Festa tradicional é realizada em Cachoeiro anualmente em antigo reduto político da cidade

O Dia de Cachoeiro de Itapemirim é celebrado em 29 de junho, data consagrada a São Pedro, considerado o padroeiro do município do sul do Estado. Durante o mês de junho, todos os anos, acontece uma programação cultural na cidade, cheia de tradições que remontam à década de 30 do século passado. Uma delas, porém, é mais recente, começou em 1986, e tem um pano de fundo político: o Encontro dos Amigos da Praça Vermelha.
Nessa sexta-feira (27), o livro Memórias do CDM e da Praça Vermelha, em homenagem à tradição popular, foi lançado no Palácio Bernardino Monteiro, no Centro de Cachoeiro. E neste sábado (28), a partir das 19h, acontece a 36ª edição do encontro. Entre as atrações musicais estão o grupo de Edgar Pinheiro e a banda da Sociedade Musical 26 de Julho, que tem 94 anos de existência.
A tal Praça Vermelha é a antiga Praça Francisco Abrahão, no Centro, colada à entrada da Ponte de Ferro. Quem passa por ali não encontra exatamente uma “praça”, e sim um amplo calçadão em frente a um largo e antigo prédio de salas comerciais. Nesse edifício, nos anos 1980, funcionava a sede do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e de outros partidos progressistas que começavam a surgir no período de redemocratização.
Na praça também costumavam ocorrer assembleias e atos políticos dos trabalhadores ferroviários, que tinham muita força em Cachoeiro. Foi daí que nasceu o apelido de Praça Vermelha, devido à grande movimentação de figuras de esquerda pelo espaço.
Mas a praça não vivia só de política. No térreo do prédio ficava o Cine Teatro Broadway, uma dos principais espaços de arte e cultura da história de Cachoeiro. Atravessando a rua pelos trilhos do trem, na calçada em frente, ficava o bar CDM, que funcionou por mais de 50 anos. Foi dos donos do estabelecimento e de amigos e frequentadores que surgiu a ideia do encontro anual.
Entre os idealizadores estão: José Cláudio Magalhães, o Kafunga; Sebastião Magalhães, o Aúa; Juracy Magalhães, o Jurinha; Cid Magalhães Fontes, o Doca; Demisthóclides Baptista, o Baptistinha; e Fernando Ferreira Neto, o Dr. Fernando. Doca era o proprietário do CDM (que é uma abreviação de Cid, Doca & Magalhães), e Aúa foi seu sócio por um período.

“A festa é feita por amigos. São todos anônimos, que se reúnem e vão fazendo. O evento nasceu para ser um espaço democrático, onde todo mundo pode discutir o que quiser, levar o que quiser”, afirma Almir Forte, fiel frequentador dos encontros anuais, que foi vereador pelo PCdoB nos anos 1990 – até hoje, o único parlamentar eleito pela sigla em Cachoeiro.
Assim como a prefeitura, que organiza todos anos a eleição do Cachoeirense Ausente Número Um, destinada a homenagear algum ex-morador que se destacou profissionalmente fora do município, os Amigos da Praça Vermelha também escolhem o seu Cachoeirense Ausente.
O grupo também instituiu o Cachoeirense Presente da Praça Vermelha, homenageando algum colega que permaneceu morando em Cachoeiro – título que depois foi replicado pela Câmara de Vereadores. Também é concedida a Comenda Sebastião Magalhães (Aúa). Além das homenagens, apresentações musiciais de samba, chorinho e MPB costumam embalar a festa.
Apesar da prevalência de pessoas de esquerda, Almir afirma que a praça nunca foi restrita a esse campo político. “A praça sempre foi democrática. Tinha mais pessoas de esquerda por causa das sedes dos partidos que funcionavam ali. Mas frequentavam pessoas que não tinham posicionamento político nenhum, pessoas mais ao centro, mais de direita – mas uma direita normal, não essa direita extrema de hoje”, comenta.
Políticos diversos também costumam marcar presença, sobretudo às vésperas de eleições. Almir conta que Albuíno Azeredo (PDT), que foi governador do Estado de 1991 a 1994, comparecia em todos anos. Os ex-ministros Osiris de Azevedo Lopes Filho e Romildo Cagnin, que atuaram durante a presidência de Itamar Franco (1992-1994), também marcaram presença em uma edição – Osisis era cachoeirense.
Almir Forte conta também que o grupo da Praça Vermelha sempre teve boa relação com todos os prefeitos de turno. Atualmente, a festa faz parte do calendário municipal, e a prefeitura costuma ajudar fornecendo a estrutura para o evento. Apesar disso, os próprios amigos custeiam a festa através de “vaquinhas” e venda de camisas e outros itens.

Homenagens e livro
Na edição deste ano do encontro, os homenageados serão o escritor e jornalista Luiz Trevisan (Cachoeirense Ausente da Praça) e a professora Marlene Forte (Cachoeirense Presente da Praça). Também será concedida a Comenda Sebastião Magalhães (Aúa) a Nivan Ramos Barina.
O livro, que também será vendido por R$ 30 durante a festa, reúne textos e fotos sobre a Praça Vermelha. Entre os textos estão as crônicas que Kafunga pedia para que amigos fizessem todos anos, para serem distribuídas durante o encontro. Idealizador da obra, ele faleceu em 2023. “Este livro é o resgate de uma dívida que todos nós, ‘cedemistas’, tínhamos com Kafunga”, diz a organizadora Mirela Cocco Fontes, filha de Doca.
Uma das dificuldades enfrentadas para a publicação do livro foram as despesas gráficas. Sem patrocínio público ou de empresas, a solução foi a tradicional “vaquinha” entre amigos. “A gente sempre diz que tudo na Praça é fruto de construção coletiva, e dessa vez não foi diferente. Estamos emocionados com a colaboração de tantas pessoas e felizes por podermos finalmente contar nossa história”, comemora Mirela.
O Encontro dos Amigos da Praça Vermelha tem sido realizado de maneira quase ininterrupta, desde a primeira edição. O maior período de paralisação ocorreu durante a pandemia de Covid-19, nos anos de 2020, 2021 e 2022.

Muita coisa mudou em Cachoeiro desde o início da festa. O Cine Teatro Broadway já não existe há mais de três décadas. Os trilhos do trem, que costumavam interromper a festa por um breve período, também foram retirados no início dos anos 1990. O CDM foi fechado em 1999. Os ferroviários deixaram de existir como uma categoria de trabalhadores relevante no município, e os partidos políticos progressistas também perderam a vitalidade daqueles anos pós-ditadura.
Dos idealizadores da festa, faleceram quase todos, com exceção de Doca. Restou justamente o Encontro dos Amigos da Praça Vermelha como uma espécie de memória viva de um período importante da cidade. O evento continua sendo alimentado por outras gerações de participantes.
“A festa é sempre muito frequentada, com bastante público. Lá é como se fosse outro mundo. É quase uma utopia para os frequentadores. Muita solidariedade, paz e alegria. O verdadeiro espírito da festa de São Pedro está na Praça Vermelha”, completa Almir Forte.