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Estado tem alta no índice de racismo e não contabiliza injúria racial

Dados do Anuário de Segurança mostram aumento de 62% nas denúncias em 2024

Dados do Espírito Santo compilados no Anuário de Segurança Pública de 2025 revelam um aumento de 62% nos registros de racismo, passando de 165 para 270 ocorrências. A taxa saltou de 4 para 6,6 casos por 100 mil habitantes em comparação com o ano anterior, de 2023. Dentro do universo dos crimes de racismo, a modalidade motivada por homofobia e transfobia também registrou um aumento significativo no Espírito Santo. Os casos subiram de 39 para 59, uma variação de 50,3%, e a taxa passou de 1,0 para 1,4 ocorrências por 100 mil habitantes. A subnotificação da injúria racial, porém, impede uma análise completa da dimensão do problema.

O Espírito Santo e o Rio de Janeiro foram os únicos estados que não apresentaram dados sobre injúria racial, uma falha que o advogado criminalista e militante do Movimento Negro Unificado (MNU) no Espírito Santo, Raoni Vieira Gomes, considera “muito” reveladora. “A Secretaria de Segurança do Espírito Santo não deu importância para isso. Não foi relevante catalogar os dados de injúria racial”, afirma.

Bruno Miranda

Para o advogado, o aumento das denúncias de racismo pode não refletir, porém, um aumento real na ocorrência dos fatos, mas sim uma maior conscientização da população e da busca por justiça. Por outro lado, ele alerta para subnotificação, o que é conhecido na criminologia como “cifra oculta” – crimes que acontecem em grande número, mas que sequer chegam a ser informados ao sistema de defesa.

O Anuário produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública corrobora essa perspectiva, ao apontar que “a busca por canais oficiais de denúncia tem aumentado, pois para a formalização da comunicação desses crimes, a vítima precisa deliberadamente descrever o ocorrido para um ente estatal”. A percepção da vítima de ser alvo de um insulto racial envolve processos individuais e coletivos de tomada de consciência racial, além de ser impulsionada por um contexto em que a agenda racial tem ganhado visibilidade no debate público e jurídico, indica o relatório.

Um outro ponto levantado na publicação é a “ausência de reconhecimento da violência vivida cotidianamente, expressa na fragilidade dos dados oficiais”. Isso representa uma “barreira mais do que simbólica”, um “obstáculo efetivamente concreto no acesso a direitos”, pois se a violência não é reconhecida pelos dados, não pode ser nomeada, e se não pode ser nomeada, não pode ser enfrentada com políticas específicas, reforça o documento. A falta de padronização na forma de registrar e agrupar os crimes de injúria racial e racismo entre os estados também agrava esse problema, gerando distorções nos dados consolidados.

Raoni destaca que a realidade reflete o índice de violência contra a população negra no Brasil, onde representa 79% das mortes violentas intencionais e 82% das mortes intencionais causadas pela polícia. Além disso, observa o impacto da formação estrutural das instituições, que tendem a ser condescendentes com o racismo, o que é evidenciado pela falta de notificação dos dados de injúria racial no Estado, ou mesmo pela atuação da polícia de Renato Casagrande (PSB), denunciada por uma série de episódios de ações violentas. Como exemplo, aponta a truculência contra trabalhadores da área de asseio e conservação em manifestação por melhores condições realizada na portaria da ArcelorMittal Tubarão nessa quarta-feira (23).

Em comparação com outros estados do Sudeste, o Espírito Santo apresentou uma taxa de racismo maior que Minas Gerais (que passou de 1,8 para 1 entre 2023 e 2024), mas menor que São Paulo (que saltou de 10,5 em 2023 para 17,9 em 2024).

A lacuna não está apenas nos dados, mas na estrutura da justiça brasileira, reitera o militante do MNU capixaba. “O próprio Judiciário é branco. O Ministério Público é branco. Falta espaço de inclusão em todos os setores”, observa. Ele cita o autor Adilson Moreira, que aponta um “problema sério judicial pelos juristas que pensam como um branco”, com uma “noção de igualdade pouco subjetiva”, que não compreende a subalternidade imposta às minorias. “O racismo é uma questão sobre poder”, resume, destacando a defesa comumente apresentada nos tribunais: “não tive a intenção de ofender, não sabia que ia se ofender”, “sempre reduzindo a dor e a violência que é uma ofensa racial”, descreve.

A saída apontada desde a formação do movimento negro é a educação antirracista, com a cobrança pela implementação da lei federal que determina o estudo das origens africanas e negras nos currículos escolares. “Isso não é implementado”, denuncia Raoni, em referência ao “apagamento construído de forma organizada e sistemática” dentro das instituições.

Apesar do histórico de luta por direitos da militância por equidade racial, como a tensão exercida na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 que resultou na previsão de tornar o crime de racismo imprescritível e inafiançável, a conquista das ações afirmativas e as cotas e a busca por ampliar essas políticas, a solução para “um sistema global, fruto da supremacia branca”, não pode recair apenas sobre as vítimas, defende o militante. “É preciso lembrar que o racismo é um problema do branco, uma criação do branco. Então, às vezes, atribuir ao movimento negro que apresente soluções para acabar com o racismo é você colocar a vítima na função de apontar para o seu algoz o que deve fazer”, afirma.

Tomaz Silva/Agência Brasil

‘Falta de padronização’

Racismo e injúria racial são crimes distintos na legislação brasileira — ainda que ambos envolvam discriminação racial. A principal diferença está no alvo da violência e na forma como ela se manifesta.

O crime de racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, abrange atos motivados por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Atinge geralmente um grupo ou coletividade — como quando se impede o acesso de pessoas negras a determinado espaço ou se difunde discurso de ódio contra uma etnia inteira.

A injúria racial, antes tratada como uma forma qualificada de injúria no art. 140, §3º do Código Penal, passou a integrar, desde 2023, a própria Lei do Racismo. O novo artigo 2º-A define a injúria racial como ofensa dirigida a uma pessoa específica, com base em elementos relacionados à sua raça, cor, etnia, religião ou origem.

Com essa mudança, a injúria racial passou a ser reconhecida legalmente como uma forma de racismo. No entanto, os sistemas de registro dos estados ainda estão em fase de adaptação — o que tem gerado confusões na forma de classificar e contabilizar os casos.

Em alguns estados, a injúria racial continua sendo registrada com base no artigo 140 do Código Penal, mesmo que o dispositivo tenha perdido validade para esse tipo penal. Outras unidades da federação já adotam exclusivamente a nova redação da Lei nº 7.716/1989. Em alguns lugares, os registros de injúria racial são somados aos de racismo; em outros, seguem separados.

Essa falta de padronização dificulta a consolidação de dados confiáveis sobre a prática do racismo no país. Segundo a Nota Técnica “Racismo e Injúria Racial: A Produção e Análise de Dados sobre Crimes de Ódio no Brasil”, publicada em julho de 2024 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, a inconsistência nos registros pode subnotificar ou distorcer os números, prejudicando as políticas de enfrentamento à violência racial.

Política de ‘encobrimento’

A legislação brasileira em relação ao racismo tem evoluído desde a definição como crime inafiançável e imprescritível na Constituição Federal de 1988. No ano seguinte, a Lei Caó (Lei nº 7.716) regulamentou esse artigo, definindo crimes de discriminação. Em 1997, a injúria racial foi incluída no Código Penal. Mais recentemente, decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) foram marcos importantes: em 2019, a homotransfobia foi equiparada ao racismo, e em 2021, a injúria racial também. A Lei nº 14.532, de 2023, consolidou a injúria racial como racismo na legislação, transferindo-a do Código Penal para a Lei do Racismo.

Apesar dessas mudanças, o Anuário destaca que a equiparação jurídica da injúria racial ao racismo “atendeu a insatisfações trazidas na esfera pública por ativistas do movimento negro.” Antes da lei de 2023, “o registro de uma ocorrência como injúria era o equivalente à impunidade”, favorecendo o infrator que podia pagar fiança e ver o crime prescrever. Contudo, mesmo com a nova legislação, “a cultura em torno do esvaziamento da ofensa racial prevalece”. Isso porque, enquanto as vítimas nomeiam a ocorrência como racismo, “os que transcrevem a violência seguem interpretando, sem neutralidade, e se valendo do paradigma normativamente superado, porém ainda latente, que tenta encobrir o racismo”.

Diante do aumento das denúncias e da subnotificação, ganha força a tese da violência institucional. “Ao invés de assistirmos à eliminação de barreiras para o enfrentamento ao racismo – que existe e que tem seu reconhecimento cada vez mais reivindicado pelas vítimas –, o que temos visto é o robustecimento de estratégias institucionais que bloqueiam a superação desse estado de coisas”, alerta o Anuário.

De acordo com o relatório, a ausência de dados, especialmente no caso da injúria racial no Espírito Santo, demonstra uma “política ativa de desinformação” que “afasta a produção de evidências” e impede a formulação de políticas públicas eficazes. A população negra, além de sofrer a violência racial, ainda precisa lidar com a ineficácia do sistema em reconhecer e registrar essa violência, desonerando as instituições de suas responsabilidades e deixando as vítimas à própria sorte.

Como pontua a publicação, essa fragilidade representa “uma barreira mais do que simbólica” e um obstáculo concreto ao acesso a direitos, especialmente quando, ao circular pelos espaços públicos, a população negra não têm sua humanidade reconhecida – um requisito básico para serem tratadas como sujeitos de direitos. O alerta é que quando a violência não é reconhecida institucionalmente, ou seja, quando os dados não a registram, ela “não pode ser nomeada” e, sem ser nomeada, “tampouco pode ser enfrentada”, reitera o documento, em defesa de que apenas o reconhecimento público e oficial dessas violências pode permitir a criação de políticas específicas para o enfrentamento do racismo.

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