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A bola não é mais aquela – II

Quando estudou sociologia em São Paulo, nos anos 1960, o jornalista Renato Pompeu, autor de 22 livros, alguns deles sobre futebol, costumava questionar os colegas sobre o desprezo que as ciências sociais dedicavam ao futebol. Para ele, uma ciência social de verdade não podia ser tão omissa. Os colegas diziam que o futebol era uma mera alienação popular, mas até hoje Pompeu não deu o braço a torcer. Continua achando que o futebol merecia estudos profundos:
 
“Por que as grandes massas escolheram o futebol, e não outra coisa qualquer, para se alienarem?”, pergunta o jornalista, torcedor confesso da Ponte Preta, a simpática Macaca, de Campinas.  “E não poderíamos considerar também a literatura, a música, as artes plásticas e o cinema como outras tantas ‘alienações’ das pessoas intelectualizadas?”, prossegue o jornalista.  Aos que reclamam dos altos ganhos dos atletas mais famosos, ele argumenta com os astros do cinema e da música: “Eles também têm altos ganhos e ninguém reclama”.
 
Tudo isso e mais a iminência da Copa do Mundo de 2014 no Brasil nos levam a pensar no peso que o futebol adquiriu não só como forma de engajamento social em clubes e torcidas organizadas, mas no uso dos atletas como protagonistas de um dos maiores espetáculos de massa da civilização moderna, em que partidas de futebol de times da segunda divisão são transmitidas ao vivo por satélite em horários definidos a partir de conveniências dos canais especializados em transmissões esportivas. Grandes marcas de cervejas, bancos, automóveis, telefonia são associadas a clubes e atletas.
 
Esporte? Espetáculo? Negócio?  
 
Dias atrás o jornalista Jamil Chade, correspondente europeu do jornal O Estado de S. Paulo, revelou que mais de 1,1 mil jogadores na Europa são propriedade de grupos financeiros que mantêm aplicados mais de US$ 1,2 bilhões em atletas transformados em “commodities”. Mas pode ser que esse valor seja apenas a parte visível de um iceberg imensurável.
 
Esse fenômeno global tem uma de suas bases no Brasil, que exporta atletas jovens e promissores (como Neymar, Oscar e Lucas) e recambia jogadores cansados ou “queimados” em suas passagens por clubes do Primeiro Mundo. Os reimportados voltam donos de seus próprios passes, não custam nada aos endividados clubes brasileiros mas só fecham contratos se ganharem “salários europeus”. Tem algo de podre no reino do futebol, mas ainda não chegamos ao ponto de abrir a tampa do esgoto. Em grande parte porque revelar podres não interessa aos envolvidos no esporte espetacular e milionário.   
 
“Temos de ser realistas, o clube é a fábrica e nós somos um produto”,  disse Eliaquim Mangala, do Porto de Portugal, país em que um terço dos jogadores da primeira divisão é mantido por investidores. Algo semelhante, mas em menor escala, ocorre em outros países, enquanto alguns resistem – ou fingem fazê-lo. Na França, o sistema “empresarial” é proibido. Na Inglaterra, a transferência de Carlos Tevez do Corinthians para o West Ham, em 2006, fez os cartolas britânicos aprovarem uma lei impedindo a participação de investidores no passe de um jogador.
 
Que o futebol virou uma prática esquisita se pode ver pelo comportamento de muitos atletas. Há jogadores que gastam mais tempo na gravação de comerciais ou participando de eventos dos seus patrocinadores do que em treinamentos ou jogos. A maioria desses astros não sabe onde aplicar o que ganha. Gasta em tatuagens, arranjos de cabelos, carros, joias e casamentos de conveniência.
 
Em seu romance “A saída do primeiro tempo”, lançado em 1978, Renato Pompeu defende a tese  de que o futebol não é um esporte, mas um espetáculo dramático, que se distingue por duas razões dos demais espetáculos dramáticos, como o teatro e o cinema. Em primeiro lugar, o futebol não retrata um conflito entre personalidades, mas entre duas instituições sociais, que são, em primeiro plano, os dois times em disputa.
 
Em segundo lugar, no futebol, não há um roteiro pré-definido, já que os próprios atores, os jogadores, não sabem de antemão qual o desenlace de suas ações. Além disso, no plano simbólico, cada time em disputa no plano real pode representar um grupo social extracampo. Desse modo, o Corinthians representa o “povão”, o Celtics de Glasgow representa os “católicos” e o Barcelona representa os “habitantes de Barcelona” e, por extensão, os “catalães”.
 
Assim a torcida acaba participando do espetáculo e o futebol ensina a seus torcedores, desde a infância – o futebol, segundo a tese, “é muito importante na socialização da criança” –, que a vida é feita de vitórias e de derrotas, mas que a instituição a que pertencemos sobrevive a tudo isso. Com isso, o público, as torcidas, acabam também fazendo parte do espetáculo e desempenhando papéis dramáticos.
 
Mas em todas essas situações o futebol ainda não se distingue dos demais esportes com bola, como o basquete, o rugby, o futebol americano e o beisebol, entre outros. A grande especificidade do futebol é a prioridade dada aos pés, enquanto todos os demais esportes priorizam as mãos. E aí vem o lado mais pitoresco da tese de Pompeu:
 
“Na passagem do século 18 para o século 19”, argumenta ele, “o futebol tal como o conhecemos surgiu em paralelo com a Revolução Industrial. A partir desta, pela primeira vez na história, a massa dos seres humanos passou a trabalhar ou de pé parado diante de uma máquina, ou sentado parado a uma mesa. Durante toda a história anterior quem trabalhava se movimentava bastante, seja como lavrador, seja como criador de gado, seja como coletor de impostos in-natura. Aqueles trabalhadores de pés imobilizados iriam ser justamente atraídos por uma atividade que movimentasse os pés – então as classes trabalhadoras passaram, segundo minha tese, a se reconhecer no futebol como classes trabalhadoras fora do local e das condições de trabalho. Por isso o futebol ‘deu certo’ na Europa e na América do Sul, onde as classes trabalhadoras aspiraram a um maior poder político, social e cultural, e ‘não deu certo’ nos Estados Unidos, onde as classes trabalhadoras não existem fora do local de trabalho e assim se identificam com, por exemplo, o basquete, o qual, segundo a tese, ‘é muito parecido com uma linha de montagem’. Já o futebol americano nos Estados Unidos, como o rugby na Grã-Bretanha, Europa e em antigos países coloniais, são esportes de camadas superiores da sociedade, especialmente universitários de elite, e servem como preparação para a guerra, especialmente para a guerra colonial. Quanto ao beisebol, em que a cada momento basicamente um único jogador é que de fato enfrenta todos os do adversário, representa a visão, corrente mesmo entre os trabalhadores americanos, do sonho americano de ascensão individual, do ‘um herói contra o mundo hostil que o cerca’, e que, ao subir, leva consigo os que lhe são mais próximos. Finalmente, no Japão da época da tese, anos 1970, o beisebol havia sido adotado como esporte nacional em paralelo com o fato de que o emprego no Japão era patrimonial, isto é, o trabalhador era um membro da ‘família extensa’ que era a empresa, já que seu emprego era perpétuo e as promoções eram por idade, como numa família. Assim cada trabalhador era um ‘samurai’ que, como um jogador de beisebol, lutava em sua tarefa isolada em nome do grupo.”
 
A ascensão recente do futebol no Japão ocorreu em paralelo com o fim do emprego perpétuo e da estrutura de “família extensa” de cada empresa. Nos Estados Unidos, as dificuldades que a presente crise econômica cria para os trabalhadores em geral e para a ascensão individual em particular, ocorrem em paralelo com o aumento do interesse pelo futebol, notavelmente entre as mulheres. A ponto de que políticos conservadores quiseram proibir a prática do futebol nas escolas, sob a alegação de que é um esporte “estrangeiro, antiamericano, socialista”.
 
Num longo artigo publicado no fim do ano em seu blog (Blog do Renatão), Pompeu nos coloca a par de suas últimas conclusões a respeito dos esportes em geral. Vale a pena  conhecê-las:
 
“Convenci-me de que o voleibol é um esporte que atrai pessoas que não apreciam conflitos sociais mais agudos (não há contato físico entre os adversários). Que o tênis é um esporte de burgueses, ou de pessoas de mentalidade burguesa, que se enfrentam individualmente sem entrar na ‘propriedade’ do outro, ou seja, sem entrar na outra metade da quadra. E que o golfe é um esporte de grandes burgueses, pois, exatamente como um grande especulador financeiro, o golfista atua isoladamente, de acordo com seus interesses e possibilidades, sem interagir com os demais golfistas, sem enfrentá-los diretamente, mas procurando derrotá-los indiretamente. Ainda mais porque, pelo que sei, o golfe surgiu na Holanda na época em que se iniciaram naquele país as grandes especulações financeiras internacionais.”
 
Finalmente, ele adverte que não se deve cair nas armadilhas do reducionismo: “Sei muito bem que tudo isso acontece no plano simbólico, não no plano real. Nem todo torcedor de time ‘popular’ é defensor das causas populares e nem todo torcedor de time ‘oligárquico’ é favorável às oligarquias”.
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“Quando i soldi parla, tuti tase”
 
(Quando o dinheiro fala, todos calam)
 
Ditado italobrasileiro

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