Proposta enviada à Câmara afeta pessoas com HIV, doenças crônicas e deficiência
O prefeito de Vitória, Lorenzo Pazolini (Republicanos), enviou para a Câmara Municipal o Projeto de Lei (PL) 379/2025, que revoga leis e um decreto que garantem gratuidade no transporte para pessoas com HIV, doenças crônicas e deficiência. A proposta vem sendo criticada por parlamentares e pelos beneficiários dessas legislações, que são as Leis 3.391/1986, 3.554/1988, 8.144/2011 e o Decreto 9.891/1996.

A Lei 3.391/1986 “concede passe livre nos ônibus que fizerem linhas municipais às crianças com deficiências físicas ou mentais do município e aos acompanhantes delas, devidamente identificadas assim”. A 3.554/1988 “garante às pessoas com deficiências físicos ou mentais e seus acompanhantes, estes devidamente identificados, passes livres nos ônibus que fizerem linhas municipais”.
A Lei 8.144/2011 “concede a gratuidade do vale-transporte para os portadores de vírus HIV e doenças crônicas, para fins de tratamento devidamente comprovado, para uso no sistema de transporte coletivo municipal de passageiros e dá outras providências”. Por fim, o Decreto 9.891/1996 diz que “é assegurado ao portador de deficiência incapacitante e a seu acompanhante, do qual dependa para se locomover, a gratuidade no uso do transporte coletivo municipal de passageiros, mediante avaliação fisiológica”.
O representante da Rede Nacional de Pessoas com HIV no município de Vitória, Sidney Parreiras, classificou o projeto enviado à Câmara como uma “arbitrariedade e falta de respeito”. Aponta, ainda, falta de diálogo, já que as pessoas com HIV têm tentado conversar a com a prefeitura sobre a importância do direito à gratuidade no transporte para fazer o tratamento, sem êxito.
A busca por diálogo tem se dado desde 2022, na primeira gestão de Pazolini, quando a Lei 8.144/2011 passou a não ser mais cumprida. O argumento da gestão, na ocasião, foi de que a lei, embora estivesse em vigor, não valia porque não tem mais transporte público de responsabilidade municipal, já que, em 2021, houve a integração dos ônibus de Vitória com o Sistema Transcol.
Em 2020, quando começaram as discussões sobre a integração, a Rede Nacional chegou a dialogar com o então prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), e o então secretário municipal de Gestão, Planejamento e Comunicação, Fabrício Gandini (PSD), que hoje é deputado estadual. Eles informaram que o município faria o repasse de recurso para o Governo do Estado, com o objetivo de garantir a gratuidade após a integração, efetivada em 2021. Entretanto, era final de gestão e Gandini, que era o candidato apoiado pelo prefeito, perdeu as eleições, iniciando na sequência a gestão de Pazolini.
Para Sidney, com o envio do PL à Câmara, Vitória está na contramão de outras capitais e estados. Ele aponta que no Piauí, em fevereiro deste ano, foi sancionada uma lei estadual que institui passe livre para pessoas com HIV, abrangendo transporte intermunicipal, metrô e trem. Em Florianópolis, Santa Catarina, para ter acesso à gratuidade no transporte público, pessoas que vivem com HIV precisam apresentar comprovante de residência, identidade e atestado médico. Ele salienta que no Rio de Janeiro também há gratuidade.
Descumprimento judicial
Sidney recorda que, embora a Justiça já tenha se manifestado em favor do direito à gratuidade, a gestão de Lorenzo Pazolini não a garantiu de fato. A prefeitura concedeu o Vale Social, que, conforme explica, é diferente de gratuidade. “A pessoa chega na unidade de saúde e procura a assistente social para informar que não tem condições de pagar a passagem. Aí ela carrega o cartão com a passagem de ida e volta. Mas como a pessoa vai chegar à unidade de saúde se não tem como pagar a passagem? “, questiona.
Sidney destaca, ainda, que as pessoas com HIV precisam se deslocar para consultas, exames e para buscar remédio, sendo que “nem sempre vai ter um amigo, vizinho ou parente para emprestar um cartão de vale- transporte para a pessoa”.
A decisão foi uma resposta à ação civil pública (ACP) movida pelo Ministério Público do Espírito Santo (MPES), que pleiteou que a Companhia Estadual de Transportes Coletivos de Passageiros do Estado do Espírito Santo (Ceturb) “conceda o benefício da gratuidade do transporte coletivo às pessoas soropositivas e outras doenças crônicas imediatamente, às custas do município de Vitória, aos habitantes do município de que façam jus aos requisitos discriminados pela Lei Ordinária nº 8.144/2011, desde que para fins de tratamento devidamente comprovado que se adequem à hipossuficiência prevista no art. 7° da LC 213/2001”.
Na sentença, o magistrado apontou que, por meio da Lei 8.144/2011, o município estabelece a gratuidade. “Desse modo, mesmo que não esteja mais gerenciando o transporte público, tem a obrigatoriedade de custear aos seus munícipes, portadores de HIV e doenças crônicas, em razão da execução da citada”. O juiz mencionou, ainda, que a norma estadual LC nº 213/2001 “não estendeu o benefício da gratuidade para os portadores de HIV, mas apenas aos portadores de doença crônica”.
No recurso, o município alegou que houve “completa e integral absorção do Sistema Municipal ao Sistema Transcol”, assim, “os termos antes firmados com as empresas permissionárias foram rescindidos”. “Dessa forma, argumenta que a Lei Municipal nº 8.144/2011, no que diz respeito à concessão de qualquer tipo de gratuidade de transporte pelo Município, perdeu a eficácia, diante da total transferência do sistema de transporte coletivo para o Estado”.
No entanto, a 2ª Câmara Cível afirmou que, “em primeira análise, parece claro que o fato de o transporte público encontrar-se sob administração do Estado do Espírito Santo não afasta a obrigação de que o Município de Vitória custeie a gratuidade legalmente prevista aos portadores de HIV e demais doenças crônicas, nos termos da Lei nº 8.144/2011”. Disse também que “ainda que a legislação estadual não possua previsão de gratuidade de transporte público para os portadores de HIV, esta deve ser garantida efetivamente pelo município de Vitória/ES, uma vez que tal obrigação decorre justamente de norma local específica sobre o tema”.
Na decisão constou ainda que “o simples fato de ter havido a transferência da gestão do serviço e revogação dos dispositivos contrários não faz com que tenha ocorrido a revogação da malfadada lei municipal, notadamente quando a garantia de gratuidade no serviço de transporte público aos portadores de doenças crônicas não ostenta caráter conflitante com o regramento estadual, mas garantia específica aos munícipes de Vitória/ES”.
Cobranças
Esse histórico judicial foi recordado pela vereadora de Vitória Ana Paula Rocha (Psol) e pela deputada estadual Iriny Lopes (PT). “Há uma sentença de juiz, e também do Ministério Público e desembargador, que coloca a importância de a prefeitura também garanta essa gratuidade. Peço ajuda e atenção dos demais vereadores, porque já tem sentença do desembargador e aí pode incorrer em perda de direito para pessoas com HIV, portadoras de deficiência física e de doenças raras”, disse Ana Paula na sessão da Câmara dessa terça-feira (26).
Em suas redes sociais, Iriny afirmou ver com preocupação o PL encaminhado à Câmara pelo Executivo. “A iniciativa ocorre mesmo diante de determinações judiciais não cumpridas desde 2023, emitidas pela 5ª Vara da Fazenda Pública e pelo desembargador Raphael Câmara, que obrigavam o município a custear o benefício, mesmo com a incorporação das linhas municipais ao Sistema Transcol”.
A parlamentar questiona: “o governo do Espírito Santo, por exemplo, que anunciou investimento público de R$ 1,3 bilhão em mais R$ 1 bilhão contratado no ParkLog BR/ES, em infraestrutura logística, junto com a iniciativa privada, não teria como custear a gratuidade para essas cerca de 4 mil pessoas?”.
A deputada finalizou dizendo que “provocado pelo Ministério Público sobre a integração ao Transcol, o Judiciário, ao negar recurso da prefeitura, reiterou que a gestão estadual do transporte não anula o dever de Vitória custear a gratuidade da Lei nº 8.144/2011. A gestão municipal descumpriu a obrigação por anos e agora busca se eximir do custeio para pessoas soropositivas, com doenças raras e deficiência”.
O que diz o PL
Em sua justificativa, é destacado no PL que a administração municipal não tem gerenciamento do sistema de transporte operacionalizado no município. “Atualmente atendido pelo Sistema Metropolitano de Transporte, todo o gerenciamento está cargo do Executivo Estadual, por meio da Ceturb, desde o ano de 2021, em específico desde o dia 7 de março de 2021”.
“Com a proposta de emenda à Lei Orgânica Municipal, foi viabilizada a integração ou a transferência da organização, gestão e fiscalização do transporte coletivo. Não demais ressaltar que, com a mencionada integração, os regramentos aplicáveis são e serão os mesmos previstos em lei estadual específica, conforme texto de lei que ora instruímos em processo”, diz o PL, no qual consta que a aplicação das leis cuja revogação é solicitada, “com o advento da incorporação do Sistema Municipal ao Sistema Metropolitano de Transporte se mostra inócua, em razão do objeto tratado.