Polícia Científica e Polícia Civil discordam quanto à atribuições de cargos

A Lei Complementar 1.123, sancionada na última quinta-feira (9) pelo governador Renato Casagrande (PSB), tem gerado divergências entre a Polícia Civil e a Polícia Científica. Esta última aponta que no projeto aprovado pela Assembleia Legislativa constam como atribuições do cargo de oficial investigador de Polícia (OIP) atividades que são da Perícia. Já a Polícia Civil manifestou repúdio às afirmações em nota pública.
Na sexta-feira (10), o Sindicato dos Peritos Oficiais do Espírito Santo (Sindiperitos) encaminhou um ofício sobre o assunto para a Procuradoria Geral do Estado (PGE); o Núcleo de Controle da Atividade Externa Policial do Ministério Público do Espírito Santo (MPES); o presidente da Assembleia Legislativa, Marcelo Santos (União); a Procuradoria da Assembleia Legislativa; o Conselho Nacional de Justiça (CNJ); o Conselho Nacional do Ministério Público; a Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça; a Casa Civil; a Secretaria Estadual de Gestão e Recursos Humanos (Seger); a Secretaria Estadual de Governo; o Conselho Nacional de Direitos Humanos; e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa.
O Sindiperitos afirma que a lei retira da Perícia atribuições “tipicamente periciais e técnicas, previstas na legislação estadual e federal” e que essas questões já foram analisadas pela Procuradoria Geral do Estado. “Inexplicavelmente, sabe-se lá por quais métodos e por quem, voltaram ao texto de uma lei quando o próprio governo já havia assegurado que sanaria essa invasão de atribuições da Polícia Científica e dos Peritos do Estado”, diz o ofício, que manifesta ainda “surpresa e incredulidade” com a nova lei.
O texto acrescenta que “é importante frisar que o Sindiperitos e os peritos e peritas do Espírito Santo não se opõem ao crescimento e valorização de qualquer carreira policial. A defesa que fazem é a da legalidade e constitucionalidade de matérias que podem ocasionar completa balbúrdia judicial e impunidade, além de completa sobreposição no exercício das atribuições dos Peritos Capixabas”.
Consta, ainda, que “o Sindiperitos não está questionando o nome que qualquer categoria deseje dar ao resultado do trabalho que realizam. Essa questão foi objeto de debate no Congresso Nacional quando da votação da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, que contou com a parceria da Associação Brasileira de Criminalística. Laudo Pericial todo mundo sabe o que significa e quem possui competência prevista em lei para realizá-lo, inexistindo dúvida quanto a esta atribuição da Polícia Científica e de seu quadro de peritos oficiais”.
A lei, segundo o Sindiperitos, “passa por cima” de recomendações de Organismos Internacionais de Direitos Humanos “que reiteradamente repreendem o Brasil por não fazer cumprir a autonomia da Perícia Oficial, submetendo sua população a práticas condenadas internacionalmente”. Além disso, aponta, descumpre decisões do Supremo Tribunal Federal [STF], Recomendações e Resoluções do Conselho Nacional de Direitos Humanos e Recomendações do Conselho Nacional de Segurança Pública.
Uma das atribuições que a categoria afirma ser da Perícia é “coletar provas para a elucidação de infrações penais e respectivas autorias”. “Nos casos em que a Polícia Científica se encontra fora do âmbito das Polícias Civis, não se pode desconsiderar toda a legislação aplicável à coleta de provas para a elucidação de infrações penais, sob pena de ocorrência de uma avalanche de ilegalidades e inconstitucionalidades”, aponta o ofício.
No documento também consta que “à Polícia Científica compete legalmente a coleta das provas na forma da lei (Código de Processo Penal), cabendo-lhe a realização dos exames de corpo de delito, da cadeia de custódia, das perícias criminais (inclusas as médico-legais) e das perícias em geral”. Outra tarefa é “realizar os Procedimentos de Identificação Criminal na forma da lei e dos regulamentos”. Os trabalhadores apontam que, no Espírito Santo, isso é uma tarefa do Instituto de Identificação da Polícia Científica desde o ano de 1911.
“A competência e a forma como esses procedimentos devem ser praticados constam de Legislação Federal Especial (Lei Federal Nº 12.037/2009), não podendo ser afastadas do mundo jurídico por legislações estaduais, bem como por interpretações locais que se deem a legislações federais não especiais. Esses procedimentos somente podem ser realizados pela Polícia Civil quando o Instituto ou Departamento de Identificação ainda se encontre dentro desta instituição, não o podendo quando está fora (caso do Espírito Santo e vários outros estados)”.
A Perícia também afirma ser atribuição da categoria arrecadar objetos de prova, instrumentos e produtos de crime. Além disso, afirmam não ser tarefa do OIP a “coleta de impressão palmar, digital e plantar, para fins cíveis e criminais e de dados biométricos e antropométricos”. “Igualmente, todas essas atribuições previstas neste item 4 são da competência da Polícia Científica, mais especificamente dos Institutos de Identificação e de Medicina Legal. Trata-se de claro levantamento de vestígios e de produção de prova pericial, relacionadas à perícia criminal”, diz.
Realizar exame com apresentação de laudo investigativo em aparelhos eletrônicos, segundo a Perícia, também não é papel do OIP, além da confecção de “laudo investigativo, no caso de provas digitais provenientes de diálogos ou conversas, sem adulteração da prova (…) com a aplicação de algoritmo hash ou similar, para a preservação da integridade, autenticidade e confiabilidade dos elementos informáticos”.
“A nulidade de provas digitais na perícia criminal ocorre quando não se segue a cadeia de custódia, que exige a preservação da integridade e autenticidade dos dados. Isso pode levar à inadmissibilidade da prova, que não poderá ser utilizada em processos judiciais. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reafirmado essa posição, anulando provas obtidas sem o devido rigor técnico, como prints de tela feitos sem metodologia adequada. São inúmeros os casos de nulidade processual como decorrência dessa invasão na seara técnico-científica da Perícia Oficial”, argumentam.
O Sindicato dos Policiais Civis do Estado do Espírito Santo (Sindipol/ES), em nota publicada nas redes sociais após matéria publicada em Século Diário sobre a insatisfação dos peritos, afirma que a Lei Complementar nº 1093/2024, cujo Anexo 1 foi alterado pela Lei Complementar 1.123, está em conformidade com o artigo 144 da Constituição Federal, com a Lei Federal nº 14.735/2023, que trata da Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, e com o Código de Processo Penal.
“A norma não invade nem usurpa atribuições da perícia oficial criminal, mas tão somente disciplina as funções típicas e legítimas do cargo de oficial investigador de Polícia, indispensáveis à atividade-fim investigativa da Polícia Civil e à persecução penal”, destaca.
O sindicato defende que atribuições destacadas pelos peritos “tais como ‘proceder a investigações policiais’, ‘realizar procedimentos de identificação criminal’, ‘arrecadar objetos de prova’ e ‘coletar impressões digitais e dados biométricos’ — são atos clássicos e historicamente vinculados ao campo da investigação criminal e da polícia judiciária, não sendo de uso exclusivo da perícia”.
O Sindipol argumenta ainda que “a Lei Federal nº 14.735/2023, em seu art. 6º, inciso V, estabelece como competência da Polícia Civil ‘garantir a adequada coleta, a preservação e a integridade da cadeia de custódia de dados, informações e materiais’. Logo, essa obrigação é compartilhada entre todos os agentes da persecução penal, especialmente os Oficiais investigadores, que atuam na ponta da coleta, preservação e encaminhamento dos elementos informativos”.
Para os policiais civis há, por parte dos peritos, uma “confusão deliberada entre ‘laudos investigativos’ e ‘laudos periciais’”. “Não existe sobreposição de funções. O trabalho do perito oficial criminal pode complementar uma investigação criminal conduzida pela Polícia Civil, mas na maioria das investigações criminais realizadas pela Polícia Civil, não há sequer necessidade de laudo pericial”, diz o Sindipol, com base na Lei Orgânica da Polícia Civil, que, conforme aponta, estabelece que laudo investigativo é “produzido por oficiais investigadores, com metodologia técnico-científica reconhecida em lei, no âmbito da apuração criminal”.
Já o laudo pericial, é elaborado por “perito oficial criminal ou por pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior com habilitação técnica (não é perito criminal – Art. 159, §1º do CPP), com metodologia técnico-científica reconhecida e valor probatório próprio”.