quarta-feira, junho 25, 2025
20.9 C
Vitória
quarta-feira, junho 25, 2025
quarta-feira, junho 25, 2025

Leia Também:

‘Sinto que minha irmã está viva em algum lugar’

Assembleia propõe CPI para encontrar crianças desaparecidas em hospitais do Estado

Em 1966, a recém-nascida Angélica foi internada no Hospital Infantil, em Vitória, com pneumonia. Durante mais de um mês, foram muitas idas e vindas de seus pais, de Paraju, em Domingos Martins, na região serrana, para a Capital, para ver a criança. Até que um dia, ao chegar no hospital, a família recebeu a notícia de que a menina estava morta e enterrada. Sem corpo, sem documentação que comprovasse, sem nada. Alair Hollunder Dias, sua irmã, não acredita, contudo, que de fato a bebê veio a óbito, nem sua mãe. “Sinto que minha irmã está viva em algum lugar”, desabafa.

A história de Angélica é uma das que foram narradas na reunião da Comissão de Segurança da Assembleia Legislativa nessa terça-feira (24), sobre o desaparecimento de crianças entre 1960 e 2000, que teve como uma das propostas, apresentadas pelo presidente do colegiado, deputado estadual Danilo Bahiense (PL), a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as ocorrências.

Acervo Pessoal

Alair nasceu dois anos depois de Angélica e cresceu ouvindo a história de sua irmã desaparecida. “Não podia ficar acompanhante no hospital. Minha mãe ia, pegava no colo, dava mamadeira. Minha irmã foi melhorando, mas diziam que não poderia ter alta ainda. Um dia minha mãe foi ao hospital dizendo ‘hoje não saio daqui sem minha filha’. Mas quando chegou, recebeu a notícia de que havia morrido e foi enterrada”, relata.

Alair informa que, antes da notícia da suposta morte, seus pais tinham visto a menina pela última vez num sábado, por volta das 10h. A informação de que ela havia morrido foi dada na segunda-feira seguinte, pela manhã. Em 1999, Alair, que busca há anos esclarecer o caso, contatou o hospital, que falou que havia uma certidão de óbito no Cartório Sarlo. De acordo com ela, no documento consta que a morte foi no dia 15 de setembro, às 7h, e o sepultamento no dia 17, às 17h.

Mas, ao olhar o calendário de 1966, viu que o dia 15 de setembro caiu em uma quinta-feira. Portanto, aponta, se os pais viram a criança num sábado e receberam a notícia da morte dois dias depois, numa segunda, não há possibilidade de a suposta morte e sepultamento terem sido nas datas contidas na certidão. Sua mãe, Alida, hoje tem 83 anos. “Quero encontrar minha irmã. Meu intuito é promover o abraço entre essa mãe, que fala essa história todos os dias, e sua filha”, diz.

A enfermeira Manuza Paixão Rodrigues tem uma história semelhante. Ela procura sua irmã, Anália, uma bebê que foi internada no Hospital Infantil em 1968, com sintomas gripais, e dada como morta. De acordo com ela, a menina já estava bem e a mãe foi buscar. Nesse dia recebeu a notícia de que a criança havia morrido e estava enterrada. Quando a mãe pediu para ver o corpo, foi mostrado para ela, no terreno do próprio hospital, um monte de terra revirado, dizendo que ela havia sido sepultada ali.

Acervo Pessoal

“Minha mãe tem certeza, convicção, que minha irmã está viva”, diz Manuza, que, apesar de ter crescido ouvindo essa história, achava que de fato a irmã tinha morrido, pois antigamente não havia muita cobertura vacinal. Contudo, ao ver uma reportagem na TV com casos semelhantes ocorridos no Hospital Infantil, a enfermeira se convenceu de que a irmã pode estar viva. “Me senti culpada por não ter dado tanta atenção à história da minha mãe. Poderia ter corrido atrás antes, ter feito alguma coisa”, lamenta.

Acervo Pessoal

Agora, Manuza criou um coletivo chamado Meu Bebê Sumiu, que agrupa famílias que passam pela mesma situação, buscando por justiça e por reencontrar as crianças desaparecidas. Esse coletivo esteve na reunião da Comissão de Segurança, onde foram relatados casos de sumiço de crianças também na Pró-Matre e na Santa Casa de Misericóridia. “Na reunião falaram, inclusive, da possibilidade de indenização, mas no fundo do meu coração, não quero indenização. Quero achar minha irmã. Não sei como foi criada, como foi tratada”, ressalta.

Manuza afirma que ouve de algumas pessoas que, caso a encontre, deve estar preparada para o fato de a irmã não querer contato. “Se ela tiver o coração que a nossa família tem, ela vai querer conhecer a gente”, acredita. Ela conta que quando pergunta para a mãe o que vai fazer se a filha aparecer, a resposta é “vou trazer ela para morar comigo”. “Digo para ela, ‘mãe, não é assim. Hoje ela é uma mulher, deve estar casada, com filho’. E ela responde: ‘mas é minha filha, não abandonei”, narra.

Investigação

A CPI, segundo Danilo Bahiense, é necessária porque a Delegacia Especializada de Pessoas Desaparecidas enfrenta precariedade estrutural, como a falta de titular específico. O parlamentar também defendeu “efetivo investimento, seja sob o aspecto preventivo, através de campanhas, e a criação de uma rede de apoio, ou mesmo através de recursos tecnológicos e melhoria do efetivo, para que torne viável a busca da pessoa desaparecida, como forma de sensibilidade por parte do Estado ao sofrimento das famílias”.

Heloisa Mendonça Ribeiro

O delegado Luiz Carlos Ximenes da Silva responde cumulativamente pela Delegacia de Pessoas Desaparecidas. Durante a reunião da comissão, narrou que o equipamento conta com quatro policiais e duas viaturas. Sobre os casos ocorridos entre 1960 e 2000, considerou as ocorrências “complexas, porque podem envolver situações como adoções irregulares, falsidade ideológica e até mesmo estrutura de crime organizado”.

O delegado informou, ainda, que a unidade abriu quatro verificações preliminares de informação (VPIs) relativas a casos antigos no sentido de buscar respostas e destacou a necessidade de as famílias registrarem Boletim de Ocorrência (BO), pois o procedimento poderá resultar em inquérito policial. Foram apontados durante a reunião aspectos que podem dificultar a investigação, como o período decorrido e o acesso à documentação, já que a digitalização de arquivos passou a ser feita em 1998.  

Na reunião também foram apresentados dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp) do Ministério da Justiça, que demonstram que de 2015 a 2025, 16,2 mil pessoas desapareceram no Espírito Santo, uma média de seis casos por dia, a maioria do sexo masculino. Cerca de 30% são jovens menores de 18 anos e, desse grupo, 532 foram encontrados vivos ou mortos, e 4,2 mil crianças e adolescentes desaparecidos.

Mais Lidas