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‘Programas habitacionais de Vitória foram colocados na geladeira’

[Podcast] Professora da Ufes e integrante do BR Cidades, Clara Miranda fala sobre moradia e direito à cidade 

Acervo pessoal

Entre 10 e 19 de setembro, a plataforma BR Cidades realizou seu terceiro Fórum Nacional, reunindo pessoas de vários estados do Brasil para discutir as questões urbanas e o direito à cidade. O Espírito Santo é uma das unidades da federação em que o BR Cidades está organizado e atuante. Por isso conversamos com Clara Luiza Miranda, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e uma das colaboradoras da plataforma.

Clara fala sobre os principais temas e repercussões do evento, sobre a luta por moradia e direito à cidade e suas implicações no Espírito Santo.

Ouça a entrevista na íntegra no Spotify ou no player abaixo.

Se preferir, confira um resumo da entrevista em texto:

O que é o BR Cidades e como esse grupo tem atuado no Espírito Santo?

É uma plataforma sociotécnica que tem arquitetos, engenheiros, advogados, pessoas que fazem trabalho social, pessoas dos movimentos sociais, médico sanitarista, cientistas sociais, é uma plataforma muito grande que atua não só em habitação, mas também no direito à cidade.

A plataforma existe desde 2018. Já tinham feito o primeiro fórum quando nós entramos, no final de 2018. Fomos convidados a formar um núcleo aqui. Fizemos um evento, se não me engano foi um encontro em homenagem ao Estatuto da Cidade, o pessoal da Defensoria Pública estava junto, e a gente se animou a fazer aqui no Espírito Santo.

Quais os principais temas abordados neste III Fórum Nacional do BR Cidades e como foi a participação do Espírito Santo?

O fórum trabalhou em vários aspectos porque é uma grande plataforma que vai desde ação e mobilização política, passando pela questão da soberania alimentar, da nossa preocupação com a questão ecológica, com as pequenas cidades, a ATHIS [Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social] teve mais de uma mesa, uma delas organizada pelo Espírito Santo.

Na nossa mesa trabalhamos formas de implementar essas políticas aqui no Estado, mais especificamente em Vitória, que tem uma legislação, tem plano habitacional, tem programas habitacionais, todos por enquanto na geladeira. Desde a gestão de Luciano Rezende essas políticas não têm sido implementadas com a mesma força que vinham sendo implementadas há 23 anos. Antes disso ainda teve o projeto de São Pedro, então Vitória tinha uma fortuna técnica na aplicação de políticas habitacionais, muito bem pensadas e bem elaboradas, trabalhando projetos de habitação coligados ao desenvolvimento humano, que não tratavam só do espaço, mas também de problemas sociais ligados a trabalho e renda, entre outros. No fórum tiveram muitas mesas sobre Despejo Zero. Há uma epidemia de despejos, apesar de ter decisão do STF para impedir despejos na pandemia.

Muitas das coisas que a gente pensa no BR Cidades são formas de atuar, de aprender uns com os outros, que podemos tirar como parâmetro, nunca como modelo.

Clara Miranda, professora da Ufes e integrante do BR Cidades. Foto: Tati Hauer

Sobre as ocupações na luta por moradia no Espírito Santo, elas ocorreram historicamente em regiões periféricas, mas mais recentemente o Centro de Vitória passou a ser reivindicado. Como vê esse novo momento de reivindicações pelo direito à moradia como parte do direito à cidade?

O Espírito Santo é muito interessante em termos de colonização porque até o período da independência tinha seis vilas mas não tinha uma cidade; do ponto de vista urbanístico não tínhamos rede urbana.

Tiveram vários processos de incentivo à migração. Antes da migração estrangeira houve alguns outros movimentos vindos dos cafezais do Norte do Rio de Janeiro, chegando pelo Sul do Espírito Santo. Com a imigração europeia se consolidou a população rural, que ficou imediatamente maior que a população urbana. Mas com a crise do café e outras crises como a da Revolução Verde que como em outros lugares foi expulsando as pessoas do campo para a cidade, ao mesmo tempo em que havia uma ideia de industrialização.

Quando a população chega aos centros urbanos não tínhamos planejamento. Ela teve que se abrigar onde havia espaço, já que o mercado imobiliário era muito recente e não havia excedente suficiente da sociedade para pagar empreendimentos imobiliários. São feito loteamentos pelos governos mas são sobretudo espaços rejeitados como mangues, morros, que são ocupados inicialmente, mas são muito próximos do centro urbano.

Em Vitória, cerca de 40% do município é autoconstruído, construído pela própria população, ou seja 60% é formal e 40% é inicialmente informal. Nos outros municípios esse percentual de autoconstrução deve ser muito maior, porque em Vitória realmente há um acompanhamento maior do poder público.

Chegando perto do nosso tempo, com o Estatuto das Cidades, o Plano Diretor Urbano, foram-se regularizando as áreas autoconstruídas. Mesmo tendo muitas casas precisando de melhorias em Vitória, na maioria das casas chega esgoto, água, luz. Há um limbo social que precisa de outros olhares, mas chega água, luz e esgoto. Então está em outro nível, precisa de melhorias nas habitações, melhorias em mobilidade vertical. Acho que isso reduziu o espaço de ocupação em Vitória nas áreas que estão urbanizadas.

Por causa da dinâmica da ocupação da Fazendinha [no bairro Grande Vitória, na capital], houve um violento despejo daquela ocupação e eles acabaram indo para a Casa do Cidadão. Foi notado que não obstante haver políticas sociais, existir essa política que é o CadÚnico, a maioria das pessoas da ocupação não acessavam, estavam à margem das estatísticas, já que tudo que fazemos hoje passa pelo CadÚnico, que é um ótimo registro. Mas a maioria não estava cadastrada e isso foi criando revolta ao saber dos direitos que elas tinham e não acessavam.

A Maria Clara [liderança histórica do Movimento Nacional de Luta pela Moradia no Espírito Santo] viu a possibilidade de movimento voltar à pauta, lembrou que o prédio do IAPI foi promessa feita a ela no governo Lula. E eles foram ocupar IAPI e aí apareceram outras ocupações, criou-se num ciclo que hoje está mais arrefecido.

Hoje as centralidades se dispersaram, tem áreas de centralidade em Porto Santana, tem densidade em torno da Rodovia Serafim Derenzi, cheia de lojas, quem mora por ali não precisa se deslocar para tudo. Em Terra Vermelha também, tem uma vida, uma economia local, as pessoas não precisam sair dali, então elas não ficam ambicionando demais o Centro.

As ocupações no Centro foi um evento que Maria Clara criou, e hoje, lógico, tem ambições depois que se mostrou que há muitos imóveis vazios. Identificamos 127 com a Campanha Função Social da Propriedade, mas um mapeamento feito pelo Ifes, num trabalho mais cuidadoso, apontou 250 imóveis, em 2005 se não me engano. São imóveis que podem ser habitações, mas que não vão resolver todos os problemas. No Espírito Santo são mais de 250 mil pessoas com déficit habitacional, em Vitória chegam a seis mil famílias precisando de medidas, de melhorias nas habitações, equipamentos urbanos, não necessariamente de casa nova.

Edifício Santa Cecília, um dos que foi ocupado no Centro de Vitória. Foto: Leonardo Sá

David Harvey fala do deslocamento da fábrica para as cidades, do espaço de mais valia e da luta de classes. Muitas fábricas foram para outros países, atendem dinâmicas globais, mas nas cidades se expressam as grandes contradições do capitalismo. É comum o embate entre dois modelos de cidade, um mais ligado a dinâmicas coletivas e participativas e outro da cidade vista com negócio, como local propício para investimentos privados, na qual geralmente poder econômico e político são aliados, por uma série de interesses e até por uma questão de classe. Queria que você ajudasse a ampliar esse olhar, sobre essa contradição e como ela pode ser observada aqui em Vitória e no Espírito Santo.

Tem um livro do [Henri] Lefebvre de 1968 em que ele vai mostrando as transformações que a cidade sofre desde a pólis grega, vai mostrando como a indústria clássica vai se aproximando e quando chega perto dela. Traz trabalhadores, traz vários tipos de poluição e acaba implodindo e explodindo a cidade. Ele diz que vai surgir com isso uma sociedade urbana e que ela seria hegemônica nos processos de transformação da economia e das relações socioeconômicas.

Em junho de 2013 para mim o que a população queria era exatamente fazer a revolução, a revolta do direito à cidade. Começa com o transporte urbano e depois aparecem várias reivindicações. Acompanhei todas as revoltas, turca, grega, as ocupações na Espanha, em Nova York, fiz disso meu objeto de estudo.

Nesses casos, o que a gente vê imediatamente é a reação dos negócios. Voltando para o Brasil, o que a gente vê é a rearticulação dessas pessoas que estavam meio nas sombras, do capital, a gente vê casos como do Cais de Estelita [em Recife], a luta pela retomada de um cais belíssimo mas instalam-se torres gigantes no lugar. Essa rearticulação do capital passa por um golpe, sou defensora de 2013 mas concordo com a tese do golpe e dessa retomada em que se vai fechando conselhos, se extingue o Ministério das Cidades, vai como um trator tomando de volta todos os direitos. É o dito “passar a boiada”, no campo e na cidade.

Vivemos momentos ruins em que todos os direitos que estavam se rearticulando ganharam uma paredona. Eles estão vencendo há muito tempo. Aqui no Espírito Santo tem um grupo de pessoas decidindo as formas como vai se desenvolver o estado e essas formas pensam apenas em preservar processos que já estão, não pensam em criar novos processos. E quando acabar o minério? O petróleo não vai durar para sempre. Como vamos nos reorganizar?

Vai se fechando o cerco mas chegou-se a um grau insuportável, que agora começa afetar a sobrevivência desse capitalismo. Se não tem chuva não vai ter soja, por exemplo.

Tem uma disputa que neste momento está desregulada, mas sinto que está se reequilibrando, o povo novamente se reorganizando, não obstante o outro lado estar armado. Mas nos temos outras coisas, temos muita inteligência.

Um caso emblemático recente dessa disputa sobre a cidade em Vitória se deu em torno dos galpões do IBC, em Jardim da Penha, que por tabela influenciam também no Centro Cultural Carmélia. Se conseguiu gerar uma força para barrar esses processos que se relacionam com o direito à cidade, porque não se havia dado à população a opção de participar e escolher os destinos desses espaços.

O Lefebvre tem uma questão estratégica de lutar não só pelo direito que está constituído – os direitos sociais estão na Constituição no Artigo 6 e outros espelhados – mas tem outros direitos que tem que ser construídos. Para ele, esse é o direito à cidade, um direito a se construir junto com outros direitos.

O caso do IBC foi um momento de participação da população, com algumas restrições, mas parte dos arquitetos, dos moradores, parte da população se colocou a favor do espaço público. A gente não fez isso, por exemplo, reivindicando o porto. Não estamos acostumados a fazer gestão realmente compartilhada entre público e privado no Brasil. Carlos Vainer fala que nesses casos, aqui o governo entra com o dinheiro e o mercado entra com o bolso. Na Alemanha tem esse tipo de gestão, a cidade e a população participam da gestão do porto, porque Hamburgo depende do porto, se o porto não funciona direito, Hamburgo não funciona direito, então a população participa das decisões sobre o porto. Isso é governança, não é você e seus amigos tentarem fazer a gestão da cidade, é a sociedade com o Estado participando da gestão.

Agora estamos para privatizar o Porto de Vitória, o que vai ser do Centro da cidade? A questão não é só física, arquitetônica. Participação é saber qual carga chega, se pode criar ou ampliar esse arranjo produtivo em torno do porto, as transformações que o porto sofreu no mundo e que afetaram de várias maneiras aqui.

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