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A foice e o martelo

João da Silva vivia sua vida diária de homem honesto e trabalhador. Não brigava com vizinho, não ofendia os santos quando vinham as secas, não maldizia a sorte quando chovia demais. Com paciência e parcos resultados obtinha o sustento  de sua pequena família usando os instrumentos que herdou do pai – uma foice e um martelo. Ignorante das coisas do mundo, não sabia João que o país sofria uma ditadura, com olhos afiados fiscalizando tudo e todos.
 
Tardezinha de um dia mais trabalhoso que os outros, João chega no barraco e esquece  do lado de fora,  encostadas na parede, as armas do ofício – a foice e o martelo. Adentra o barraco e se sente feliz com a cena que vê – os dois meninos no chão fazendo os deveres da escola, a mulher no fogão temperando a sopa – magras mas cheirosas,  a mulher e sopa. Enquanto isso, a víbora de mil olhos espreita por todas as frestas, feito o vento da noite.
 
Batem à porta – seria algum vizinho chamando João pra ir com o martelo consertar algum estrago?  Uma vizinha necessitando um ovo emprestado? Os dois policiais parados na porta não têm cara de bons vizinhos. “Algum problema, homens da lei?” Policial um pergunta – Esses objetos aqui na porta são de sua propriedade?  “Sim senhores, são minhas ferramentas de ofício.  O ganha-pão da família”.
 
Policial outro quer saber que tipo de ofício ou ganha-pão. “Com a foice capino terrenos vadios, onde o mato cresce e me pagam pra limpar; com o martelo prego pregos para unir, reforçar ou consertar o que carece”.  Policial um – Com licença, temos que revistar o imóvel. Sem esperar a licença solicitada vão entrando. Não têm muito que inspecionar, porém – barraco de um cômodo só servindo de cozinha, quarto e sala; uma cortina de chitão escondendo o banheiro.
 
Assustada, a  mulher se encolhe num canto, com os dois meninos agarrados em suas pernas, olhos arregalados de medo. O cômodo não tem armários nem gavetas, a roupa do uso fica dobrada sobre um estrado de madeira. Os policiais olham dentro das panelas e potes; jogam pelo chão a roupa limpa; despejam na pia a sopa que fervia na panela – o ralo engoliu a janta da família. “O que está havendo, excelências?” João pergunta com a voz tremida, “Nunca ofendi nem roubei de ninguém”.
 
Policial um – O senhor está ciente de que a foice e o martelo são símbolos do governo comunista russo?” João enrola nas mãos uma ponta da camiseta de malha, “Colunista?  Pelo amor de Deus, autoridades, sou pai de família e trabalho duro. Nunca ofendi esse tal governo russo”.  Policial outro – O senhor vem conosco, precisamos fazer umas averiguações… não vai  tomar muito tempo. “Ir aonde, posso perguntar sem faltar com o respeito?” Policial um – Melhor ficar calado.
 
Em prantos, a mulher se agarra ao marido, mas os homens da lei a empurram para longe. Policial outro – Fica quieta, madame, ou vai junto. A foice e o martelo são levados também, prova irrefutável das tendências ideológicas do infeliz João. Que entrou na van com os policiais e nunca mais foi visto, vivo ou morto. Moral da história?  Só quando acabam a gente fica sabendo que,  por pior que sejam, até as ditaduras acabam.

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