e 2023, e três em 2024. Entre os policiais da reserva, mais oito casos nesse mesmo período período (dois em 2021, um em 2022, três em 2023 e dois em 2024).
Em março de 2024, a Associação das Praças da Polícia e Bombeiro Militar do Espírito Santo (Aspra-ES) lamentou a morte por suicídio de um policial militar da reserva e classificou, em nota publicada em seu portal oficial, como “uma tragédia anunciada. A entidade atribui o quadro a uma combinação de estresse laboral, traumas acumulados, pressões profissionais, problemas pessoais e baixos salários, fatores apontados como impactos diretos sobre a saúde mental.
Entre outras corporações, os números também revelam um problema persistente, com três casos registrados de policiais civis e servidores da perícia técnica (duas em 2020 e uma em 2024); dois casos entre policiais penais (2020 e 2023) e um suicídio registrado no Corpo de Bombeiros, em 2022. A Guarda Municipal de Vitória, única do Estado incluída no boletim que analisou apenas as capitais, registrou um caso em 2022. Outro dado crítico revelado pelo levantamento foi o crescimento da taxa de suicídio na Polícia Militar, que quase triplicou entre 2023 e 2024, passando de de 1,3 para 3,8 por 10 mil habitantes.
Além das mortes, o boletim também identificou 29 tentativas de suicídio no Estado entre 2020 e 2024, das quais 25 envolveram policiais militares e quatro foram registradas pela Polícia Civil e Perícias Técnicas. O padrão estadual acompanha a tendência nacional, em que as polícias militares concentram 91% de todas as tentativas no país. No período analisado, o Brasil registrou mais de 1,4 mil episódios, sendo 1,3 mil entre PMs. A Polícia Militar do Paraná sozinha respondeu por 844 episódios, o que corresponde a 57% do total nacional.
Um dos eixos do relatório foi mapear a existência de profissionais de saúde mental nas instituições de segurança. Os resultados mostram “grandes lacunas” e forte desigualdade entre corporações e estados. No Espírito Santo, as instituições contam com dois psicólogos e um assistente social no Corpo de Bombeiros; cinco profissionais na Polícia Penal, incluindo dois psicólogos, um assistente social e três trabalhadores de outras áreas, como educação física, enfermagem e nutrição; e nenhum nas polícias Militar e Civil e na Perícia Técnica. A Guarda Municipal de Vitória conta com um psicólogo.
O relatório destaca que, em boa parte do país, o cenário é semelhante, com carência “generalizada” de psiquiatras e insuficiência de psicólogos e assistentes sociais. “Encontramos grandes lacunas na disponibilidade desses profissionais, a depender da instituição e da unidade federativa”, afirma o boletim. “Por vezes, a quantidade de profissionais é insuficiente para atender a toda demanda necessária”, aponta.
Para o instituto, o sofrimento psíquico crônico permanece como um desafio estrutural e urgente. “O Brasil ocupa o ranking entre os países com maior índice de ansiedade do mundo”, afirma a assistente social Thamires Costa Meirelles dos Santos, uma das especialistas que contribuiu no estudo. Ela destaca ainda o agravamento das desigualdades raciais como fator determinante. “Após a pandemia da Covid-19, observou-se que a chance de suicídio entre jovens negros aumentou 45% em relação aos jovens brancos”. Para a autora, “a estrutura de desigualdade racial existente no Brasil aumenta as possibilidades de adoecimento e sofrimento psíquico da população negra”.
A assistente social também chama atenção para a ausência do quesito raça-cor nos registros das instituições, o que prejudica a formulação de políticas específicas. “Como combater o racismo e a exclusão como fatores produtores de adoecimento psíquico sem considerar o perfil étnico-racial dos servidores?”, questiona. Ela avalia que o não preenchimento desse dado expressa práticas institucionais de racismo. “As barreiras de acesso e o não preenchimento do quesito raça-cor ilustram como o racismo opera na dinâmica institucional”, acrescenta. A especialista lembra que a Portaria nº 344/2017 torna obrigatório registrar a raça-cor nos atendimentos de saúde, com o objetivo de melhorar a análise epidemiológica e subsidiar políticas públicas.
A psicóloga Larissa Paes de Omena Soares, também autora do boletim, contextualiza que somente a partir de 2019 os suicídios de agentes de segurança passaram a ser incluídos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Para ela, isso representou uma mudança importante. “O agente de segurança passa a ser visto não apenas como o ‘algoz’, mas também como vítima da violência urbana”.
O quadro de subnotificação, falta de equipes especializadas, agravamento das desigualdades raciais e crescimento das taxas em corporações como a Polícia Militar, revelado pelo Boletim IPPES 2025, apontou para a urgência de políticas de cuidado estruturado e contínuo, que superem esse histórico de negligência institucional no Espírito Santo e no Brasil.

