Mulheres destacam desafios do governo para o enfrentamento às violências de gênero

O Governo do Estado lançou, nesta segunda-feira (2), o novo Pacto Estadual pelo Enfrentamento às Violências contra as Mulheres e Prevenção ao Feminicídio, com diretrizes e metas que vão até 2028. Para a representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher do Espírito Santo (Cedimes), Beth Vasconcelos, a iniciativa enfrenta desafios de articulação e efetividade: “O pacto em si não é ruim, a implementação dessas políticas é que é o problema”, destacou.
O documento, que reúne diretrizes e metas para o período até 2028, foi construído, segundo o governo estadual, com base em escuta ativa da sociedade civil e formulação participativa junto com órgãos e instituições. Foram definidas 124 ações distribuídas em oito eixos temáticos, com metas que abrangem desde o fortalecimento da rede de atendimento e estratégias de prevenção ao feminicídio até a promoção da autonomia das mulheres e o enfrentamento de violências em contextos diversos, como o racismo, o capacitismo, a LGBTfobia e o etarismo.
Durante o evento de lançamento, os municípios de Serra, Vitória, Vila Velha e Cariacica assinaram formalmente adesão ao pacto, e a Secretaria Estadual das Mulheres (SESM) aponta que a expectativa é de que mais municípios se juntem à iniciativa nos próximos meses.
Beth avalia que para que o pacto funcione na prática, é essencial a atuação em rede entre os diversos órgãos do poder público e a adesão efetiva dos municípios. “Precisa ter uma rede para a política funcionar. Há lugares onde a política funciona com uma rede muito boa e outros não, criando entraves dentro do próprio governo e desafios para os municípios”.
Ela acrescenta que o pacto existe desde 2011 e é atualizado a cada quatro anos, mas tem município que nunca o assinou. “Outra dificuldade são algumas localidades rurais e com menos de 15 mil habitantes, com quatro secretarias, onde é mais difícil também funcionar”, apontou. Além disso, reforça a necessidade de fortalecimento dos conselhos municipais: “Nem todo município tem Conselho da Mulher”, observa, apontando a falta de vontade política como mais um obstáculo ao enfrentamento à violência contra as mulheres.

A conselheira mencionou ainda dificuldades específicas da gestão estadual e criticou a gestão da Secretaria Estadual das Mulheres (Sesm), conduzida por Jacqueline Moraes. “Muitas coisas o conselho fica sabendo pela mídia, quando na verdade, todas as ações deveriam passar por ele”, afirmou, ressaltando que a secretaria “precisa atuar para garantir que a política seja efetivada”.
O documento também destaca entraves à efetividade das políticas públicas, como a persistência de uma cultura machista e misógina, que tende a naturalizar e responsabilizar as mulheres pela violência sofrida; a subnotificação dos casos, que dificulta a obtenção de uma dimensão real do problema; a falta de estrutura adequada para o atendimento e o insuficiente investimento em políticas públicas; e a ineficiência do sistema de justiça, que favorece a impunidade e desestimula as denúncias.
O pacto aponta ainda desafios específicos enfrentados no contexto rural, como a distância dos centros urbanos; a dificuldade de acesso à informação e aos serviços de atendimento; e a maior influência de costumes e tradições que podem legitimar a violência. Destaca o uso da tecnologia como meio para a prática de diversas formas de violência contra as mulheres, como o cyberbullying, o vazamento de fotos íntimas e o assédio online.
As ações do pacto estão organizadas da seguinte forma: Eixo 1 – Pilares de Atuação: 20 ações, entre elas campanhas preventivas e iniciativas de educação permanente e continuada; Eixo 2 – Ampliação e fortalecimento da rede de serviços para mulheres em situação de violência: 33 ações, que incluem medidas para expandir os serviços especializados de atendimento, ampliar a capilaridade da aplicação da Lei Maria da Penha e fortalecer a rede de proteção; Eixo 3 – Garantia da segurança cidadã e acesso à justiça: 16 ações; Eixo 4 – Garantia dos direitos sexuais, enfrentamento à exploração sexual e ao tráfico de mulheres: 13 ações; Eixo 5 – Garantia da autonomia das mulheres em situação de violência e ampliação de seus direitos: 13 ações; Eixo 6 – Enfrentamento às violências em diferentes contextos: capacitismo, racismo estrutural e ambiental, etarismo, sexismo, lesbofobia, bifobia, transfobia e violência de Estado: 13 ações; e Eixo 7 – Prevenção ao Feminicídio: sete ações.
‘Precisamos acompanhar’
A representante titular do município da Serra na Câmara Técnica que coordenou a reformulação do pacto, Jussara Silva, que é assistente social e chefe da Divisão de Enfrentamento à Violência da Secretaria de Políticas para as Mulheres, também ressalta que o principal desafio agora é garantir a execução e implementação das diretrizes nas localidades”. “Embora os prefeitos assinem o pacto e assumam o compromisso, a execução depende da atuação dessas gestões”, enfatiza.

Ela chama atenção para a necessidade de monitoramento e cobrança. “São muitas ações que precisamos acompanhar, e precisamos do apoio da sociedade civil. Por isso, falo da importância dos conselhos funcionando, dos organismos municipais atuantes. Uma coisa é assinar, outra é colocar em prática. Mas nós, enquanto Câmara Técnica, vamos monitorar os municípios que assinaram o pacto e, claro, aquilo que cabe ao Estado também”, reforçou.
Jussara enumera a limitação de recursos e a falta de vontade política como principais desafios para a efetivação das ações. “Muitas vezes, existem gestões municipais que não comungam com a política da mulher”, pontuou.
Apesar das dificuldades, ela reconhece avanços importantes conquistados desde a elaboração do pacto anterior. “Quando estávamos reformulando, fizemos um levantamento e vimos que muitas coisas foram cumpridas. Não tínhamos os Núcleos Margaridas, agora temos. Também houve ampliação de centros de referência, que antes não existiam em alguns municípios”.
Ela cita ainda a criação da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres como um avanço institucional significativo. “Nós tiramos o Estado daquela posição de segundo lugar no ranking de mortes de mulheres. Avançamos, mas ainda temos muitas mulheres morrendo”, alerta.
Entre as novidades do pacto reformulado, está a inclusão da prevenção do feminicídio como eixo estratégico. “Isso traz outras demandas para serem cumpridas pelos municípios e pelo Estado”, explicou.
Jussara ressalta, entre as metas do pacto, a ampliação de equipamentos especializados, como delegacias da mulher funcionando 24 horas. “Apesar das Salas Marias [espaços localizados dentro das delegacias regionais destinado ao atendimento às mulheres vítimas de violência], o que atenderia de fato seriam as delegacias abertas 24 horas. Também está previsto no pacto a criação de uma vara híbrida que possa tratar tanto o crime de violência doméstica quanto questões de guarda e pensão alimentícia, evitando a revitimização”, explicou.
A representante da Câmara Técnica defende a criação de juizados especializados em violência doméstica em cada comarca para resolver questões de forma integral. “Se não for um juizado, pelo menos uma vara híbrida que possa cuidar disso, o que já previsto no pacto”, acrescentou.
Ela destacou ainda que o processo de escuta e elaboração buscou incluir mulheres de diferentes grupos sociais, como LBTs, mães atípicas, representantes de comunidades tradicionais, conselhos de direitos e técnicas de diferentes secretarias estaduais. “O pacto é uma ferramenta importantíssima para continuarmos avançando. Mas ele precisa sair do papel e ser colocado em prática”, reitera.
Mortalidade crescente
O pacto traz também um diagnóstico preocupante: entre 2019 e 2024, o número de feminicídios no Espírito Santo cresceu 11,7%, passando de 34 para 38 casos. A média da série histórica foi de 36 mortes anuais, e de 2023 para 2024 houve novo aumento, de 35 para 38 casos, segundo o Painel de Monitoramento de Violência contra as Mulheres da Secretaria de Segurança Pública (Sesp). O número de homicídios de mulheres no Estado também subiu: de 88 em 2023 para 93 em 2024, superando inclusive o índice de 2019, quando foram registradas 91 mortes.
O documento aponta ainda que, assim como no cenário nacional, a maioria das vítimas são mulheres negras: “Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que a maioria das mulheres assassinadas no Brasil são negras e têm entre 18 e 44 anos. Essa situação se mantém há vários anos e, em 2023, a diferença entre o número de mulheres negras e brancas vítimas de feminicídio aumentou ainda mais, ano em que 63,6% das vítimas de feminicídio foram mulheres negras e 35,8%, brancas. No cenário capixaba a situação não é diferente. Em 2024, 52,63% das mulheres vítimas de feminicídio foram pretas e pardas”.