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‘Somos revitimizados pelo esquecimento’

Grupo se mobiliza por justiça ao atentado de Aracruz; assassino pode ser solto em novembro

Passados quase três anos do atentado cometido por um adolescente de 16 anos em duas escolas de Aracruz, no norte do Espírito Santo, a previsão, levando em consideração que esse é o período máximo de internação nas unidades socioeducativas, é de que o atirador ganhe liberdade em novembro. O sentimento entre as vítimas e seus familiares é de medo, injustiça e desamparo. O crime, do qual se lembram diariamente diante das inúmeras dificuldades que impôs aos seus cotidianos, parece ter caído no esquecimento pela sociedade capixaba.

Por isso, vítimas e familiares se uniram em um grupo para, juntos, discutirem ações para “refrescar a memória” da sociedade civil, poder público e órgãos de Justiça, e trazer à tona aquele 25 de novembro de 2022 e seus desdobramentos. Uma primeira ação foi a divulgação recente de um outdoor no município para relembrar a data do crime, com frases como “Massacre das escolas de Aracruz, a maior tragédia da história do Espírito Santo”. No outdoor há um pedido de justiça, e é destacado que “ainda choramos tamanha dor!”.

Divulgação

A professora Juliana Pessotti Ribeiro é uma das pessoas empenhadas na mobilização, que reúne vítimas e familiares. “Nos organizamos em um grupo para planejarmos ações para que a barbárie sofrida não seja esquecida”, diz, destacando que é preciso fazer justiça, já que o pai do adolescente, tenente da Polícia Militar (PM), não recebeu nenhuma punição, apesar de ter sido a arma dele utilizada pelo filho. Além disso, afirma, as vítimas estão tendo custos altos para sua reabilitação, pois vivem com sequelas psicológicas e físicas.

Juliana viu a vida de sua filha, Thaís Pesotti da Silva, e do restante da família, mudar após a jovem, aos 14 anos, ter sido baleada pelo adolescente no Centro Educacional Praia de Coqueiral (CEPC), em Coqueiral de Aracruz, escola da rede privada de ensino, segunda instituição de ensino na qual o atirador entrou. A primeira foi a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Primo Bitti, no mesmo bairro.  

Juliana lecionava no CEPC. “Eu vi o assassino. Enquanto eu corria com meus alunos, minha filha levava um tiro no andar de cima”, recorda. Thaís sobreviveu, assim como outros dois alunos, mas a estudante Selena Sagrillo, não. Thaís levou um tiro na cabeça, mas por ter sido vitimada em área particular, o Estado não a reconhece como vítima a ser indenizada, embora as balas que a atingiram tivessem saído de uma arma da PM. Sua filha, relata Juliana, teve a área do cérebro responsável pela linguagem afetada.

“Ela não lê, não fala, não escreve, mas a área  da aprendizagem está preservada. Ainda ficou com sequela motora do lado direito. Só utiliza a mão esquerda no seu dia a dia”, diz a mãe. Hoje Thaís estuda na Primo Bitti e a família teve que se adaptar a sua nova realidade. “É muito difícil ser vítima de tamanha violência. Ainda mais quando atinge a um filho ou filha. É onde mais dói em qualquer pai e mãe.  Eu não consegui mais voltar a trabalhar, faço tratamento psiquiátrico e estou amparada pelo INSS. Os irmãos da Thaís sofreram e ainda sofrem muito. Tivemos que desconstruir a Thaís de antes para entendermos e aceitarmos a Thaís de agora. É uma espécie de luto”, afirma.

Para Juliana, o silêncio diante do assunto é mais uma forma de violência. “Nós não queremos que seja esquecido, pois todos os dias acordamos com o impacto da realidade atual. Hoje não somos mais as mesmas pessoas antes, trazemos na memória algo trágico e violento que sofremos. E ainda assim, a sociedade prefere que sejamos esquecidos. Somos revitimizados pelo esquecimento”, lamenta.

‘Em qualquer lugar que estou, procuro uma saída’

A sensação de insegurança acompanha cotidianamente a professora Degina Rodolfo de Oliveira Fernandes, outra vítima do atentado, que lecionava na escola Primo Bitti e faz parte do grupo que se mobiliza por justiça. “Em qualquer lugar que estou, procuro uma saída”, relata. A mesma sensação é vivida pelos filhos. “Minha filha passou a ficar muito agarrada comigo, queria ficar comigo o tempo todo, que eu desse atenção só para ela”, conta.

Degina após sair do hospital. Foto: Redes Sociais

A menina também passou a ter medo do escuro, a dormir de luz acesa, além de tomar banho de porta aberta. O filho, afirma, passou a ter crises de choro e a temer a perda dos entes queridos. “Ele diz ‘não quero que você morra, que meu pai morra, que minha irmã morra”. De acordo com ela, durante mais de um ano, ele sonhou com uma pessoa com uma máscara preta.

A professora ficou com sequelas, pois não consegue fazer todos movimentos com o braço esquerdo. Há, ainda, a dificuldade de andar, o que faz com que, sempre que possível, opte por ter uma companhia. Degina também desenvolveu medo de policiais fardados, chegando a ter uma crise de pânico quando soube que policiais iriam até sua casa colher depoimento quando saiu do hospital no qual ficou internada durante o atentado.

A escola, ambiente que era tão familiar para ela, é um espaço no qual, agora, tem dificuldade de entrar. Diante da possibilidade de o adolescente ganhar liberdade no final do ano, o sentimento de Degina é de indignação. A professora defende que aconteça com ele o mesmo que aconteceu com Roberto Aparecido Cardoso, o Champinha, um dos assassinados de Liana Friedenbach e Felipe Caffé, torturados e mortos em São Paulo, em 2003.

Champinha, que era menor, cometeu o crime com quatro homens e foi internado na Unidade 1 da Fundação Casa. Contudo, quando estava prestes a ganhar liberdade, o Ministério Público requereu sua interdição civil com base na Lei 10.216/2001, já que um laudo psiquiátrico apontou transtorno de personalidade antissocial e leve retardo mental. Por isso, foi encaminhado para uma Unidade Experimental de Saúde.

Lançamento de livro

Além de Degina, outras duas professoras sobreviveram. As vítimas fatais, além da pequena Selena, foram Maria da Penha Banhos, Cybelle Bezerra e Flavia Amboss, que lecionavam na Primo Bitti. Flavia era militante do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), que no dia 26 de junho, às 17h, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), lançará o livro  Imprensados no tempo da crise – a gestão das afetações no desastre da Samarco (Vale e BHP Biliton) e a crise como contexto no território tradicionalmente ocupado na foz sul do Rio Doce, fruto de tese de doutorado dela, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Heider Boza, da coordenação do MAB, recorda que Flavia morava em Regência, Linhares, uma das regiões atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP. No livro, aponta o ativista, Flavia descreve a situação local desde antes da chegada dos resíduos, a chegada e os atores envolvidos, como as empresas responsáveis pelo crime ambiental, que, segundo Heider, com base no livro de Flavia, antes mesmo de os resíduos chegarem, já estavam querendo determinar quem era vítima ou não, mostrando, desde então, a possibilidade de violação de direitos.

“Para nós, o livro é um instrumento de luta, de denúncia, traz à tona a questão do Rio Doce, é feito uma por uma atingida, por quem sofre na pele. Mas é também uma forma de denunciar o crime de Aracruz”, ressalta. Heider informa que a obra traz anexos sobre o atentado, como a carta da mãe de Flavia para o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, e uma carta da professora Aline Trigueiro, orientadora de Flavia na graduação em Ciências Sociais e no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, ambos na Ufes.

“Estamos indo para o terceiro ano do crime. Para a sociedade, a polícia e o Governo, é um assunto tratado como encerrado. A mídia convencional mal fala do assunto. Os processos judiciais estão, em grande parte, em segredo de justiça”, lamenta.

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