Denúncias incluem problemas estruturais, danos ambientais e trabalho precário

Moradores do distrito de Burarama, em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado, iniciaram um abaixo-assinado requerendo a abertura de investigação a respeito da construção de uma barragem no Córrego Ribeirão Floresta, na localidade de Furquilha. O documento online cita “graves relatos de irregularidades”, tanto em relação a questões técnicas e ambientais quanto no que diz respeito a situações trabalhistas e sociais envolvendo os funcionários que atuam nas obras.
O Ministério Público do Estado (MPES), para quem é direcionado o abaixo-assinado – que contava com 698 signatários até a tarde desta segunda-feira (29) – informou a Século Diário que está com um inquérito civil em aberto para apurar a regularidade da construção. Moradores fizeram as primeiras denúncias sobre o caso ao MPES em 2022.
A construção está a cargo da empresa Zambeline Engenharia Ltda., a partir de um contrato com a Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag). A primeira ordem de serviço para as intervenções foi em julho de 2022, com o valor R$ 1,2 milhão, mas o trabalho foi paralisado poucos meses depois. Após um novo chamamento público, a Zambeline ganhou a disputa novamente e retomou as obras em 2024, agora ao custo de R$ 1,4 milhão.
Segundo o Governo do Estado, a Barragem Córrego Ribeirão Floresta vai contar com uma área alagada de 1,43 hectares, com capacidade de armazenamento de 25 mil metros cúbicos de água. O objetivo é diminuir os impactos dos períodos de estiagem que se tornaram mais frequentes desde 2014, prejudicando atividades agropecuárias e o abastecimento doméstico. Também há barragens em construção em diversas outras cidades do Estado.
Entretanto, de acordo com o abaixo-assinado, as irregularidades na obra incluem: estruturas de sustentação e fundações construídas de forma inadequada, com vigas em espaçamento incorreto; e uso de sacos de contenção das encostas preenchidos com terra em vez de cimento. Também há imagens que mostram que o ribeirão já sofreu cheias que arrastaram lama e resíduos para outros corpos hídricos, como a Cachoeira da Furquilha, um ponto de turismo e lazer conhecido da comunidade.
É citado ainda o alto risco de rompimento da barragem, colocando em perigo as casas dos moradores localizadas às margens do ribeirão. Também há relatos de que alguns operários e encarregados da empresa trabalhavam visivelmente embriagados durante a construção da barragem.
Sobre o ambiente de trabalho dos funcionários, há denúncias inclusive de condições análogas à escravidão, que já teriam sido verificadas no local por órgãos de controle, e incluem: rotatividade excessiva (mais de 100 empregados em um ano), muitos sem registro em carteira; emprego de mão de obra sem qualificação técnica; atrasos no pagamento de salários; moradias precárias; falta de equipamentos de proteção e maquinários adequados; ausência de transporte ou transporte precário para os trabalhadores até a obra.
As condições ruins teriam resultado em acidentes de trabalho que não receberam o devido atendimento médico. Também há relatos de conflitos entre os trabalhadores e importunações a moradores. Houve, inclusive, uma tentativa de homicídio contra o dono da empresa, segundo o abaixo-assinado, em frente à casa onde residem os operários, além de um caso de violência contra mulher.
“Por se tratar de uma questão que ameaça a segurança, o meio ambiente, a história e a vida da comunidade de Burarama, diante do exposto e da inação da atual gestão da Associação de Moradores de Burarama, nós, sociedade civil autônoma e organizada, pedimos atenção urgente a esta solicitação coletiva”, diz a mensagem do abaixo-assinado.
Projeto sem diálogo
A barragem é construída em concreto armado, e terá 34,54 metros de comprimento e 5 metros de altura, sendo 4 metros de lâmina d’água. O projeto foi elaborado em 2017 pela empresa Ruralter Planejamento e Consultoria, por meio de dois termos de cooperação técnica. Um deles, entre a Seag e o Movimento Empresarial do Espírito Santo (Messes); e o outro, envolvendo a Seag, o Messes, a Agência Estadual de Recursos Hídricos (Agerh), a Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim e o Sistema de Cooperativas de Crédito do Brasil (Siccob).
Entretanto, apesar da elaboração do projeto, muitos moradores de Burarama – que preferem não ser identificados por medo de represálias – reclamam do fato de não ter havido qualquer diálogo ou explicação sobre a construção junto com a comunidade.
Século Diário teve acesso a um ofício da Associação de Moradores de Burarama, de 2021, direcionado ao gabinete da então vice-governadora, Jacqueline Moraes (PSB), em que a associação lamenta o fato de não ter ocorrido uma reunião sobre o assunto prevista para acontecer no dia 28 de maio daquele ano, porque a comunidade não foi avisada com antecedência – apenas os então deputados estaduais Pr. Marcos Mansur (PSDB) e Theodorico Ferraço (PP) é que teriam ficado sabendo previamente. Depois disso, não foram marcadas novas reuniões.
Apesar de obra ter sido paralisada em novembro de 2022 e retomada em 2024, também não há informações oficiais sobre os reais motivos da paralisação.

‘Necessidade de novos esclarecimentos’
Procurado por Século Diário, o Ministério Público do Estado, por meio da Promotoria de Justiça de Cachoeiro de Itapemirim, informou, em nota, que há um inquérito civil em andamento para apurar a regularidade da obra, ainda não concluído. No curso do processo, foram requisitadas informações ao Idaf, à Seag e à Secretaria de Agricultura de Cachoeiro (Semag) a respeito do contrato para execução da obra, do licenciamento ambiental e da comunicação com a comunidade local.
A Promotoria identificou que a obra foi paralisada em 2022 e retomada em 2025, com previsão de conclusão em 2025, e identificou a “necessidade de novos esclarecimentos por parte da Seag, especialmente sobre a regularidade da contratação e a participação da comunidade”. O inquérito teve prazo prorrogado para a continuidade das diligências e ainda não foi ajuizada uma ação civil.
Questionado novamente a respeito das denúncias de irregularidades, o MPES esclareceu que “não houve conclusão quanto às supostas irregularidades apontadas pelos moradores”, mas “estão sendo analisadas questões relativas ao licenciamento ambiental da obra, inclusive sobre a dispensa de licenciamento emitida, e também aspectos relacionados à contratação da empresa responsável pela execução da barragem e à paralisação ocorrida em 2022, seguida de retomada em 2024”.
“Outro ponto em apuração”, prosseguiu o MPES, “diz respeito à participação da comunidade local no processo, uma vez que não foram apresentados registros formais de reuniões ou audiências públicas que garantissem esclarecimentos sobre os riscos e benefícios do empreendimento. Esses aspectos estão sendo avaliados por meio de diligências junto aos órgãos competentes e, se contatadas irregularidades, o MPES tomará as medidas cabíveis”.
‘Obra regularmente fiscalizada’
A Secretaria de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca alegou que a obra da barragem “vem sendo regularmente fiscalizada, tanto por equipe técnica da própria Seag quanto por empresa especializada de supervisão contratada especificamente para esse fim”. A secretaria afirmou, ainda, que as intervenções seguem os parâmetros técnicos e de segurança estabelecidos no projeto, e que “a documentação trabalhista referente aos empregados da empresa contratada é apresentada mensalmente como condição para a realização das medições e pagamentos, estando, portanto, em conformidade com as exigências legais”.
A Seag argumentou que a região foi atingida por índices pluviométricos muito acima do esperado, o que ocasionou “atrasos pontuais na obra”, mas os serviços seguem em andamento, e a barragem “terá papel fundamental na redução de enchentes e na mitigação de problemas decorrentes do excesso de chuvas, trazendo mais segurança para a população local e benefícios para o meio ambiente”. Entretanto, a secretaria não informou os motivos da paralisação das obras em 2022.
A Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim, por sua vez, informou que encaminhou informações solicitadas pelo MPES em 17 de abril de 2024, e reforçou que a obra é de competência da Seag e encontra-se “devidamente licenciada pelo Idaf”. “Ressalta-se que não há registros na prefeitura de realização de reunião ou audiência pública com a comunidade”, complementou.
O Ministério Público do Trabalho no Espírito Santo (MPT-ES) informou que “nada consta” em seu sistema a respeito das denúncias das condições dos empregados da obra da barragem. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) não deu retorno para nossa solicitação a respeito de possível inspeção trabalhista nas obras, e o Idaf também não respondeu aos questionamentos sobre licenciamento.